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Opinião

Os apelidos dos crentes no Brasil

Desde os tempos apostólicos, os discípulos do Senhor receberam muitas alcunhas que foram aplicadas pelos inimigos do Evangelho e, entre elas, podemos citar: “nazarenos” (At 24.5); “galileus” (At 2.7); “seita” (At 24.14), “os do caminho” (At 9.2; 19.23; etc), “cristãos” (At 11.26).

O apelido “cristão” foi aplicado aos crentes pelos habitantes de Antioquia (havia mais de vinte Antioquias...). É Lucas quem escreve: “... e em Antioquia foram os discípulos pela primeira vez, chamados cristãos” (At 11.26).

O povo antioqueno era mordacíssimo e se tornou famoso pelo seu amor às pilhérias e às sátiras. De modo que homens como Zózimo, Procópio e Julião não escaparam das suas zombarias. Este último foi apelidado de “açougueiro” e “bode”. De “bode”, porque ele usava uma barba longa à moda dos filósofos e de “açougueiro”, porque oferecia muitas vítimas nos altares dos deuses.

No Brasil, os evangélicos receberam muitos apelidos que tinham em vista ridicularizá-los. Em alguns lugares mofavam dos crentes compondo quadrinhas, com o apelido que cantavam nas ruas ou em lugares onde eles iam se reunir. O Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, no verbete “Protestante” insere: adj. 2 gên. “Que protesta”; relativo ao protestantismo; diz-se do partidário da Reforma (luteranos, calvinistas, anglicanos, etc); s. 2 gên. Partidária da Reforma (sinôn., neste sentido: huguenote e, em regiões diversas do Brasil, na linguagem popular, “bíblia”, “bode”, “frei-bode”, “crente”, “evangelista”, “missa-seca”, “nova-seita”).

O primeiro apelido que comentaremos vai ser: “o bíblia”. Salomão Ginsburg chegou até a fundar um jornal no Rio, em 1890, com o nome “O Bíblia”.

O nome do jornal era “O Bíblia”, porque os crentes, no Rio de Janeiro, eram chamados de “bíblias” porque levavam consigo a Bíblia. Em outros Estados são conhecidos como Protestantes ou Baptistas. O valor do jornalzinho, como agência de evangelismo, revelava-se no fato de que quase todos os crentes o recebiam e o mantinham, e ainda hoje o publicam sob o nome de “O Cristão”. 1

Boanerges Ribeiro comenta:

“Lá vem o batalhão das Bíblias” disse um guarda quando passamos em fila pelo quartel.

“Sim, e o senhor não bradou às armas?” – replicou alegremente um professor.
E, passamos a chamar nossa escola “Batalhão da Bíblia”. Tenho um retrato do grupinho; eram 28 crianças, 4 jovens estudantes de teologia, que são também, professores na escola, os outros professores e dois pastores. Ao todo, 40. Mandam saudações a vocês e pedem que orem pelo Batalhão da Bíblia, Rio de Janeiro. 2

Eurípedes Cardoso de Menezes escreve:

Desdenhosamente eram apelidados os protestantes de “os bíblias”. E, há algum tempo, quem citasse a Bíblia Sagrada era logo suspeito, no meio católico, de herege. 3

Ainda sobre a alcunha de “bíblias” dada aos evangélicos, no passado, aqui no Brasil, cito o que está em um conto de Lima Barreto:“Contra a profanação clamaram seus presbiterianos do lugar – “os bíblias”, como lhe chama o povo”. 4

Também Gilberto Freyre comenta sobre os apelidos:

Daí a importância que tomou aos olhos da Europa -- da Europa mais revolucionária, pelas novas máquinas e pela nova técnica de produção: a carbonífera -, a figura do engenheiro inglês, do Mister, do godene ou godeme (de Goddamn), do bife, do gringo, do gerente de estrada de ferro, de companhia de mineração ou de telégrafo, de importador de máquinas, do marinheiro, do brigue ou fragata, do SMB., do bíblia, do bode, do missa-seca, (quando protestantes), do baeta, do bicho, cujos dedos dos pés deviam ser contados para se ter a certeza de que não eram de satanás em pessoa”. 5

