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Lutero e o pavor do pecado

“Não haverá justiça em nós se antes nossa justiça própria não sucumbir e perecer” (Martinho Lutero)


Repórter – Atribuem ao doutor este desabafo: “Que Deus terrível! Oxalá não existisse!”. O doutor teria mesmo dito tal coisa?1

Lutero – Não me lembro quando, não me lembro onde, mas é provável que tenha falado algo assim em uma das minhas crises de pavor, provocada pela noção da santidade absoluta de Deus e pela noção da minha própria pecaminosidade.

Repórter – Seria mais confortável para o doutor se não houvesse Deus?

Lutero – Deus é tão necessário que, se não existisse, teríamos de inventar um.

Repórter – Inventar um Deus menos santo do que o tal “Deus terrível” do seu desabafo?

Lutero – Um Deus semelhante a nós, atraído pelo pecado, sujeito ao pecado, conivente com o pecado, embaçado pelo pecado, vencido pelo pecado e propagandista do pecado, não nos interessaria.

Repórter – Parece-me que o doutor tem uma ideia fixa de pecado. Só agora fez uso dessa palavra seis vezes...

Lutero – Não, eu não tenho nem tive mania de pecado. Exceto naquele tempo em que eu enxergava apenas o pecado e não a graça, considerava somente a severidade e não a bondade de Deus, como São Paulo escreve aos Romanos (11.22).

Repórter – Esse pavor do pecado tem algo a ver com a educação recebida no lar?

Lutero – Talvez. Apanhei muito em casa e na escola. Meus pais trataram-me com dureza, implantando em mim a timidez. Ambos acreditavam que faziam isso com acerto, mas não souberam colocar uma fruta gostosa ao lado da vara.2 Uma vez eu peguei uma simples noz que não era minha e apanhei de minha mãe até sangrar. Em outra ocasião meu pai me castigou fisicamente de maneira tão rude, que fugi dele. Meus pais e meus professores seguiam ao pé da letra o conselho de Salomão: “Castiga o teu filho enquanto há esperança” (Pv 19.18). Mas não equilibravam a pancadaria com o conselho de São Paulo: “Pais, não irritem seus filhos, para que eles não desanimem” (Cl 3.21). Apesar de tudo, desde cedo, eles geraram em mim o tal temor do Senhor, que é “o
princípio da sabedoria” (Pv 9.10) e o instrumento pelo qual “o homem evita o mal” (Pv 16.6).

Repórter – Pavor do pecado e temor do Senhor são a mesma coisa?

Lutero – O temor do Senhor é mais sadio e benéfico do que o pavor do pecado.

Repórter – O pavor do pecado diminuiu no convento agostiniano de Erfurt?

Lutero – Aumentou, e muito! A começar pelo ambiente religioso da cidade. Entre igrejas, conventos, hospitais e outras obras do gênero, havia mais de cem edifícios religiosos. Erfurt era chamada de “a pequena Roma”. Antes de eu me mudar para lá, houve uma reforma nos conventos da Saxônia, liderada por um tal de André Prolês, que não cheguei a conhecer. Nem todos aceitaram a nova disciplina, bem mais severa. Os eremitas “observantes” eram mais comprometidos do que os “conventuais”, mais soltos e numerosos. Meu convento pertencia ao primeiro grupo e tinha como vigário geral o professor João von Staupitz, sucessor de Prolês.

Repórter – O doutor se submeteu à austera disciplina dos “observantes”?

Lutero – Se jamais houve frade que entrasse no céu por seu espírito fradesco, eu de certo, seria um deles.3

Repórter – Sempre a custo do pavor do pecado?

Lutero – Nem sempre. Depois de muitas lutas, orações, lágrimas, buscas e repetidas leituras da Sagrada Escritura, especialmente das Epístolas de São Paulo, o temor do Senhor desalojou o pavor do pecado, ocupando seu lugar.

Repórter – Deve ter sido uma experiência maravilhosa!

Lutero – Foi sublime demais para descrever. Todo o pavor, o poder, a culpa e a feiura do pecado saíram de sobre os meus ombros e caíram sobre o nosso amado Senhor e Salvador Jesus Cristo.

Repórter – Como assim?

Lutero – Talvez você não consiga compreender — eu mesmo gastei muito tempo para entender —, mas as boas-novas do evangelho (perdoe-me a redundância, pois evangelho significa boas-novas em grego) dizem que Jesus tomou o nosso lugar para que nós pudéssemos tomar o lugar dele. Em outras palavras, ele, o justo, tornou-se pecador, e nós, os pecadores, tornamo-nos justos. Ele morreu, nós vivemos.

Repórter – O doutor está afirmando que Jesus é pecador? Parece-me uma blasfêmia!

Lutero – Eu não falei que ele é. Afirmei que Cristo tornou-se o supremo e único pecador; ele que era e ainda é a eterna e inexcedível justiça. Todo o pecado do mundo se abateu, com toda a ira e virulência, contra a sua justiça. Foi, literalmente, uma luta de vida ou morte. O pecado lançou-se contra a justiça, a maldição contra a bênção, a morte contra a vida. Tudo caiu sobre Jesus. Nosso amado Senhor e Salvador tornou-se simultaneamente maldito e bendito, vivo e morto, padecente e exultante.4 Jesus ocupou o lugar daqueles tiranos e carcereiros que me atormentavam: o pavor do Deus santo, da lei, do pecado, da morte, do inferno. Antes, eu só enxergava o pecado e a severidade de Deus; hoje eu enxergo a graça e a bondade de Deus. Antes, fixava os meus olhos só no “alto e sublime trono” (Is 6.1); agora fixo os meus olhos na rude cruz e no túmulo vazio. Antes, olhava para dentro de mim e encontrava um homem encurvado ou encarquilhado sobre si mesmo; agora, “olho para os céus e vejo o Filho do Homem em pé, à direita de Deus” (At 7.56).

