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Opinião

Minando o racismo: quando a igreja tenta ser politicamente correta, ela se torna patética

As igrejas têm sua culpa, não porque elas não seguiram a agenda do politicamente correto, mas porque não atentaram a seu próprio fundamento.



Por N. T. Wright

Três lembranças me tomam em cheio enquanto contemplo o horror tanto do assassinato brutal de George Floyd quanto da fúria das multidões indignadas, nos Estados Unidos e outros lugares. Quando Martin Luther King foi assassinado em 4 de abril de 1968, eu estava em Toronto. No dia seguinte, lá estava eu junto a dezenas de milhares numa enorme praça no centro da cidade, cantando “We Shall Overcome”. Essa canção havia se tornado o hino daqueles que, como King, ansiavam desesperadamente pelo fim da discriminação racial, mas desejavam desesperadamente que ele acontecesse de forma pacífica. Todos nós, de fato, críamos que a morte de King abalaria as consciências e a mudança definitiva aconteceria. Meio século depois, parece que estávamos errados.

Sete anos mais tarde eu atuava como delegado na Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas, em Nairobi. Naquele amplo salão, sentamos em ordem alfabética de países, de maneira que o Reino Unido (UK) se posicionava imediatamente em frente aos Estados Unidos (USA), e ali ficamos assistindo um americano após o outro se levantar e discursar ao mundo sobre como eram culpados em relação ao racismo, ao imperialismo e a tantos outros ismos. Ainda não usávamos a expressão ‘ostentar virtudes’, mas era isso que acontecia ali. Bem, isso foi há quarenta e cinco anos. Toda aquela confissão sem mudança de vida. (E, me apresso a acrescentar, que continuo vendo coisa semelhante na Grã-Bretanha ao longo dos anos: resoluções grandiosas e nenhuma mudança real).

Bem mais recentemente, um terceiro exemplo, eu me encontrava numa conferência nos Estados Unidos onde expunha sobre a visão de Paulo à igreja na qual ‘não há mais judeu nem gentio, escravo nem livre, homem nem mulher’. Fui parado por uma pessoa que era uma crítica compreensiva, porém arguta, uma teóloga afro-americana autora de um livro sobre Paulo que eu apreciava muito. “Você precisa se lembrar”, ela me disse, “que quando você fala em sermos ‘todos um em Jesus Cristo’, o que as pessoas como eu escutam – seja aquilo que você pretendia ou não – é: ‘vocês agora são todos muito bem-vindos como honrosos homens brancos’”. Ai!

Por onde começamos? Como podemos ler a Bíblia neste momento e como a colocamos em prática?

A Visão Original

Permita-me ser franco. Não vai dar mais para dizer simplesmente “racismo é pecado e
precisamos acabar com ele.” As igrejas ao redor do mundo já sabem disso há muito
tempo e pouco foi feito. Também não vai dar, claro, para dizer “Ah, aquelas multidões protestando são quase todos comunistas ou anarquistas.” Sim, óbvio, como em outros movimentos de protesto, haverá uma diversidade de ideologias políticas envolvidas e algumas facções vão tirar proveito da situação em prol de suas próprias causas, por vezes, violentas. Jesus encontrou exatamente os mesmos problemas: “o reino dos céus”, diz ele, “tomado à força, e os que usam de força se apoderam dele” (Mateus 11.12, NVI). Nos anos de 1960, os líderes do movimento Black Power afirmavam que Martin Luther King era um frouxo, com todo aquele papo de não violência, mesmo os supremacistas brancos tentavam dizer que King era apenas um comunista agitador. A presença de revolucionários violentos que forçam a barra não significou que Jesus ou King estavam errados, mas apenas que a vida é mais complicada do que sugere uma ou outra análise rasa. Mas meu ponto é que não nos será suficiente continuar dizendo solenemente como o racismo é perverso e que não vamos mais tolerá-lo.

