Opinião
- 23 de agosto de 2017
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Ainda vale a pena ler Stott?
Por Ricardo Wesley
Certos episódios trazidos à memória me ajudam a responder a essa pergunta. O primeiro deles se deu há quase 30 anos, quando ainda universitário, ávido por aprender mais da Palavra de Deus em um acampamento da ABU. Depois de uma excelente exposição bíblica, um amigo comentou com o expositor: “Ouvi o Stott em cada sentença. Você se baseou nele, não?”. Curiosamente, o pregador se irritou. “Isso é trabalho meu, fui eu que estudei e preparei essa mensagem”. Levei anos para entender melhor aquela conversa. Quando comecei a ler os comentários bíblicos do Stott e, mais tarde, ao ouvir pessoalmente os seus sermões, entendi que aquele amigo havia reconhecido no expositor certo equilíbrio, uma clareza de entendimento, uma fidelidade à Palavra, também uma poderosa, ainda que simples, comunicação das verdades das Escrituras. Não era pouco. E a comparação que fez ali, um tremendo elogio.
Dez anos depois, um segundo episódio. Foi quando tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Na saída do templo, após o culto na igreja All Souls, aquele senhor simpático abre um enorme e simpático sorriso quando descobre que o jovem casal viera do Brasil. Daí nos surpreende com algumas palavras em português, e nos pergunta de “seu amigo Ziel”¹. Demorei um pouco a entender que ele falava do amigo em comum que havia pouco celebrara o nosso casamento. Daí gastou um tempo fazendo perguntas sobre seu amigo brasileiro, revelando-nos essa faceta pessoal, acolhedora e gentil. Aos poucos, conheci esse lado mais humano do excelente pregador e escritor. Descobri que ele rejeitava usar para seu próprio benefício os enormes recursos financeiros a que teria direito por causa do êxito de seus livros. Por isso, por exemplo, sempre viajava em classe econômica, decidindo que esses mesmos recursos teriam melhor destino abençoando as viagens de jovens estudantes ou provendo os livros nos quais pudessem estudar, como aqueles primeiros e excelentes livros de teologia que recebemos através da fundação que administra os royalties de seus livros. Nada de estrelismos e sempre um coração de servo, valorizando as relações e os afetos, os amigos de perto e os de longe, afirmando as amizades e abençoando a desconhecidos.
O terceiro episódio se deu em uma viagem ao Norte do Brasil, quando eu era secretário geral da ABU, no fim dos anos 90. Chego a uma cidade e uns bons amigos reformados me questionam se o Stott agora seria liberal. Entre surpreso e confuso, lhes pergunto o que os havia levado a pensar isso. Começo a entender que, além da entrevista que havia concedido a uma famosa revista, as dúvidas haviam surgido por causa de um livro que ele havia escrito em parceria com um conhecido teólogo liberal na Inglaterra, David Edwards (“Evangelical Essentials: A Liberal Evangelical Dialogue”, creio que ainda sem tradução para o português). Menos mal que pouco antes dessa conversa eu havia lido o tal livro. Na verdade, eu havia desfrutado muito da honestidade e sensibilidade do Stott nesse debate. Sem precisar concordar com o Stott em tudo (aliás, como devemos fazer com todos os autores que lemos), e mesmo que entendendo os pontos que eram mais sensíveis ou problemáticos para os meus amigos, ainda assim os encorajei a examinar com critério (o que é sempre nossa obrigação com qualquer livro) os escritos onde Stott expõe as Escrituras ou quando ele elabora sobre a missão da igreja. Defendi que nesses livros eles se encontrariam com alguém profundamente evangélico (no melhor sentido do termo), firmado na autoridade da Palavra, ao mesmo tempo em que com uma enorme sensatez e humildade para nunca colocar sua própria interpretação acima do texto bíblico. Além disso, veriam a alguém com um coração empático para ouvir com atenção as perguntas que desde a nossa realidade as pessoas fazem à Palavra. Em Stott conseguimos encontrar algo que parece ser raro nos dias de hoje: honestidade, sensibilidade e humildade, atreladas a uma profunda devoção ao Senhor que se revela com autoridade nas Escrituras.