Repórter – Essa mudança radical aconteceu de uma hora para outra?

Lutero – Foi um processo ora consciente, ora inconsciente. Fui subindo os degraus, um por um, até chegar ao topo, de fé em fé.

Repórter – Há mais degraus para subir?

Lutero – Quanto ao alívio que a redenção produz, quanto à certeza da salvação, quanto ao pavor do pecado e da morte, não há mais degraus para subir. Mas, quanto à santidade interior e exterior, quanto à mortificação do pecado, quanto às três virtudes teologais (fé, esperança e amor), há muitos degraus pela frente. Neste corpo e neste mundo nunca chegarei ao topo do mais alto monte. Fui justificado e estou sendo santificado, porém ainda não fui glorificado. Só com a ressurreição do corpo chegarei ao cume do mais alto monte, e não sozinho, mas na companhia de todos aqueles de cujos ombros Deus tirou, em Cristo, o peso do pecado.

Repórter – Se foi um processo, então o doutor não tem como localizar e datar a experiência redentora...

Lutero – Um dos meus alunos da Universidade de Wittenberg, que participava de nossas refeições e conversas à mesa, divulgou a informação de que eu teria descoberto a justificação pela fé no banheiro, isto é, “in cloaca”. Chegou a fantasiar dizendo que, enquanto eu aliviava o ventre, estaria aliviando também a consciência do pavor do pecado. Usei aqui a expressão “in cloaca” no sentido folclórico, no jargão dos monastérios, que quer dizer “na pior”. A verdade é que a descoberta da obra vicária de Cristo em sua profundidade ocorreu quando eu estava triste e deprimido.5 Outros têm dito por aí que a experiência aconteceu na torre do mosteiro agostiniano em Erfurt. Devemos encerrar de uma vez por todas as diferentes conjecturas. Nada disso é importante. Pouco a pouco, na minha cela, na torre do mosteiro, na minha sala de aula em Wittenberg, no meu quarto, na sacristia da Igreja do Castelo ou em minhas andanças de um lugar a outro, a luz do evangelho luziu em meu coração e Cristo foi gerado em mim. Portanto, é impossível datar a bem-aventura da passagem do esforço próprio para o esforço do meu graciosíssimo Deus, que deu o seu Filho unigênito para minha salvação.

Repórter – Alguém o ajudou a caminhar até o topo?

Lutero – Por volta dos meus 22 anos, quando eu era monge em Erfurt, morria de medo de ter esquecido de confessar algum pecado mortal. Então, alguém me recomendou a leitura de um manual escrito pelo teólogo francês João Gérson, morto em 1429. Ali, encontrei que não se deve considerar cada falta da vida monástica como um pecado mortal. Esse e outros livros me fizeram muito bem. Entre os autores que li, cito Agostinho, São Bernardo e João Tauler. O já citado vigário geral da ordem, João von Staupitz, mais tarde meu colega em Wittenberg, me ajudou bastante. Ele me aconselhou a não me preocupar com a predestinação, mas a me apegar às feridas de Cristo e colocar Jesus diante dos meus olhos. A facada final da graça, no entanto, aconteceu quando eu li na Epístola aos Romanos que Deus nos aceita pela fé, porque, como está escrito, “o justo viverá por fé” (Hc 2.4 ; Rm 1.17). Entendi que não haverá justiça em nós se antes nossa justiça própria não sucumbir e perecer. Cheguei à conclusão de que não ressurgiremos se antes não morrermos. Para mim ficou claro que quanto mais alguém se condenar profundamente e engrandecer seus pecados, tanto mais estará apto para a misericórdia e a graça de Deus.6

Repórter – Como o doutor define a justificação pela fé?

Lutero – Quando Deus nos imputa a justiça de Cristo, esta age como um guarda-sol contra o calor da ira divina. A justificação é, antes de tudo, o decreto de absolvição que Deus pronuncia sobre nós, declarando--nos justificados, a despeito de nossa pecaminosidade. Digo mais, a justificação não é a resposta de Deus à nossa justiça, mas a amorosa e perdoadora declaração de Deus de que nós, a despeito do nosso pecado, somos agora absolvidos — quer dizer, declarados justos.7

_________
Trecho retirado do livro Conversas com Lutero. Trata-se de uma série de trinta conversas fictícias com o reformador alemão Martinho Lutero (1483-1546). Embora fictício, todo o texto é rigorosamente baseado em fatos históricos.


Notas
1. GREINER, Albert. Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1983. p. 29.
2 LESSA, Vicente Themudo. Lutero. 4 ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1960. p. 9. 3. Id. Ibid. p. 32.
4. ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Paulo: Ática, 1994. p. 68-69.
5. KITTELSON, James M. The breakthrough. Christian History, Minneapolis, MN,
Estados Unidos, v. XI, n. 2, p. 15, 1992.
6. LIENHARD, Marc. Martin Lutero — tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal,
1998. p. 45-46.
7. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. São Paulo: Cultura Cristã,
2004. v. 3. p. 57.

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