Há um duplo perigo em somente reproduzir o imperativo ético “não seja racista”. Primeiro porque soa como se estivéssemos extraindo nossas instruções éticas das facções mais radicais, ou até mesmo as chamadas ‘lacradoras’, da sociedade e patinando na tentativa de atender à agenda secular predominante. Quando a igreja tenta ser politicamente correta, ela se torna simplesmente patética, como o clero ‘pode-crer’ nos anos 60 que tentava ‘entrar na onda’ citando os Beatles. Ai de nós se tomarmos tal rumo – toda a sorte de outras coisas surgirão dessa via, metade das quais deveremos rejeitar. Alguns até dirão que, se a igreja quiser ser relevante, ou mesmo missional, no mundo de hoje, deverá se alinhar na direção em que esse mundo caminha. Este foi, obviamente, o argumento da Deutsche Christen na Alemanha dos anos de 1930. Será que não aprendemos nada?

Mas, em segundo lugar, o que hoje chamamos de “racismo” não é, para os cristãos, simplesmente não obedecer a um ou outro padrão moral – por exemplo, que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. É ainda mais profundo que isso. É um fracasso de vocação. A igreja do Jesus ungido, o verdadeiro Senhor do mundo, foi planejada, desde sua origem, para ser uma família mundial, o novo modelo de Deus para a vida humana. Em nossa geração, a igreja luta, com não muito sucesso, para re-imaginar e, por vezes, para colocar em prática algo que sempre esteve no DNA cristão, mas que nós quase esquecemos. O propósito em ser parte do povo de Jesus nunca teve a ver com indivíduos que poderiam ‘ir para o céu’, talvez se juntando a outras pessoas um pouquinho diferentes no meio do caminho, ou não. O propósito era que nós fôssemos e devemos ser, em nossas vidas pessoais e coletivas, pequenos modelos ambulantes da definitiva nova criação que Deus prometeu instituir e que ele estabeleceu, de maneira categórica, quando elevou Jesus, o Ungido, de entre os mortos. Nossa gloriosa vocação sempre foi essa. Rejeitar o racismo e abraçar a diversidade da família de Jesus deve ser algo tão óbvio quanto orar o Pai-Nosso, celebrar a Eucaristia ou ler os quatro Evangelhos. Não é só uma ‘regra a mais’ que devemos cumprir. É fator constitutivo daquilo que somos.

A ironia da atual situação, então, é: as igrejas, de maneira geral, esqueceram qual era sua vocação e que o racismo seria uma negação de tal vocação, de maneira que a expressão ‘racista cristão’ deveria ser ouvida como um oximoro assolador. Paulo, em Colossenses 3.11, insiste que, na família dos seguidores de Jesus, não há diferença entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre. Ele afirma que é isso que significa revestir-se da nova criatura, que está sendo renovada em conhecimento, à imagem do seu Criador. Tal sonho foi paulatinamente ignorado nas igrejas ocidentais no período moderno, mas trazido de volta no Iluminismo secular.

A atual visão secular de uma sociedade multicultural global é, na melhor das hipóteses, um ideal cristão desconectado de suas raízes cristãs.

As igrejas cristãs, de maneira geral, deixaram de fora um importante elemento na compreensão e na aplicação de sua própria fé central. Já o mundo secular o retomou. Isso é típico de diversos movimentos culturais que ocorreram nos últimos duzentos ou trezentos anos. Para Deus não faltam testemunhas, alguém pode pensar. Se a igreja não se posicionar, outros o farão em seu lugar. Jesus alertou que, às vezes, os filhos deste mundo são mais sábios que os filhos da luz.

Como Papa Bento afirmou em seu profético pronunciamento às Nações Unidas em abril de 2008, o discurso de Direitos Humanos se tornou uma forma de colhermos os frutos da tradição judaico-cristã ao passo que se desliga de suas raízes. E se alguém assim o faz, seu discurso acabará num afiado bate-boca em que competem interesses especiais. Retomando um ponto anterior, agora nos encontramos neste momento, com um lado dizendo ‘todos são racistas’ e o outro afirmando que ‘todos são comunistas’. E a menos que nós nas igrejas busquemos ir mais a fundo, além do moralismo gritante, em direção a nossa vocação fundamental de sermos o novo modelo de vida humana, que aponta para a derradeira ação divina de fazer novas todas as coisas, nós continuaremos dando voltas e dizendo ‘Oh céus, somos todos culpados’, mas sem nem enxergar o porquê. É semelhante a alguém que vai ao confessionário ou a um conselheiro pastoral para confessar que se embriaga muitas vezes, mas nem o confessor nem o conselheiro nem mesmo o confessante encara o fato de que morar num apartamento acima do bar não é a maneira mais inteligente de resolver o problema. Afinal, o que é essa vocação para uma nova humanidade a que venho me referindo, e por que nós nos afastamos tanto dela a ponto de a enxergarmos hoje apenas como uma distante ordenança ética?

