Opinião
- 04 de agosto de 2010
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Milagres?
Karl Heinz Kienitz
Somos um povo alegre e festeiro o ano todo, mas é por ocasião do Natal e da Páscoa, que a maioria das famílias brasileiras passa momentos especialmente agradáveis; é quando visitas de parentes e amigos, decoração especial e mesas fartas tornam palpável o aconchego festivo que se instala em nossos lares. O clima de festa de fato se justifica, pois, embora às vezes passe desapercebido, as duas datas existem para a comemoração de dois grandes feitos inusitados de Deus. No Natal comemoramos o nascimento de Jesus, no qual Deus “tornou-se homem e viveu aqui na Terra entre nós, cheio de amor e perdão, cheio de verdade”.1 Na Páscoa recordamos um evento absolutamente extraordinário, resumido por Simão Pedro em uma de suas célebres frases: “Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas disso”.2
Mesmo assim, para muitos o cristianismo é pedra de tropeço justamente por resultar de uma fé alicerçada em feitos inusitados de Deus, ou milagres, entre os quais os do Natal e da Páscoa são os mais significativos. Foram eventos marcantes – acontecimentos que selaram a fé cristã como única. O problema é que milagres parecem pertencer a uma visão de mundo estranha, pré-científica, supersticiosa, talvez adequada para a Antiguidade ou Idade Média, mas não para hoje.
Ceticismo com milagres já existiu na Antiguidade. Sua manifestação contemporânea, porém, tomou forma durante o Iluminismo. O filósofo David Hume (1711-1776), um dos primeiros mentores do ceticismo atual, dizia, referindo-se ao cristianismo, que “nossa mais santa religião é fundamentada na fé, não na razão”, completando em tom de deboche que “a religião cristã não somente foi inicialmente atendida com milagres, mas até este dia não pode ser crida por uma pessoa razoável sem um milagre. Simples razão é insuficiente para convencer-nos da sua veracidade; e quem é movido por fé para aceitá-la, está consciente de um milagre contínuo em sua própria pessoa, que subverte todos os princípios de seu entendimento, e dá-lhe uma determinação para crer o que é o mais contrário ao costume e à experiência”.3
Será que, como propalado por Hume e outros, a fé cristã depende de uma “subversão dos princípios do entendimento”? É esclarecedor ler o que o físico Alessandro Volta (1745-1827, homenageado no Volt, a unidade de tensão elétrica do Sistema Internacional de Unidades) tem a dizer sobre o assunto: "Submeti as verdades fundamentais da fé a um estudo minucioso. Li as obras dos apologetas e de seus adversários, avaliei as razões a favor e contra e assim obtive argumentos relevantes que tornam a religião [bíblica] tão digna de confiança ao espírito científico que uma alma com pensamentos nobres ainda não pervertida por pecado e paixão não pode senão abraçá-la e afeiçoar-se a ela".4
Como explicar esta enorme diferença entre as convicções de Hume e de Volta? C.S. Lewis (1898-1963), professor da Universidade de Cambridge e criador de “Narnia”, aponta o problema de Hume: “É claro que devemos concordar com Hume que, se ...[milagres] jamais aconteceram, então realmente nunca aconteceram. Infelizmente, só sabemos que a experiência contra eles é uniforme se conhecemos que todos os relatos sobre eles são falsos. E só podemos saber que todos os relatos são falsos se já sabemos que milagres jamais ocorreram. Na verdade estamos argumentando num círculo vicioso”.5
G. K. Chesterton, um dos mais prolíficos escritores ingleses do século 20, arremata: “Surgiu de algum modo a ideia extraordinária de que os descrentes de milagres os analisam com frieza e justiça, ao passo que os crentes em milagres os aceitam apenas em conexão como algum dogma. O fato é totalmente o contrário. Os que creem em milagres os aceitam (com ou sem razão) porque têm provas deles. Os que não creem neles os negam (com ou sem razão) porque têm uma doutrina contra eles... Somos nós, os cristãos, que aceitamos todas as provas reais – são vocês, os racionalistas, que refutam as provas reais e são obrigados a fazê-lo pelo seu credo”.6
O ceticismo debochado do filósofo Hume é, pois, insustentável. Cientistas cristãos como Volta, sabendo que milagres são eventos extraordinários com significância religiosa, operados por Deus e inacessíveis ao método científico, não têm problemas com eles, pois sabem que não é sua tarefa explicá-los; limitam-se a verificar evidências de sua ocorrência. Francis Collins, cientista chefe do Projeto Genoma Humano, confirma este entendimento: “Eu não tenho problemas com o conceito que milagres podem ocasionalmente ocorrer em momentos de grande significado, onde há uma mensagem sendo transmitida a nós por Deus onipotente. Mas como cientista adotei padrões muito elevados para milagres”.7
Por outro lado, um cristão algumas vezes se pergunta onde estão hoje todos aqueles milagres relatados na Bíblia e qual sua relevância para nós. Nessas ocasiões convém recordar como Asafe, o cantor, se dirigiu a Deus numa frase que expressa uma certeza experimentada e compartilhada por muitas outras pessoas: “Deus, eu lembrarei dos teus feitos maravilhosos! ...Tu és o Deus que faz milagres”.8
Quanto mais presente tivermos Deus como um Deus que opera também coisas inusitadas, mais confiantes estaremos ao enfrentarmos tempos difíceis. No outro extremo há cristãos pós-modernos que esperam de Deus uma solução para cada dificuldade por meio de milagres sob encomenda e medida. A Bíblia não induz a tal expectativa. Ela ensina que Deus cuida de nós e manifesta seu cuidado conosco até mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia, mas que seus pensamentos e ações estão muito acima dos nossos.9 Em resumo, no caminhar constante com Deus, o cristão reconhece de forma humilde e grata que tudo de bom provém de Deus e que ele é “socorro que não falta em tempos de aflição”.10 Pois fé cristã alicerça-se nos milagres de Deus, mas é fé em Deus; não é fé no poder de Deus, nem nos milagres de Deus.
