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Opinião

Quando Stott se tornou um morador de rua

Por José de Segovia
 
Stott nunca gostou de exibir a própria espiritualidade, nem de fazer propaganda de seus atos de caridade. Por isso, até que seu biógrafo leu seu diário, ninguém conhecia a história de como o pastor desapareceu por alguns dias para se tornar um morador de rua.
 
Como se sente alguém sem casa, que vaga pela cidade sem teto? As grandes cidades estão cheias de moradores de rua. Em Londres, muitos se concentram ao longo do rio Tâmisa, na área do Embankment. Percorrem todo o centro da cidade, mas sem pedir nada. Geralmente, não se dedicam à mendicância.
 
Desde sua conversão evangélica, John Stott sentia um peso na consciência pela vida abastada que tinha levado, tendo recebido educação privilegiada como filho de um médico de classe alta. Para entender quem não tinha essas vantagens, quando se tornou pastor de sua igreja no centro de Londres, decidiu tornar-se um sem-teto por vários dias sem dizer nada a ninguém.
 
Stott nunca gostou de exibir a própria espiritualidade, nem de fazer propaganda de seus atos de caridade. Entendia, das palavras de Jesus no Sermão do Monte, que isso era farisaísmo. Pode ser que se lembrasse dos nomes de todos porque orava por todas as pessoas que conhecia, mas não anunciava isso. Da mesma forma, até que seu biógrafo Tim Dudley-Smith leu seu diário, ninguém conhecia a história de como o pastor desapareceu por alguns dias para se tornar um morador de rua.
 
Dormindo debaixo de uma ponte

No dia de Natal, Stott costumava visitar idosos solitários na vizinhança. Distribuía cerca de oitenta caixas de presentes da igreja para os lares mais necessitados. Em seguida, convidava um morador de rua para uma refeição em sua casa. O que mais ia era um homem chamado Harry Mossop. Em sua cozinha do porão na Rua Queen Anne, número um, ele fritava ovos com bacon para os dois. Talvez tenha tido a ideia por causa de Mossop, ou talvez pelo relato que leu na escola de George Dempster que se tornou um indigente para conhecer a vida dos sem-teto nas docas do East End de Londres.
 
O que Stott escreveu em seus diários é que “queria sentir o que é ser rejeitado pela sociedade”. Então: “Coloquei roupas muito velhas e deixei crescer a barba por vários dias”. No pós-guerra ainda havia carteiras de identidade na Grã-Bretanha, uma exigência que mais tarde desapareceu em muitos países europeus até hoje, como a Holanda. Colocou a identidade dentro de um sapato e começou a vagar ao longo do rio no Embankment. Passou a primeira noite sob a ponte que há naquela área próxima à estação Charing Cross. Estava rodeado de homens e mulheres cobertos de roupas esfarrapadas e jornais.
 
Obviamente, não dormiu quase nada. “O chão estava muito duro”, diz. E alguns bêbados faziam muito barulho. Não anota a data exata, mas foi em outubro ou novembro, ou seja, no início do inverno. Portanto, “fazia muito frio”. Na manhã seguinte, deu graças pelo sol que brilhava e dava um pouco de calor. Andou pelo East End, mas tinha tanto sono que adormeceu na cratera deixada por uma bomba alemã.
 
Vivendo de caridade

Quando as lojas abriam, os sem-teto se aproximavam dos locais onde se podia tomar chá, para que lhes dessem uma xícara quente. Stott se aproximou de vários que estavam limpando os degraus das portas. Não só não lhe deram nada para comer, como tampouco quiseram dar a ele sequer uma xícara de chá. Deliberadamente, não levava dinheiro. Dependia, portanto, da caridade alheia.
 
Na noite seguinte, fez fila do lado de fora de um dormitório para desabrigados do Exército de Salvação em Whitechapel, do outro lado do rio - o bairro dos crimes de Jack, o Estripador. O oficial que estava na recepção o tratou muito mal. Foi tão brusco e impaciente com o homem à sua frente, que Stott não pôde deixar de lhe dizer: “Como oficial do Exército de Salvação, você deveria tentar ganhar esse homem para Cristo, ao invés de falar com ele assim.” O oficial olhou intrigado para ele, talvez por causa de sua má imitação do sotaque “cockney” dos bairros pobres, escreve.
 
