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Opinião

Divididos e raivosos?

Por Paul Freston

*Artigo publicado originalmente na edição 387 da revista Ultimato.

É ilusório imaginar uma comunidade sem divisões. A diversidade, no entanto, pode ser expressa de forma “divina” ou “demoníaca”

Recentemente fui chamado, pela primeira vez na minha vida, de “especialista em raiva”. O contexto era a live “Divididos e Raivosos”, da série Diálogos de Esperança (YouTube, canal da Ultimato), sobre a atual polarização da comunidade evangélica, quando o entrevistador apresentou a mim e a outra convidada como “especialistas” na análise do suposto caráter raivoso dessa comunidade.

Especialista ou não, fiquei refletindo sobre o pressuposto do título. Como simples descrição, não há muito como negar que o meio evangélico brasileiro seja, de fato, dividido e raivoso. Mas embutido na escolha do título era um julgamento: ser dividido e raivoso não é bom. Será o caso? Ou o próprio título precisa ser dividido?

A divisão não é necessariamente um problema.

É ilusório achar que pode haver, mesmo dentro da igreja, uma comunidade sem divisões, em que todo mundo pensa igual e vota igual. A diversidade é não só inevitável, mas também legítima, uma expressão saudável da liberdade de expressão no que diz respeito às opiniões sociais e políticas. Como não temos uma revelação divina que pretenda nos dar uma receita política para todos os tempos e todos os lugares, temos de fazer o trabalho duro de pensar como relacionar a revelação divina com as situações que enfrentamos hoje. E isso inevitavelmente leva a divergências e discordâncias, mesmo entre pessoas igualmente devotas, instruídas e bem-intencionadas.

A divisão pode ser expressa de forma divina (como manifestação da liberdade e da chamada à maturidade com que Deus agracia o ser humano), ou de forma demoníaca (como manifestação de um espírito polarizador e raivoso). Aqui está o cerne do problema. A forma demoníaca se esquece do mandamento de viver em paz com todos, no que depender de você (Rm 12.18); possuída pela autorretidão e vendo o outro como não apenas errado, mas também maldoso, repara no cisco no olho alheio, mas não percebe a viga no seu próprio olho (Mt 7.3); faltando-lhe um dimensionamento sensato das questões, acaba coando moscas e engolindo camelos (Mt 23.24); e ignorando ou negando a complexidade dos debates e reduzindo o leque real de posições a dois extremos, torna-se vulnerável a teorias conspiratórias.

A raiva tem aumentado?

Em parte, sim. Mas também a raiva tem encontrado mais canais para se expressar.

O aumento real da raiva se deve a pelo menos dois fatores, nenhum dos quais é peculiarmente brasileiro ou peculiarmente evangélico: a realidade econômica mundial das últimas décadas; e o encolhimento do mundo. E junto com isso a raiva encontrou possibilidades tecnológicas inéditas para se alastrar, na internet e nas redes sociais.

Vivemos num contexto em que muitas pessoas têm razões para se sentirem lesadas e insatisfeitas. Insatisfeitas com suas condições individuais de vida (como, por exemplo, seu nível salarial) e, ou, com os aspectos da realidade social que as afetam pessoalmente (como, por exemplo, o nível de criminalidade; ou o sentimento de que seus valores não são reconhecidos pela sociedade). A insatisfação, é claro, faz parte da condição humana desde sempre, mas é atiçada pela junção que vivemos hoje da democratização da aspiração (que nos ensina que todo mundo tem os mesmos direitos e pode aspirar às mesmas coisas) e da negação prática dessa mesma aspiração numa sociedade extremamente desigual. O resultado é frustração e ressentimento: para alguns, porque não encontram os meios efetivos para realizar os direitos e aspirações a que supostamente teriam acesso; para outros, mais favorecidos, porque parece que as tentativas de diminuição da desigualdade levam apenas a uma perda de distinção social para eles, sem a compensação de um ambiente social mais seguro.

Essa crescente insatisfação borbulha num mundo cada vez mais encolhido e tenso pela globalização. Por outro lado, o impacto da internet é enorme, fazendo com que todo mundo vire, potencialmente, o nosso vizinho, ou, em termos bíblicos, o nosso “próximo”. Potencialmente, no mundo virtual posso interagir com (e ofender!) quase a humanidade inteira. Isso acirrou as tensões sociais ligadas inevitavelmente à liberdade de expressão.

A liberdade sempre cria tensões sociais, mas essas tensões se acentuam com a internet. Grupos sociais há muito tempo reprimidos ou negligenciados encontram maior espaço para se afirmarem. No entanto, normas de civilidade no mundo virtual ainda não são suficientemente desenvolvidas, disseminadas e internalizadas.