Notas
1. O Livro, em João 1.14.
2. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Atos 2.32.
3. David Hume, Enquiry Concerning Human Understanding.
4. Traduzido de J. Gutzwiller, Das Herz etwas zu wagen, Friedrich Bahn Verlag, 2000. Também citado em K.A. Kneller, Christianity and the leaders of modern science, B. Herder, 1911 (disponível em books.google.com.br).
5. C.S. Lewis, Miracles.
6. G.K. Chesterton, Ortodoxia, 1a edição, Mundo Cristão, 2008.
7. Em entrevista à revista National Geographic, número de fevereiro de 2007.
8. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Salmo 77.11 e 14.
9. Pode-se ler sobre isto na Bíblia em 1. Pedro 5.7, Atos 14.17 e Isaías 55.7.
10. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Salmo 46.1.
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Somos um povo alegre e festeiro o ano todo, mas é por ocasião do Natal e da Páscoa, que a maioria das famílias brasileiras passa momentos especialmente agradáveis; é quando visitas de parentes e amigos, decoração especial e mesas fartas tornam palpável o aconchego festivo que se instala em nossos lares. O clima de festa de fato se justifica, pois, embora às vezes passe desapercebido, as duas datas existem para a comemoração de dois grandes feitos inusitados de Deus. No Natal comemoramos o nascimento de Jesus, no qual Deus “tornou-se homem e viveu aqui na Terra entre nós, cheio de amor e perdão, cheio de verdade”.1 Na Páscoa recordamos um evento absolutamente extraordinário, resumido por Simão Pedro em uma de suas célebres frases: “Deus ressuscitou este Jesus, e todos nós somos testemunhas disso”.2
Mesmo assim, para muitos o cristianismo é pedra de tropeço justamente por resultar de uma fé alicerçada em feitos inusitados de Deus, ou milagres, entre os quais os do Natal e da Páscoa são os mais significativos. Foram eventos marcantes – acontecimentos que selaram a fé cristã como única. O problema é que milagres parecem pertencer a uma visão de mundo estranha, pré-científica, supersticiosa, talvez adequada para a Antiguidade ou Idade Média, mas não para hoje.