Outra alcunha: “nova-seita”. Frei Celestino de Pedávoli, fundador da “Liga Anti-Protestante”, com sede em Pernambuco, escreveu:

“Não vos iludais a respeito! acautelai-vos contra esses imprudentes NOVE-SEITAS, os quais sendo verdadeiros lobos disfarçados em peles de ovelhas, tentam ilaquear a vossa boa-fé, para moralmente assassinar-vos e precipitar-vos também no abismo da revolução e da anarquia... ... Mais do que nunca horrendamente injuriada, denegrida e vilipendiada pelos nova-seitas norte e sul-americanos... ... É uma superstição, é um fanatismo, é uma idolatria esse culto, gritam a bom gritar os “nova-seita”, recorrendo à Bíblia, interpretando-a despedaçando-a a seu talante... Só os protestantes, só os “nova-seita”, só os fiéis servos e sequazes de satanás!". 6

A alcunha nova-seita aparece em vários livros de polêmica, principalmente na década de 1900.

A alcunha de “evangelista” vem do fato de os evangélicos apelarem sempre para o evangelho. Em suas visitas ou em suas prédicas quer nas ruas, quer nos templos, quer nas congregações, quer em pontos de pregação, os evangélicos sempre faziam menção do Evangelho. Por darem tanta ênfase ao Evangelho, foi-lhe aplicada a alcunha de “evangelistas”. O citado frei Celestino escreveu:

“Farei, pois, reengulir a esse tal evangelista e por ele à Hidra infernal, cujo bode emissário é ele, a baba imunda que tornou a vomitar conta a excelsa criatura dos prodígios, ou prodígio excelso das criaturas, Maria sempre virgem e imaculada... ... mentira vossa senhor evangelista... ... Que tal senhor evangelista?... ... Entenda senhor evangelista”. 7

“Missa-seca” foi uma alcunha mais regional. Usaram-na no nordeste. É que os cultos dos evangélicos são desprovidos de qualquer ritual. Denominações como a batista, a pentecostal e outra não têm liturgia. O culto é simples e se compões de cânticos pela congregação, leitura da Bíblia, orações e pregação do Evangelho, o que é bem diferente da missa em que há muita liturgia, principalmente na tradicional.

“Nova-lei” foi um epíteto muito usado no sul. A escritora Otília Chaves que viveu por muitos anos em São Borja, RS comenta:

“Houve como que uma onde de boa vontade e entusiasmo, pelo trabalho da Igreja Metodista entre a população. Fizemos convites, e meu esposo fez algumas conferências no salão do Colégio de nossos hospedeiros. Muitas pessoas atenderam ao convite e se interessaram em participar de nossa fé, a qual, não sei por que, chamavam de “Nova-lei”. 8

Foi no Norte do país que os evangélicos receberam a maioria das alcunhas citadas. Ali sofreram, também, as mais atrozes perseguições. O apelido “Frei-bode” surgiu porque o missionário presbiteriano John Rockwell Smith usava cavanhaque. Isso foi lá por 1874. O Dr. John Mein escreve:

“Em 1874, o Rev. John Rockwell Smith, veio do Recife encetar uma série de conferências religiosas na cidade de Maceió. Ele foi apedrejado e sofreu da polícia que o proibiu continuar sua propaganda, intimando-o “a que se retirasse da província, e grosseiramente lhe disse o chefe de polícia, que calasse a boca, quando falou em enviar por escrito as suas justas reclamações.

“Os perseguidores do sr. Smith chamaram-no frei-bode porque usava cavanhaque, e , daí, todos os crentes em Alagoas foram chamados de Frei-Bode. Este apelido é ainda dado a todos que aderem ao Evangelho". 9

Na cidade de Laje do Canhoto, Alagoas, em 1921, os crentes eram chamados de “bodes”.

No Jornal “Correio da Tarde”, de Maceió, saiu o seguinte:

Laje 17.3.931. Amos. srs. redatores do “Correio da Tarde:

Cumprimento-os,
Zombando das autoridades, o padre Xavier continua cometendo desatinos: - transferiu a festividade do padroeiro, que se ia realizar na igreja, muito distante do templo evangélico, para a frente deste.