E os evangélicos?

Será que os evangélicos são especialmente suscetíveis a esse aumento de comportamentos raivosos?

Deixando de lado a possibilidade de uma especial vulnerabilidade ideológica, talvez haja uma certa vulnerabilidade sociológica. As novas tecnologias facilitaram muito as bolhas noticiosas. E sociologicamente as bolhas têm certas características parecidas com as de muitas igrejas evangélicas: a pessoa se socializa dentro da bolha; ouve somente, ou quase somente, quem é de dentro da bolha; e há fronteiras fortes para protegê-la de quem está fora da bolha. Cria-se uma bolha noticiosa, em que a pessoa absorve só uma visão de mundo, só uma versão da realidade. Ou mesmo da irrealidade. Tudo indica que os evangélicos são especialmente vulneráveis às fake news: em parte pela tradição de minoria dissidente com forte sentimento de vitimização; e em parte pela (altamente louvável) vida comunitária intensa com fronteiras fortes. E tecnologias como o WhatsApp operam o que podemos chamar, numa analogia com a lavagem de dinheiro, de uma “lavagem de informações”. O dinheiro é “lavado” quando chega a você de uma fonte impoluta, e você não enxerga mais a distante origem escusa. Acontece o mesmo com supostas notícias que circulam nas redes sociais: você recebe uma mensagem de alguém da sua bolha, uma pessoa que você conhece pessoalmente e respeita pela sua vida digna. Uma “informação” repassada, em boa fé, por uma pessoa dessas será facilmente aceita, porque a origem escusa se perdeu de vista. E uma dieta constante de tais “informações” (sejam totalmente fake news, sejam distorções grosseiras de acontecimentos reais) vai criando no destinatário um estado permanente de indignação e raiva.

A atual onda de fake news foi prevista, em 1893, por Tolstói. Disse o famoso escritor: “Quanto mais os homens se libertarem das necessidades [básicas], quanto mais telégrafos, telefones, livros, jornais e revistas houver, mais meios haverá para difusão de mentiras e hipocrisias, e mais desunidos e infelizes serão os homens”. A invenção da internet veio somente potencializar a previsão tolstoiana.

O veredito bíblico sobre a polarização raivosa é bem retratado em dois textos de Romanos. Em Romanos 1.32, descobrimos que quem aplaude uma ação ou uma fala deplorável é pior do que quem faz ou fala. E em Romanos 3.13, encontramos a imagem da garganta que é um túmulo aberto, o qual (na brilhante exegese de Orígenes) é pior do que o sepulcro caiado de que falou Jesus; o sepulcro caiado ainda tem um pouco de vergonha e quer esconder a sua maldade, ao passo que o túmulo aberto perdeu o filtro e deixa transbordar toda a sua podridão interior.

Em "Ética cristã e secularismo", na edição 371, vimos também que as falas mais contundentes de Jesus (mas não exatamente “raivosas”) são direcionadas às pessoas poderosas e influentes nas instituições políticas ou religiosas (Herodes, os fariseus), e nunca a pessoas ou grupos marginalizados (como a mulher apanhada em adultério). A maneira de Jesus se expressar é sempre proporcional ao que a outra pessoa representa. Parece que perdemos essa sensibilidade sociológica para medir as nossas palavras.

Na edição 378, "A tentação de não amar quem discorda das minhas opiniões políticas" explora as exortações neotestamentárias aparentemente particularistas, de amar e fazer o bem principalmente aos outros cristãos (Jo 13.34-35; Gl 6.10). Isso fala diretamente à questão da polarização raivosa dentro da comunidade cristã, pois é especialmente tentador nutrir uma antipatia para com aqueles que nos são mais próximos, mas que discordam de nós! E, portanto, é especialmente necessário nos lembrar da necessidade de amá-los, e não difamá-los ou menosprezá-los ou distorcer as suas palavras e motivações.

Enfim, podemos aludir a outros textos: a verdade nos liberta, mas a fake news nos escraviza; quem viver da raiva, perecerá consumido pela raiva; o manso, que herdará a terra, é o contrário do raivoso. E podemos terminar com as palavras de uma oração que gosto de usar: “E salva as nossas almas”. Não se trata de evitar os debates polêmicos sobre questões sociais e políticas; mas que consigamos entrar nesses debates com a alma “salva”, sadia, não consumida por ódios ou ressentimentos.

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Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
  • Textos publicados: 16 [ver]

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