Ceticismo com milagres já existiu na Antiguidade. Sua manifestação contemporânea, porém, tomou forma durante o Iluminismo. O filósofo David Hume (1711-1776), um dos primeiros mentores do ceticismo atual, dizia, referindo-se ao cristianismo, que “nossa mais santa religião é fundamentada na fé, não na razão”, completando em tom de deboche que “a religião cristã não somente foi inicialmente atendida com milagres, mas até este dia não pode ser crida por uma pessoa razoável sem um milagre. Simples razão é insuficiente para convencer-nos da sua veracidade; e quem é movido por fé para aceitá-la, está consciente de um milagre contínuo em sua própria pessoa, que subverte todos os princípios de seu entendimento, e dá-lhe uma determinação para crer o que é o mais contrário ao costume e à experiência”.3
Será que, como propalado por Hume e outros, a fé cristã depende de uma “subversão dos princípios do entendimento”? É esclarecedor ler o que o físico Alessandro Volta (1745-1827, homenageado no Volt, a unidade de tensão elétrica do Sistema Internacional de Unidades) tem a dizer sobre o assunto: "Submeti as verdades fundamentais da fé a um estudo minucioso. Li as obras dos apologetas e de seus adversários, avaliei as razões a favor e contra e assim obtive argumentos relevantes que tornam a religião [bíblica] tão digna de confiança ao espírito científico que uma alma com pensamentos nobres ainda não pervertida por pecado e paixão não pode senão abraçá-la e afeiçoar-se a ela".4
Como explicar esta enorme diferença entre as convicções de Hume e de Volta? C.S. Lewis (1898-1963), professor da Universidade de Cambridge e criador de “Narnia”, aponta o problema de Hume: “É claro que devemos concordar com Hume que, se ...[milagres] jamais aconteceram, então realmente nunca aconteceram. Infelizmente, só sabemos que a experiência contra eles é uniforme se conhecemos que todos os relatos sobre eles são falsos. E só podemos saber que todos os relatos são falsos se já sabemos que milagres jamais ocorreram. Na verdade estamos argumentando num círculo vicioso”.5
G. K. Chesterton, um dos mais prolíficos escritores ingleses do século 20, arremata: “Surgiu de algum modo a ideia extraordinária de que os descrentes de milagres os analisam com frieza e justiça, ao passo que os crentes em milagres os aceitam apenas em conexão como algum dogma. O fato é totalmente o contrário. Os que creem em milagres os aceitam (com ou sem razão) porque têm provas deles. Os que não creem neles os negam (com ou sem razão) porque têm uma doutrina contra eles... Somos nós, os cristãos, que aceitamos todas as provas reais – são vocês, os racionalistas, que refutam as provas reais e são obrigados a fazê-lo pelo seu credo”.6
O ceticismo debochado do filósofo Hume é, pois, insustentável. Cientistas cristãos como Volta, sabendo que milagres são eventos extraordinários com significância religiosa, operados por Deus e inacessíveis ao método científico, não têm problemas com eles, pois sabem que não é sua tarefa explicá-los; limitam-se a verificar evidências de sua ocorrência. Francis Collins, cientista chefe do Projeto Genoma Humano, confirma este entendimento: “Eu não tenho problemas com o conceito que milagres podem ocasionalmente ocorrer em momentos de grande significado, onde há uma mensagem sendo transmitida a nós por Deus onipotente. Mas como cientista adotei padrões muito elevados para milagres”.7
Por outro lado, um cristão algumas vezes se pergunta onde estão hoje todos aqueles milagres relatados na Bíblia e qual sua relevância para nós. Nessas ocasiões convém recordar como Asafe, o cantor, se dirigiu a Deus numa frase que expressa uma certeza experimentada e compartilhada por muitas outras pessoas: “Deus, eu lembrarei dos teus feitos maravilhosos! ...Tu és o Deus que faz milagres”.8
Quanto mais presente tivermos Deus como um Deus que opera também coisas inusitadas, mais confiantes estaremos ao enfrentarmos tempos difíceis. No outro extremo há cristãos pós-modernos que esperam de Deus uma solução para cada dificuldade por meio de milagres sob encomenda e medida. A Bíblia não induz a tal expectativa. Ela ensina que Deus cuida de nós e manifesta seu cuidado conosco até mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia, mas que seus pensamentos e ações estão muito acima dos nossos.9 Em resumo, no caminhar constante com Deus, o cristão reconhece de forma humilde e grata que tudo de bom provém de Deus e que ele é “socorro que não falta em tempos de aflição”.10 Pois fé cristã alicerça-se nos milagres de Deus, mas é fé em Deus; não é fé no poder de Deus, nem nos milagres de Deus.
Notas
1. O Livro, em João 1.14.
2. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Atos 2.32.
3. David Hume, Enquiry Concerning Human Understanding.
4. Traduzido de J. Gutzwiller, Das Herz etwas zu wagen, Friedrich Bahn Verlag, 2000. Também citado em K.A. Kneller, Christianity and the leaders of modern science, B. Herder, 1911 (disponível em books.google.com.br).
5. C.S. Lewis, Miracles.
6. G.K. Chesterton, Ortodoxia, 1a edição, Mundo Cristão, 2008.
7. Em entrevista à revista National Geographic, número de fevereiro de 2007.
8. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Salmo 77.11 e 14.
9. Pode-se ler sobre isto na Bíblia em 1. Pedro 5.7, Atos 14.17 e Isaías 55.7.
10. Nova Bíblia na Linguagem de Hoje, em Salmo 46.1.
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Tem doutorado em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica Federal de Zurique, Suíça. É professor de engenharia em São José dos Campos (SP). É editor do blog Fé e Ciência.
- Textos publicados: 32 [ver]
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Site: http://www.freewebs.com/kienitz/
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