Opinião
11 de setembro de 2020- Visualizações: 7507
comente!- +A
- -A
-
compartilhar
A Bíblia e a luta contra o racismo hoje
Por Quéfren de Moura
Se há uma lição que devemos reter da Bíblia, ela é o amor ao próximo. Esse amor, que é a essência do próprio Deus, é o fundamento, a resposta, o princípio, o valor eterno e a mensagem mais importante desse livro.
Nas periferias e favelas, nos bairros pobres das cidades, nas regiões desamparadas dos grandes centros urbanos, dentro dos presídios, nas ocupações, a realidade atual é dura. E as principais vítimas disso são, indubitavelmente, os negros. De acordo com o Atlas da Violência, 75,5% das pessoas assassinadas no nosso país são negras. Além disso, pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que pessoas brancas. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61% das mulheres vítimas de feminicídio são negras. 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras. Policiais negros morrem mais do que policiais não negros, mesmo sendo 34% da corporação. E, com base em informações da ONG Rio pela Paz, entre 2016 e 2019, 91% das crianças mortas por balas perdidas no Rio de Janeiro eram negras.Esses não são apenas números e dados. Trata-se de seres humanos. E cada pessoa nessas estatísticas tem valor, um nome, uma história, uma trajetória, uma vida, uma família — mesmo que a maioria delas permaneça no anonimato. Imaginemos cada uma delas, aquelas de quem conhecemos o rosto, a imagem e a voz, mas também aquelas tantas que cotidianamente sofrem silenciadas, agora, proferindo as palavras do Salmo 139: “Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no ventre de minha mãe. Graças te dou, visto que de modo assombrosamente maravilhoso me formaste (...). Os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles ainda existia…” (Sl 139.13-16).
A Bíblia ensina que a vida importa! Os seres humanos foram feitos à imagem e semelhança de Deus — um Deus que vê cada um de nós antes de qualquer olho humano. Ele nos conheceu quando ainda éramos matéria sem forma, no ventre da nossa mãe. E ele preparou para nós uma vida e um futuro de esperança. Não bastasse isso, Jesus deu a vida por toda a humanidade! O amor de Deus pelo mundo foi tanto que ele não negou seu próprio Filho por todos nós.
Isso precisa nos inspirar a lutar! Porque jamais haverá justiça, punição, dinheiro ou retratação que traga de volta vidas perdidas em nome da desigualdade social, da violência, do racismo e do ódio. Não há nada que façamos que devolva às famílias seus entes queridos. Ou que apague da memória uma violência vivida. E cada ser humano assassinado e violentado nas ruas, nas vielas, nos becos e nas “quebradas” tem o valor do sangue de Jesus.
Mas como as igrejas e os cristãos podem contribuir para mudanças que impactem a realidade e cumpram o propósito de Deus nesse mundo? Como o professor Kabengele Munanga afirma, é difícil “aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”. Porém, se a Bíblia já foi um dia usada como instrumento de opressão e justificação da violência contra os negros, é nosso papel hoje reescrever essa história, construindo e compartilhando uma exegese que confronte os discursos que foram artificialmente produzidos com fins de controle e dominação das populações negras, e propor uma hermenêutica bíblica contextual e empoderadora, que resgate aquilo que a Bíblia tem a dizer sobre o amor ao próximo e a dignidade humana.
O Brasil se construiu, historicamente, a partir de uma realidade marcada pela escravidão dos negros, e, posteriormente, por uma inserção precária dessas pessoas na sociedade depois de livres. Isso engendrou enormes abismos sociais, a que estamos sujeitos até hoje. Nos nossos dias, vidas importantes habitam as favelas, as comunidades, as vilas, os morros, os bairros, as aldeias e as ocupações do nosso país, muitas vezes em situações precárias, sem acesso a condições que permitam uma existência digna. Lutemos por elas, em oração, fé e atitude, para que possam desfrutar do sopro de vida que lhes foi dado. Lutemos pelas crianças e pelos adolescentes das periferias, para que possam correr como crianças, sem medo de ser baleados ou considerados ladrões ou fugitivos, apenas por serem negros e pobres. Não nos conformemos com uma mentalidade que ainda reitera e perpetua a exclusão. Batalhemos para que todos tenham moradia, alimento, condições de viver bem, proteção, segurança, educação e oportunidades.
Se há uma lição que devemos reter da Bíblia, ela é o amor ao próximo. Esse amor, que é a essência do próprio Deus (1Jo 4.8), é o fundamento, a resposta, o princípio, o valor eterno e a mensagem mais importante desse livro! Assim, que a nossa leitura do texto resgate o que há nele que nos ensina e interpela a esse respeito.
Nesse ano de 2020, a pandemia fez muitos de nós entrarem num estado de grande introspecção. E, talvez, seja mesmo um momento importante e propício para isso. Mas não deixemos que ela nos leve à indiferença e nos torne insensíveis e alheios ao mundo que nos cerca e suas enormes contradições. Se precisamos de orientação para saber como agir, a Bíblia está repleta de princípios que podem nortear nossa atuação nessa sociedade ainda tão marcada por desigualdades. E Jesus, nesse sentido, é o melhor paradigma.
O desafio está lançado: que não apenas voltemos nosso olhar para o nosso interior, mas que nos abramos e saiamos um pouco de nós mesmos, estendendo nossa atenção e nossos braços, como os do próprio Jesus, para amar e lutar pelos negros, pelo fim das opressões e desigualdades, pela erradicação do racismo e por uma sociedade melhor.
>> Leia também o primeiro artigo – O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo? – e o segundo – A Bíblia e as raízes míticas do racismo.
>> Leia também o primeiro artigo – O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo? – e o segundo – A Bíblia e as raízes míticas do racismo.
• Quéfren de Moura é doutoranda em Letras (Estudos Críticos da Bíblia Hebraica) na Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Letras (Estudos da Tradução) e graduada em História e Comunicação Social pela USP. Desde 2011, colabora com a Sociedade Bíblica do Brasil nas áreas de tradução e publicações, atuando como revisora de textos e consultora de traduções em preparação. Atualmente, também apoia projetos de tradução para línguas indígenas e de sinais.

