Opinião
- 19 de fevereiro de 2021
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O vento continua a soprar
O Espírito Santo na perspectiva do Antigo Testamento
Por Paulo Teixeira
O interesse dos cristãos pelo termo “Shekhinah”
Volta e meia, alguém pergunta à Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) em que passagens do Antigo Testamento o termo “shekhinah” aparece. A resposta pode decepcionar, mas esta palavra – por mais bonita que soe – não aparece na Bíblia. O termo é bastante usado na literatura rabínica, extrabíblica, inclusive em discussões medievais, e pode ser traduzido por “presença”.
“Shekhinah” vem de uma raiz antiga e significa “habitação” ou “presença”. Mas há ocorrências bíblicas do verbo que lhe dá origem (“sh-kh-n”) em passagens como Salmo 37.3: “Confie no SENHOR e faça o bem; habite [“shekhan”] na terra e alimente-se da verdade” (NAA), e em Êxodo 40.35: “Moisés não podia entrar na tenda do encontro, porque a nuvem permanecia [“shakhan”] sobre ela, e a glória do SENHOR enchia o tabernáculo” (NAA).
Trechos do Novo Testamento em que os escritores bíblicos associam explicitamente uma “nuvem” com a manifestação de Deus – em especial Marcos 9.7-11 e Atos 1.9-11, respectivamente a transfiguração e a ascensão de Jesus – levaram os cristãos a ler Êxodo 40.35 nesta mesma perspectiva. A nuvem indicava a presença, a habitação ou a manifestação de Deus em dados momentos da história de seu povo. E como na transfiguração de Jesus a nuvem remete a Deus Espírito Santo (já que o Pai está manifesto na voz vinda do céu e o Filho está no monte sendo glorificado), muitos cristãos acabam associando a “Shekhinah” (“presença”) ao Espírito Santo de Deus, e daí o compreensível interesse pelo entendimento do termo, que, como dito, a rigor, não aparece na Bíblia.
“Rúach” no Antigo Testamento
O termo “rúach”, este sim, aparece inúmeras vezes na Bíblia Hebraica, em passagens como Gênesis 1.2, 1Samuel 16.13, Salmo 143.10, Isaías 42.1 e 44.3, e Joel 2.28, entre outras.
Seu significado mais básico é “vento”, elemento dinâmico e transformador, em constante movimento no universo. Deriva daí traduzir-se “rúach” como “espírito”, que, à semelhança do vento físico, rompe a inércia dos elementos e irrompe como vida na criação.
No Antigo Testamento, às vezes “rúach” se refere ao espírito do ser humano e às vezes ao Espírito de Deus. Em Salmo 51.11 e Isaías 63.10-11, o termo aparece associado ao qualificativo “kódesh”, formando o nome “Espírito Santo”. A seguir, três campos de ação do Espírito de Deus no Antigo Testamento.
“Rúach” no despertar da criação
Em Gênesis 1.2, quando “a terra era sem forma e vazia”, o Espírito de Deus “se movia sobre as águas”. O “mover” ou “flanar” descreve bem o comportamento do Espírito de Deus na criação ainda informe e vazia, com um caos ainda por superar. O Espírito é dinâmico; podemos imaginar seu sobrevoo como algo contemplativo, mas também abençoador; um mover que acaricia a criação, preparando-a para o despontar dos elementos e da vida.
Em Gênesis 2.7, esta ação divina se volta para o próprio ser humano, que, de boneco recém-moldado do pó da terra, recebe em suas narinas, soprado (em hebraico, “yipach”) por Deus, o “fôlego da vida” (em hebraico, “nishmát hayyim”), tornando-se “um ser vivente” (em hebraico, “néphesh hayah”) ou “um ser que respira”.