A visão de Paulo em relação à igreja se destaca em cada uma das cartas que escreveu, talvez mais especialmente em Efésios. Sua famosa doutrina da ‘justificação pela fé’, por um lado, é exposta em apenas duas cartas – Romanos e Gálatas – e mencionada brevemente aqui e acolá, mas, por outro lado, sua visão de igreja unida que atravessa todas as tradicionais barreiras, particularmente as étnicas (com o paradigma central em ‘Judeu e Grego’) é apresentada enfaticamente em cada uma de suas cartas. Mesmo na curta Filemon, onde o tema ‘escravo ou livre’ é remetido com poderosa gentileza pastoral. Na verdade, o clímax prático e teológico de Romanos, nos capítulos 14 e 15, reside exatamente no que podemos chamar de ‘comunhão pela fé’, resultado direto da necessária materialização da justificação pela fé. Paulo insiste no acolhimento mútuo e radical que deve existir entre os seguidores de Jesus de diferentes origens étnicas e entre diferentes práticas culturais que integram tais origens. A questão central consiste em que ‘todos vocês poderão se unir em uma só voz para louvar e glorificar a Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo’ (15.6, NVT).

Eis a aplicação em larga escala do tema apresentado de maneira breve e precisa em Gálatas 2. Paulo insiste com Pedro que os gentios incircuncisos que creram em Jesus crucificado e ressurreto são igualmente membros do povo de Jesus junto com os judeus crentes. Eles não precisam ser circuncidados já que sua condição anterior de gentios pecadores e idólatras foi apagada pela morte de Jesus, que resgatou todo Seu povo ‘desta presente era perversa’ (NVI).

Mas é em Efésios, como mencionei, onde o cenário é revelado mais completamente. (A preferência de Romanos e Gálatas a Efésios na tradição protestante é, na verdade, um sintoma de todo nosso problema.) No primeiro capítulo Paulo declara que o propósito de Deus sempre foi de reunir no Messias todas as coisas nos céus e na terra. Perceba que esta declaração se opõe solidamente ao pressuposto cristão ocidental de que o propósito de Deus é remover os crentes da ‘terra’ para que eles possam viver com Ele no ‘céu’ – algo que o Novo Testamento nunca afirma. A última cena na Bíblia (Apocalipse 21 e 22) não mostra almas salvas subindo ao céu, mas a Nova Jerusalém descendo dos céus a terra. O plano de Deus sempre foi o de restaurar toda a criação, e de Ele mesmo vir e morar com a humanidade neste novo mundo.

Parte da complexidade da teologia bíblica consiste em termos, neste presente mundo, um indicativo antecipado daquilo que Deus quer fazer no futuro. O Tabernáculo no deserto e, depois, o Templo em Jerusalém, eram para ser sinais antecipados de tal realidade. Com a morte e ressurreição de Jesus, e o dom do Espírito, o plano divino deu um salto até o ponto onde o povo de Jesus – todos juntos, sem nenhuma diferenciação étnica ou de qualquer outra natureza – constitui o novo Templo no qual Deus já habita pelo Espírito. A igreja em si deve ser o novo indicativo antecipado. No segundo capítulo de Efésios, vemos que a grande declaração a respeito de pecadores sendo justificados pela graça por meio da fé em 2:1-10 segue direto rumo à declaração do que isso quer dizer, na prática, nos versos 11-22. Deus justifica os pecadores pela graça por meio da fé para que eles juntos possam constituir este sinal antecipado de sua nova criação final. Ou, se preferir, Deus restaurará todas as coisas no futuro e Ele restaura, no presente, pecadores como nós (‘justificação’), de maneira que o agrupamento de pecadores justificados possa se tornar tanto um sinal de, quanto um representante atuante em tais propósitos futuros.