O dormitório não tinha qualquer divisória. Não havia privacidade, é claro! Passou outra noite horrorosa em meio a gritos de bêbados. Um ou dois daqueles homens, acredita Stott, tinham doenças mentais. No dia seguinte, foi tomar café da manhã em um refeitório de caridade. O homem que fazia as perguntas antes de entrar desconfiou de seu sotaque forçado. E lhe disse algo assim: “Acabou o teatro! Ou você nos diz quem é, ou não pode entrar”. Não revelou que era pastor, mas mostrou-lhe sua carteira de identidade e conseguiu tomar o café da manhã.
 
Uma igreja aberta

Depois de estar muito tempo doente, Earnshaw-Smith faleceu e Stott deixou de ser assistente para tornar-se reitor titular da igreja de All Souls, embora na prática já estivesse exercendo as funções há algum tempo. A primeira decisão que tomou foi romper com a tradição anglicana de bancos reservados. Geralmente, as famílias pagavam por eles e ninguém mais podia sentar-se naqueles lugares. Agora, qualquer um podia entrar e ocupar o lugar que quisesse.
 
Os cultos em 1951 ainda eram na igreja de St. Peter’s, onde ele me deu aulas no London Institute for Contemporary Christianity, que fundou no início dos anos 80. É um edifício muito menor que o de Langham, destruído pela guerra. Em St. Peter’s só cabiam entre quinhentas e seiscentas pessoas sentadas. Sua crescente reputação de bom pregador atraía tanta gente que era preciso chegar muito cedo para encontrar um lugar.
 
Stott procurou como assistente outro pastor solteiro que conhecia dos acampamentos de alunos de escolas privadas e do grupo evangélico de estudantes em Cambridge (CICCU), John Collins. Como a viúva do reitor anterior ainda estava na casa pastoral, Stott continuou vivendo com a família “quaker” do início e seu assistente foi para um hotel dilapidado na praça Manchester, cheio de alcoólatras. Era então que Packer esteve prestes a ir para All Souls, mas estava esperando uma bolsa de estudos para ir para os Estados Unidos.

 
Não só médicos

Por estar ao lado da Harley Street, rua onde viviam e tinham consultórios os médicos mais prestigiados, All Souls era conhecida como “a igreja dos doutores”. A propósito, os pais de Stott não viviam mais ali, desde que seu pai fora para a guerra como coronel médico-militar, já que, ao regressar, tinha se aposentado do hospital. Moravam em um lugar chamado Worplesdon, perto de Guildford. Stott manteve o culto anual para “doutores”, vinte anos depois ampliado a qualquer profissional de saúde, incluídas as enfermeiras. Por causa dos horários de plantão, promovia também um estudo bíblico para médicos, no salão da igreja, às sextas-feiras às sete da manhã, antes do trabalho no hospital.
 
É curioso que as duas igrejas mais conhecidas pelas pregações naquela época, Westminster Chapel e All Souls, tivessem pastores com antecedentes médicos de prestígio. Lloyd-Jones tivera consultório na Harley Street e Stott vinha de uma família de renomados cardiologistas. Devido ao conflito que tiveram muito tempo depois, alguns imaginam que havia alguma rivalidade entre eles. Não era o caso. Um estudante recorda uma conversa num domingo à tarde com Stott, depois do culto, na porta da igreja: “Olá!” disse Stott, “pensava que você ia a Westminster Chapel”. Tímido e algo envergonhado, o jovem gaguejou: “Não, eu não sou fã do grande Doutor”. A resposta de Stott foi: “Não? Pois eu sou!”
 
No verão de 1952, foram concluídas as reformas da reitoria em 12 Weymouth Street, que foi o endereço de Stott a vida toda. Fica a somente cinco minutos de caminhada da All Souls. É um edifício estreito no qual Stott ocupava apenas o sótão do quarto andar. Para chegar até lá, quando nos convidava, era preciso subir noventa e três degraus. Tinha só dois cômodos, a sala onde nos sentávamos no chão e um pequeno quarto. Funcionários da All Souls ocupavam o resto dos quartos.
 
Stott é visto por muitos como um professor, mas tinha o coração de um evangelista.
 
Ali recebia as visitas de jovens pastores amigos desde os dias de acampamento. Um deles, Richard Gorrie, lembra-se de um domingo em que tirou folga de sua igreja em Oxford para ouvir Stott. Teve a oportunidade de ouvi-lo não só duas, mas três vezes. Quando terminou o último culto, Stott o convidou para jantar, e ao passar por um morador de rua conhecido, o “tio John” o levou para casa para comer. Naquela noite, o sem-teto dormiu na sua cama e Stott em um saco de dormir que usava em acampamentos.
 
