Opinião
05 de março de 2021- Visualizações: 4381
comente!- +A
- -A
-
compartilhar
O Espírito Santo: pomba, fogo ou cifrão?
Por Maurício Zágari
Logo nos primeiros séculos da era cristã, teólogos apreenderam a realidade da Trindade, como Inácio (Carta aos Efésios, 9.1; 18.2), Clemente (1 Clemente 42; 46.6) e Tertuliano (Adversus Praxean 2.4; 8.7). E, com a compreensão, veio a inevitável interpretação, sujeita à subjetividade e à falibilidade humanas. O resultado previsível foi que, em pouco tempo, começaram a surgir divergências de entendimento sobre a essência, a atuação e o papel de cada pessoa da Trindade. Apesar dos dois mil anos de estudos e debates teológicos que nos precederam, hoje, continuamos sujeitos a divergências de interpretação. O resultado é que elementos teológicos acabam submetidos a entendimentos frequentemente díspares, se não opostos e contraditórios. Um exemplo bastante visível na terceira década do século 21 é a forma plural e heterogênea como entendemos a ação do Espírito Santo — com desdobramentos bastante pragmáticos. O entendimento pneumatológico da igreja evangélica brasileira vem passando por transformações desde o advento do pentecostalismo, passando pelo movimento carismático e, posteriormente, pelo neopentecostalismo. Se, historicamente, a ênfase no Espírito Santo tem sido a do parakletos, o consolador, conselheiro e encorajador, no último século começou-se a enfatizar o vento forte e impetuoso. A pomba deu lugar ao fogo como representação majoritária, o que é perceptível, por exemplo, das logomarcas das igrejas ao subgênero musical amplamente difundido dos “corinhos de fogo”.
Desde o início do movimento pentecostal moderno, ganhou força o conceito do poder de Deus. Assim, frequentemente, a liturgia, a pregação e a práxis de vida do cristão pentecostal passaram a dar grande peso à busca pela manifestação do poder do Espírito Santo, capaz de realizar milagres e prodígios e manifestar carismas. Nesse sentido, ganhou destaque o fenômeno do batismo no Espírito Santo, entendido dentro da teologia pentecostal de forma diferente da visão histórica.
John Stott descreve com precisão o entendimento histórico de que o batismo no Espírito Santo é sinônimo de salvação em sua obra Batismo e plenitude do Espírito Santo (Vida Nova). A teologia pentecostal entrou em choque com essa visão ao interpretar o conceito de batismo no Espírito Santo como um revestimento de poder posterior à salvação, voltado à proclamação do evangelho e que costuma ser associado no dia a dia das igrejas ao recebimento de dons (cf. 1Co 12.7-11).
Eruditos contemporâneos têm promovido a visão pentecostal clássica, como Craig Keener (autor de obras como A hermenêutica do Espírito, A mente do Espírito e O Espírito na Igreja — Vida Nova), Roger Stronstad (Teologia bíblica pentecostal e Hermenêutica pentecostal — Carisma) e Robert Menzies (Pentecostes: Essa história é a nossa história — CPAD; e No poder do Espírito — Carisma). Entre os autores brasileiros, Gutierres Siqueira, autor de obras como Revestidos de poder (CPAD), e Silas Daniel, autor de O Batismo no Espírito e as Línguas como sua Evidência (CPAD) são alguns dos nomes que vêm investindo na defesa dessa teologia.
O movimento pentecostal levou ao surgimento do movimento carismático, que importou crenças pentecostais clássicas para dentro de igrejas históricas, e o movimento neopentecostal, que hipervalorizou a importância de milagres e exorcismos e da concessão de bênçãos materiais. Assim, no neopentecostalismo, o consolador, conselheiro e encorajador tornou-se o libertador, curador e enriquecedor — para aqueles que têm fé.
Essa pluralização trouxe desdobramentos. Hoje, é impossível se falar de um entendimento pneumatológico único da igreja evangélica brasileira. Cada comunidade local ou denominação compreende o Espírito Santo e se relaciona com ele a partir da teologia que abraça, mais ou menos influenciada pelos movimentos supracitados.
Se há segmentos que lutam arraigadamente por combater os entendimentos carismáticos e resgatar a percepção histórica, o fato é que essas formas de compreender a ação do Espírito Santo parecem ter chegado para ficar. Segundo o World Council of Churches, pentecostais, carismáticos e neopentecostais já compõem a maioria dos cristãos não católicos no mundo e os números crescem ano a ano, com desdobramentos evidentes em diferentes áreas, como a musical, a litúrgica, a homilética, a estética e a eclesiológica. Tudo muito visível em eventos como o Fire e o The Send, no chamado movimento de churches e na letra das músicas de grupos e cantores de música gospel.
Para alguns, os novos caminhos são uma corrupção da ortodoxia. Para outros, liberdade de ação para o Espírito. Para outros, ainda, avivamento. Tudo vai depender da teologia que se abraça. Nossa oração é que, em meio a essa multidão de vozes, a Igreja jamais perca de vista uma das mais assertivas afirmações bíblicas acerca da ação do parakletos: “sabemos quanto Deus nos ama, uma vez que ele nos deu o Espírito Santo para nos encher o coração com seu amor.” (Rm 5.5).
• Maurício Zágari é teólogo, diretor editorial da GodBooks, autor de vários livros publicados, comentarista bíblico e jornalista.
Leia mais
>> Confira a edição de março/abril da revista Ultimato: Saudades do Pentecostes
05 de março de 2021- Visualizações: 4381
comente!- +A
- -A
-
compartilhar

Leia mais em Opinião
Opinião do leitor
Para comentar é necessário estar logado no site. Clique aqui para fazer o login ou o seu cadastro.
Ainda não há comentários sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta é necessário estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o login ou seu cadastro.
Ainda não há artigos publicados na seção "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em Últimas
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu há...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e História
- Casamento e Família
- Ciência
- Devocionário
- Espiritualidade
- Estudo Bíblico
- Evangelização e Missões
- Ética e Comportamento
- Igreja e Liderança
- Igreja em ação
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Política e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Sessenta +
- Série Ciência e Fé Cristã
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Cristã
Revista Ultimato
+ lidos
- Quem são e o que querem os evangélicos na COP30
- Dicas para uma aula de EBD (parte 1): Planeje a aula e o seu preparo pessoal
- Homenagem – Márcio Schmidel (1968–2025)
- Ultimato na COP30
- Vaticano limita a devoção a Maria na Igreja Católica
- Com Jesus à mesa: partilha que gera o milagre
- Acessibilidade no Congresso Brasileiro de Missões (CBM) 2025
- Sociedade Bíblica do Brasil dá início ao Mês da Bíblia 2025
- Geração Z – o retorno da fé?
- Dicas para uma aula de EBD (parte 2): Mostre o que há de melhor no conteúdo
(31)3611 8500
(31)99437 0043
A unidade da Igreja como mandato de Jesus
Atentado a mando de Deus. Que Deus?
12 lições para aproveitar bem o tempo
Uma liturgia para o retorno





 copiar.jpg&largura=49&altura=65&opt=adaptativa)