É por esta razão que, em Efésios 3, Paulo então declara que através da igreja a multiforme sabedoria de Deus pode ser conhecida entre os poderes e as autoridades nas regiões celestiais (NVI). Em outras palavras, a simples existência dessa igreja policromática, porém unida – um fenômeno que César amaria ter tido a capacidade de realizar, mas nunca conseguiu – é o sinal ao mundo expectador e, particularmente, aos poderes expectadores deste mundo de que Jesus é Senhor e não César. A isso dá-se o nome de eclesiologia básica do Novo Testamento.

A igreja não é, nesse sentido, simplesmente uma livre associação de pessoas que tiveram experiências espirituais similares e, por isso, se encontram de tempos em tempos para se encorajar, enquanto se esquivam do mundo e anseiam se retirar para outro lugar. A igreja é a nova família de seguidores de Jesus, aqueles que morreram com Ele para suas antigas alianças espirituais (note como Paulo diz aos Coríntios ‘quando eram pagãos’, isto é, o que eles não são mais) e descobriram suas novas identidades como povo ungido, povo do Messias. A presente existência de carne e sangue dessa família singular, extraordinária, até mesmo milagrosa, é exatamente o x da questão: o sinal e o antegosto do propósito de Deus para o mundo todo.

Essa família, na realidade, é chamada a ser um grupo de parentesco fictício que é fundamentada na adoração, que é renovada espiritualmente, que é multiétnica, cuja liderança não restringe gêneros, que é policromática, mutuamente solidária, que olha para fora, que é culturalmente criativa e socialmente responsável. A discussão sobre quem são seus pais ou qual a cor da sua pele – não que cor de pele fosse algo muito relevante no já policromático mundo mediterrâneo dos dias de Paulo – é um problema para nós e não para ele. Essa família deve ser um sinal para o mundo de que há uma forma diferente de ser humanidade, não como uma vontade fraca e desbotada, mas como um sinal forte e subversivo de como a nova criação de Deus é uma realidade em espera, que desafia as maneiras do mundo organizar a vida humana. Viver dessa maneira não é um bônus opcional para os seguidores de Jesus, uma espécie de hobby extra para aqueles que querem algo diferente, além das reuniões de estudo bíblico ou oração. Faz parte do pacote completo.

Avalio que tudo isso é evidente no Novo Testamento e no Cristianismo primitivo com um todo. Ressoa totalmente com a ênfase que o próprio Jesus deu, especialmente, a sua oração sacerdotal em João 17, um pouco antes de ser traído. ‘Para que todos sejam um – para que o mundo creia’: essa foi sua oração e deveria ser a nossa também. Pense no que ela significa: Jesus está sugerindo que se nós falharmos aqui, estaremos dando aos incrédulos razões aparentemente boas para negar que ele foi enviado por Deus. Ou, então, pense no Pentecostes: muitas línguas, uma única mensagem. Eis o problema; não o colapso de todas as línguas numa língua hegemônica, mas o múltiplo derramar do Espírito em todo o mundo, criando uma única família policromática e poliglota.


Claro que não foi fácil. A primeira contenda séria na igreja primitiva foi entre dois diferentes grupos de viúvas (o simples fato de a primeira igreja se responsabilizar pelas viúvas já era uma indicação do tipo de comunidade que eram) que julgavam haver desigualdade na maneira como a comida era distribuída entre os ‘Hebreus’ e os ‘Helenistas’, ou seja, os Judeus que falavam Aramaico e os que falavam Grego. As diferenças étnicas e linguísticas já se mostravam um ponto de atrito. Os apóstolos tomaram uma atitude decisiva, escolhendo em oração um grupo de pessoas adequadas para solucionar o problema.

É o que nós podemos esperar caso a igreja esteja cumprindo seu papel, agindo como uma placa de sinalização da nova criação no meio do obstinado velho mundo. Nós podemos esperar desafios em relação a esse ideal de família única e devemos almejar encará-los com atitude sábia, decisiva, em oração, para que a contínua unidade seja garantida. Desde Gálatas 2 até Romanos 15, Paulo demonstrou angústia com esse cenário e com tantas outras coisas no meio do caminho. É por isso que vemos, no segundo século, os Apologistas tendo de explicar às autoridades romanas que a família de seguidores de Jesus sentem-se em casa em qualquer e em nenhum lugar. Eles são a guarda-avançada da nova criação de Deus. A propósito, tudo passa a ser afetado, desde economia à medicina, a comportamento sexual, à educação, a estilos de louvor – não é possível escolher um ou outro. Nova criação quer dizer nova criação, em todos os sentidos.