Estilo de vida simples

Os americanos sempre se surpreendiam com seu modo de vida frugal. E quando começaram a convidá-lo a ir aos Estados Unidos, pode-se imaginar como para ele parecia ultrajante o luxuoso modo de vida dos pastores americanos. Eles eram fascinados por Stott. Alguns percorreriam grandes distâncias só para ouvir sua perfeita dicção de escola privada britânica. Sua forma de falar era tão correta que lhes parecia um locutor da BBC. Ficavam encantados com seu sotaque.
 
Alguns iam além de sua pronúncia e ficavam surpresos com sua forma de pregação expositiva. Como Lloyd-Jones, Stott não só explicava o texto, mas seguia de forma consecutiva os diferentes livros da Bíblia. Ele costumava fazer seções maiores do que os versos sobre os quais o médico galês convertido em pregador fazia três, quatro ou mais sermões. E todos diferentes, é claro! Não era um estudo bíblico versículo por versículo, como fazem pregadores como MacArthur, mas autênticos sermões. O que se denomina pregação expositiva nos Estados Unidos é algo diferente do que conhecemos na Europa. São duas tradições distintas.
 
O conhecido pregador americano Wilbur Smith foi ouvi-lo num domingo de verão nos anos 50. Viu a igreja cheia, de manhã e à noite, embora estivesse chovendo. No segundo culto, havia muitos jovens e estudantes. Stott pareceu-lhe tão evangélico que escreveu que nunca havia ouvido um anglicano falar assim: “Não era nada ritualístico, era o Evangelho não adulterado”. Pregou sobre a cura de Naamã. Smith nunca tinha ouvido o texto exposto daquela forma. Stott - que estimava ter uns quarenta anos, embora não passasse de 35, pois sempre parecia um pouco mais velho do que era - pregou que só há uma cura para a doença do pecado, a saúde que Cristo, como Cordeiro de Deus, traz por seu sangue derramado no Calvário.
 
Os meninos de rua

Embora Stott tivesse aprendido a falar nos acampamentos, não havia nada menos parecido com os alunos daquelas escolas privadas do que os meninos de rua do West End de Londres. Muitos vinham de famílias gregas ou turcas, que hoje chamaríamos disfuncionais, todos elas. Deixavam a escola aos 14 anos e distribuíam jornais, ou trabalhavam no mercado. Stott fazia acampamentos com eles. Levava os meninos em um jipe que havia comprado do exército holandês. Outras vezes, os convidava a comer ovos com batatas fritas em um café em frente ao hospital. Até servia de árbitro de futebol quando os levava para jogar no Regent’s Park. Poucos se converteram, mas frequentavam a igreja.
 
Meio século depois, ele ainda se lembrava do nome de cada um deles, como pude observar. Todos tinham lembranças preciosas daqueles acampamentos em barracas de lona, onde os despertava com um acordeão. Havia uma barraca para meditar em silêncio. Se acordavam cedo, viam Stott ali de joelhos, orando por eles. Ao ser descoberto, dizia, com sua habitual falta de orgulho espiritual, que estava de joelhos para conseguir ficar acordado. Chamava a atenção deles que Stott fizesse a barba com uma faca de montanha em vez de uma navalha. Aqueles meninos de rua aprenderam, pela primeira vez, os nomes dos pássaros que ele os ensinava a olhar deitados no chão.
 
Quando foi nomeado reitor, escreveu no boletim da igreja: “Há uma questão que pesa especialmente em meu coração, que é como alcançar essas multidões famintas sem Cristo”. Stott é visto por muitos como um professor, mas tinha o coração de um evangelista. O Guia que escreveu para visitantes naquela época diz: “Nosso grande desejo é conduzir homens e mulheres, não a nós, não à igreja, mas a Jesus Cristo. Ele é o centro da nossa visão, o objeto do nosso testemunho. Temos três convicções inabaláveis sobre Ele: quem é, o que veio fazer e o que nos pede.” Diante de Deus, “não há diferença”, intitulou seu primeiro sermão: “Todos pecamos” (Romanos 3.22-23), mas “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (10.12-13). Essa é a pregação do evangelho!
 
• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros EntrelíneasOcultismoHistorias Extrañas Sobre JesúsEl Príncipe Caspian y La Fe de C. S. LewisMarcas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
 
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
 
Tradução: Davi A. O. Pinto.

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