Embora “rúach” não apareça diretamente em Gênesis 2.7, o contexto semântico de termos como “sopro”, “fôlego” e “respiração” nos leva a nele lembrar do “vento” ou do “Espírito”/“espírito” da criação. O “rúach” esteve presente ativamente naquele momento primevo, contemplando, abençoando e enchendo de vida a terra e o ser humano.
“Rúach” na proclamação da Palavra “re-criadora”
O “Vento” vivificador de Deus segue abençoando a criação ao soprar por meio da proclamação da Palavra “re-criadora” e do sustentar dos seus profetas e do seu povo.
Em Isaías 61.1ss, texto que viria a ser pregado por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lucas 4.15-30), o servo escolhido por Deus afirma que “o Espírito do SENHOR Deus está” sobre ele, e que o SENHOR o ungiu para “pregar boas-novas”. O Espírito de Deus levantou os profetas e estava com o próprio Jesus em seu ministério de proclamação da boa notícia (em grego, “euangélion”, “evangelho”) da salvação.
Não por acaso, para não deixar os seus seguidores se sentirem abandonados ou órfãos (João 14.18), Jesus promete que voltará para eles; mas, nesse meio-tempo, eles poderiam contar com a presença do mesmo Espírito que o ungiu e o acompanhou em sua missão, o mesmo Espírito que levantara os profetas no Antigo Testamento. Este Espírito, aliás, por meio da inspiração dos escritores do Novo Testamento, nos ajuda a lembrar tudo aquilo que Jesus disse (João 14.26).
Em Ezequiel 37.1, é este Espírito de Deus quem leva o profeta para “o meio de um vale que estava cheio de ossos”, ossos que representavam o povo de Israel, um povo cansado e sem esperança. Pouco a pouco, obedecendo à ordem de Deus, Ezequiel vai profetizando (“pregando”) para os ossos, e eles se revestem de tendões, músculos, carne e pele, “mas não havia neles o espírito” (Ezequiel 37.8). Apenas quando o “rúach”/“Rúach” entra nos corpos inertes é que eles vivem e se levantam, formando “um enorme exército”. O texto de Ezequiel 37.14 encerra com uma promessa: “Porei em vocês o meu Espírito, e vocês viverão.”
Em Joel 2.28ss, Deus promete derramar o seu Espírito sobre toda a humanidade, o que, na visão cristã neotestamentária, se cumpre no Pentecostes registrado em Atos 2. Apenas este Espírito é que consegue inspirar pessoas em idade avançada a terem sonhos e a fazerem planos para o futuro, bem como jovens – sem muita experiência de vida – a profetizarem e a terem visões, engajando-se na proclamação da Palavra que ressuscita mortos-vivos, traz esperança, restaura o ânimo e alinha propósitos pessoais com os desígnios do Criador.
O Vento continua a soprar
Ainda hoje, o Espírito de Deus continua em ação. No concerto da Trindade – na economia de Deus, como ensinou Irineu de Lion (séc. 2º) –, cabe-lhe continuar em movimento, inspirando corações a ouvirem a voz de Deus. E o Espírito Santo faz isso com generosidade. Sua Palavra está cada vez mais disponível para que Deus esteja presente na vida de todas as pessoas do mundo em sua própria língua, inclusive nas línguas de sinais.
Da criação aos dias de hoje, o Espírito continua soprando para que mais pessoas possam chamar a Cristo de “Senhor Jesus! Senhor!” (1Coríntios 12.3, NAA). É o Espírito que, buscando restaurar a imagem de Deus em nós, nos conduz a Cristo e, como lembrou Lutero, “ter a Cristo é ter o Cordeiro que carrega nossos pecados e derrama o Espírito Santo para nos restaurar e consolar. Este Espírito é quem nos dá ânimo diante de todo e qualquer infortúnio.”
Que o Vento continue a soprar em nós e por meio de nós!
• Paulo Teixeira é secretário de Tradução e Publicações da Sociedade Bíblica do Brasil.
>> Confira a edição de março/abril da revista Ultimato: Saudades do Pentecostes
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