Às vezes ouço algumas críticas de que Stott não teria entrado a fundo em temas difíceis de nosso tempo ou que não seria adequado para a nossa realidade latino-americana. Com respeito ouço a crítica, acolho-a, mas tomo a liberdade de discordar dela. Eu poderia gastar algum tempo descrevendo detalhes de algumas posições onde penso um pouco diferente do Stott. Mas isso não viria ao caso. Stott nos oferece um modelo em sua postura e seriedade, ao respeitar quem é diferente, ao revelar que pôde mudar, aprofundar ou melhorar algum entendimento na Palavra quando exposto à diversa comunidade hermenêutica global. Para ele, a Palavra seria sempre mais importante que o seu entendimento sobre ela.
Stott também nos inspira e nos modela em sua simplicidade para tratar de maneira bíblica vários temas da fé, da vida da igreja, da missão, em sua saudável abordagem pastoral em temas complexos. Sua integridade de vida e a riqueza de seus textos me levam a crer que a melhor resposta à pergunta do princípio é a de um rotundo sim. Se cada época parece nos regalar livros ou autores cuja influência permanecerá por gerações, a nossa teve o privilégio de conhecer a John Stott, a quem devemos ler, reler e ser gratos a Deus pelo legado que nos deixou. Voltando ao primeiro episódio, posso confessar que anelo o dia em que me digam que prego ou escrevo como o tio Stott². Claro que diria ser uma absurda comparação, mas, escondido sorriria, agradecido.
Notas:
1. Ziel Machado, pastor e vice-reitor do Seminário Servo de Cristo, passou um tempo na Inglaterra no início dos anos 90, sendo acompanhado e mentoreado por John Stott.
2. “Tio Stott” (“Uncle Stott”) era a maneira carinhosa, e respeitosa, com a qual nos referíamos a ele no âmbito da IFES (Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos).
Leia mais
O conta-gotas de John Stott
Como John Stott orava?
A mulher por trás de John Stott
Certos episódios trazidos à memória me ajudam a responder a essa pergunta. O primeiro deles se deu há quase 30 anos, quando ainda universitário, ávido por aprender mais da Palavra de Deus em um acampamento da ABU. Depois de uma excelente exposição bíblica, um amigo comentou com o expositor: “Ouvi o Stott em cada sentença. Você se baseou nele, não?”. Curiosamente, o pregador se irritou. “Isso é trabalho meu, fui eu que estudei e preparei essa mensagem”. Levei anos para entender melhor aquela conversa. Quando comecei a ler os comentários bíblicos do Stott e, mais tarde, ao ouvir pessoalmente os seus sermões, entendi que aquele amigo havia reconhecido no expositor certo equilíbrio, uma clareza de entendimento, uma fidelidade à Palavra, também uma poderosa, ainda que simples, comunicação das verdades das Escrituras. Não era pouco. E a comparação que fez ali, um tremendo elogio.
Dez anos depois, um segundo episódio. Foi quando tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Na saída do templo, após o culto na igreja All Souls, aquele senhor simpático abre um enorme e simpático sorriso quando descobre que o jovem casal viera do Brasil. Daí nos surpreende com algumas palavras em português, e nos pergunta de “seu amigo Ziel”¹. Demorei um pouco a entender que ele falava do amigo em comum que havia pouco celebrara o nosso casamento. Daí gastou um tempo fazendo perguntas sobre seu amigo brasileiro, revelando-nos essa faceta pessoal, acolhedora e gentil. Aos poucos, conheci esse lado mais humano do excelente pregador e escritor. Descobri que ele rejeitava usar para seu próprio benefício os enormes recursos financeiros a que teria direito por causa do êxito de seus livros. Por isso, por exemplo, sempre viajava em classe econômica, decidindo que esses mesmos recursos teriam melhor destino abençoando as viagens de jovens estudantes ou provendo os livros nos quais pudessem estudar, como aqueles primeiros e excelentes livros de teologia que recebemos através da fundação que administra os royalties de seus livros. Nada de estrelismos e sempre um coração de servo, valorizando as relações e os afetos, os amigos de perto e os de longe, afirmando as amizades e abençoando a desconhecidos.