Ontem foi celebrada a primeira novena campal e, logo em seguida, cantando o hino “Pé de Bode”, da sua lavra, com a música da poesia “Pé de Anjo”, acompanhado pelo poviléu, pancadaria e pífano.

O vigário Xavier está provocando cenas lamentáveis e perturbando o sossego das famílias, que se julgam sem garantias. A maioria dos católicos está revoltada. Eis o hino:

“Oh! pé de bode...
Pé de bode tentador (bis)
Tens os pés tão grandes,
Que és capaz de pisar nosso Senhor. (bis)

“No beco do hotel,
Ninguém pode mais passar
Com os bodes e bodinhas,
Todos eles a berrar...

“Esta gente aqui na Lage
Quer ser coisa adiantada:
Nas garras de nós católicos,
Não dá nem uma pitada!
(Oh! pé de bode...)” 10

O historiador Antonio Neves de Mesquita narra que alguns querendo indispor o povo contra os evangélicos inventavam que eles tinham isso e aquilo. Daí ele dizer: “O povo começou a impressionar-se com a ousadia daqueles que alguns fanáticos supunham possuir ‘cascos e chifres’.” 11

Houve lugar em que para amedrontar o povo, inventavam que os crentes tinham os pés como os de “patos”...

“Hereges”. Esse epíteto é usado sempre, do norte ao sul do Brasil. É como que uma estigma. Carregamo-la com prazer, pois, se apoiamo-nos na Bíblia então “hereges são também os que a escreveram”.

“Protestantes” é um apelido mais universal. É mais aplicado àqueles que saíram da Reforma Luterana. Os batistas não saíram da Reforma. São anteriores a ela. Contudo, enobrecem a memória daqueles que souberam lutar para mostrar à humanidade o seu descaminho e souberam apresentar sua palavra de protesto na Dieta de Spira.

“Crente” é, realmente, a alcunha que expressa melhor o sentimento dos evangélicos. De norte ao sul do Brasil, e em todo o mundo, os servos do Senhor são chamados de “crentes”, o que significa que eles creem nos ensinos do Senhor Jesus Cristo de acordo com a Bíblia Sagrada.

Dos apelidos comentados (“bíblia”, “evangelista”, “nova-seita”, “bode”, “frei-bode”, “missa-seca”, “nova-lei”, “herege”, “protestante”, “crente”) o grande dicionarista Aurélio B. de Holanda registra: o “bíblia”, “bode”, “frei-bode”, “crente”, “evangelista”, “missa-seca”, “nova-seita”. Ele encontrou sete apelidos. Mas houve mais de uma dúzia em todo o Brasil.

Notas:
1 - Salomão Ginsburg. Um judeu errante no Brasil. Rio: JUERP, 1931, p.53.
2 - Boanerges Ribeiro. Protestantismo e Cultura Brasileira. S. Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981, p.270.
3 - Menezes, E.C. O Bom Pastor. Rio: Veritas, 1969, p.16.
4 - Lima Barreto, “A Nova Califórnia”, in Antologia Escolar de Contos Brasileiros, organizado por Herberto Sales. Rio: Edições de Ouro, 1976, p.47.
5 - Gilberto Freyre. Ingleses no Brasil,:Aspectos da Influência Britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. Rio: Livraria José Olympio Editora, 2ª edição, p.27.
6 - Frei Celestino Pedávoli. Combate ao Protestantismo, vol. 2, Pernambuco; Emp. D’A Província, 1904, pp.4, 38, 39, 40.
7 - Frei Celestino Pedávoli, op. Cit., pp.6, 8, 9, 11.
8 - Otília de Oliveira Chaves. Itinerário de uma vida. São Paulo: Imprensa Metodista, 1977, p.63.
9 - John Mein. A Causa Batista em Alagoas (1885-1926), Recife: Tipografia do C.B.A., 1929, p.9.
10 - John Mein, op.cit. pp. 45,46
11 - A. N. Mesquita. História dos Batistas do Brasil. Vol.II.Rio:Casa Publicadora Batista, 1940, p.72.

• Ebenézer Soares Ferreira, diretor do Seminário Teológico Batista de Niterói, presidente emérito da Convenção Batista Brasileira

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