>> Confira a nova edição da revista Ultimato: Racismo – A Bíblia, a igreja e uma conversa que nasce da dor
11 de setembro de 2020- Visualizações: 7507
comente!- +A
- -A
-
compartilhar

Leia mais em Opinião
Opinião do leitor
Para comentar é necessário estar logado no site. Clique aqui para fazer o login ou o seu cadastro.
Ainda não há comentários sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta é necessário estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o login ou seu cadastro.
Ainda não há artigos publicados na seção "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em Últimas
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu há...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e História
- Casamento e Família
- Ciência
- Devocionário
- Espiritualidade
- Estudo Bíblico
- Evangelização e Missões
- Ética e Comportamento
- Igreja e Liderança
- Igreja em ação
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Política e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Sessenta +
- Série Ciência e Fé Cristã
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Cristã
Revista Ultimato
+ lidos
- Dia da Bíblia 2025 – Bíblia, igreja e missão
- Tradução e discipulado: duas faces para o cumprimento da Grande Comissão
- Geração Z – o retorno da fé?
- Entre negociações, críticas e desesperança: o que eu vi na COP30
- Movimento missionário brasileiro – ao longo de tantas décadas há motivos para celebrar?
- O que acontece após o “Pr.”?
- Aprendendo a cultivar a vida cristã — Live de lançamento
- Movimento missionário brasileiro – a direção e o poder do Espírito Santo
- Cuidar do missionário à maneira de Deus
- Mobilização não pode ser mera cooptação
(31)3611 8500
(31)99437 0043
Como deixar de se odiar? Dez razões para ser quem nós somos e descobrir como Deus nos vê
Precisamos de novos líderes: Resposta ao clamor do século 21
A Bíblia é traduzida dos originais. Mas o que significa isto?
Acelerados, cansados e culpados






 copiar.jpg&largura=49&altura=65&opt=adaptativa)