O terceiro episódio se deu em uma viagem ao Norte do Brasil, quando eu era secretário geral da ABU, no fim dos anos 90. Chego a uma cidade e uns bons amigos reformados me questionam se o Stott agora seria liberal. Entre surpreso e confuso, lhes pergunto o que os havia levado a pensar isso. Começo a entender que, além da entrevista que havia concedido a uma famosa revista, as dúvidas haviam surgido por causa de um livro que ele havia escrito em parceria com um conhecido teólogo liberal na Inglaterra, David Edwards (“Evangelical Essentials: A Liberal Evangelical Dialogue”, creio que ainda sem tradução para o português). Menos mal que pouco antes dessa conversa eu havia lido o tal livro. Na verdade, eu havia desfrutado muito da honestidade e sensibilidade do Stott nesse debate. Sem precisar concordar com o Stott em tudo (aliás, como devemos fazer com todos os autores que lemos), e mesmo que entendendo os pontos que eram mais sensíveis ou problemáticos para os meus amigos, ainda assim os encorajei a examinar com critério (o que é sempre nossa obrigação com qualquer livro) os escritos onde Stott expõe as Escrituras ou quando ele elabora sobre a missão da igreja. Defendi que nesses livros eles se encontrariam com alguém profundamente evangélico (no melhor sentido do termo), firmado na autoridade da Palavra, ao mesmo tempo em que com uma enorme sensatez e humildade para nunca colocar sua própria interpretação acima do texto bíblico. Além disso, veriam a alguém com um coração empático para ouvir com atenção as perguntas que desde a nossa realidade as pessoas fazem à Palavra. Em Stott conseguimos encontrar algo que parece ser raro nos dias de hoje: honestidade, sensibilidade e humildade, atreladas a uma profunda devoção ao Senhor que se revela com autoridade nas Escrituras.
Às vezes ouço algumas críticas de que Stott não teria entrado a fundo em temas difíceis de nosso tempo ou que não seria adequado para a nossa realidade latino-americana. Com respeito ouço a crítica, acolho-a, mas tomo a liberdade de discordar dela. Eu poderia gastar algum tempo descrevendo detalhes de algumas posições onde penso um pouco diferente do Stott. Mas isso não viria ao caso. Stott nos oferece um modelo em sua postura e seriedade, ao respeitar quem é diferente, ao revelar que pôde mudar, aprofundar ou melhorar algum entendimento na Palavra quando exposto à diversa comunidade hermenêutica global. Para ele, a Palavra seria sempre mais importante que o seu entendimento sobre ela.
Stott também nos inspira e nos modela em sua simplicidade para tratar de maneira bíblica vários temas da fé, da vida da igreja, da missão, em sua saudável abordagem pastoral em temas complexos. Sua integridade de vida e a riqueza de seus textos me levam a crer que a melhor resposta à pergunta do princípio é a de um rotundo sim. Se cada época parece nos regalar livros ou autores cuja influência permanecerá por gerações, a nossa teve o privilégio de conhecer a John Stott, a quem devemos ler, reler e ser gratos a Deus pelo legado que nos deixou. Voltando ao primeiro episódio, posso confessar que anelo o dia em que me digam que prego ou escrevo como o tio Stott². Claro que diria ser uma absurda comparação, mas, escondido sorriria, agradecido.
Notas:
1. Ziel Machado, pastor e vice-reitor do Seminário Servo de Cristo, passou um tempo na Inglaterra no início dos anos 90, sendo acompanhado e mentoreado por John Stott.
2. “Tio Stott” (“Uncle Stott”) era a maneira carinhosa, e respeitosa, com a qual nos referíamos a ele no âmbito da IFES (Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos).
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O conta-gotas de John Stott
Como John Stott orava?
A mulher por trás de John Stott
É casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo (SP), serve globalmente como secretário adjunto para o engajamento com as Escrituras na IFES (International Fellowship of Evangelical Students) e também apoia a equipe da IFES América Latina.
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