As distorções perigosas

Então como é que entendemos tudo tão errado? O que aconteceu para que, nas últimas centenas de anos, os grupos de cristãos aparentemente mais bem instruídos – lembre-se dos estudados Alemães do século 19 ou nos devotos Afrikaaners no século 20, pense na Grã-Bretanha e França com suas ricas heranças culturais, pense nos Estados Unidos... o que aconteceu para que tal ordenança à unidade policromática tenha se tornado tão marginalizada a ponto de a maioria dos pretensos cristãos praticantes, ao invés de adotá-la como algo óbvio, a desprezaram e ainda chamam de subversivo perigoso qualquer indivíduo que a defenda? Como embarcamos no racismo sem nem ter percebido?

Não tenho dúvidas de que há diversas respostas, mas quero destacar duas delas. A primeira é uma questão de consequências não intencionadas de ações corretas e apropriadas. A segunda resposta é mais capciosa. Primeiro, após a homogeneidade do Cristianismo Latino medieval, uma das grandes palavras de ordem da Reforma Protestante foi ter as Escrituras e a liturgia na língua do povo. William Tyndale sempre foi um dos meus heróis exatamente nesse cômputo. Cristãos comuns precisam ser capazes de ler a Bíblia sozinhos, ao invés de depender de uma suposta hierarquia instruída lhes dizer o que ela contém e o que significa. As pessoas precisam poder falar com Deus, individualmente e em conjunto, em sua própria língua materna e não num linguajar eclesiástico que, de novo, significa algo para o clero, mas passa batido pelo restante das pessoas, e transforma a oração em mero balbuciar de feitiços mágicos.

Assim, no século 16, o objetivo era fazer traduções da Bíblia e de novas liturgias em todas as línguas majoritárias da Europa, tarefa que vem se expandindo pelo restante do mundo desde então. Aleluia... até certo ponto. Porque ninguém parece ter notado que foram criadas, quase que de imediato, igrejas por afinidade étnica, de maneira que numa cidade como a Londres da era Tudor havia uma igreja polonesa, uma alemã, uma francesa, uma portuguesa e assim por diante. Isto se perpetuou até os dias de hoje. Emigrantes se deslocaram para o outro lado do mundo e estabeleceram estruturas eclesiásticas que os lembrassem de casa, sem se perguntarem ‘quem mais está adorando a Jesus nesta cidade e como podemos ter certeza que estamos em sintonia e orando juntos pela nossa comunidade?’. Por sinal, isso parece ter sido parte do problema em Roma a que Paulo se refere em Romanos 14 e 15.

Os grupos étnicos rapidamente se enrijeceram em divisões doutrinárias. Temos luteranos alemães, calvinistas holandeses e presbiterianos escoceses... e, como de costume, anglicanos ingleses confusos tentando fingir que não têm doutrina própria, mas creem em qualquer coisa que seja verdade... e ainda, bem mais insidiosas porque são visivelmente identificáveis, temos as igrejas brancas e as negras, assim como em algumas partes do Reino Unido do século 19 haviam igrejas metodistas de classe média e igrejas metodistas de classe trabalhadora. Todo o projeto protestante, na verdade, se fragmentou em tantas partes que agora não podemos mais acompanhar todas, e ninguém parece ter notado que, apesar de seu apego constante às escrituras, elas estavam, dessa maneira, ignorando uma das restrições centrais das escrituras. O racismo, tanto casual quanto institucional, que tanto lastimamos hoje, é apenas uma externalização de uma falha muito mais profunda do protestantismo ocidental. (Não significa dizer, a propósito, que devemos simplesmente dar de ombros e retornar às liturgias latinas de vez. Com Deus, o caminho é sempre adiante, não para trás.)

Quando a aceitação de tal divisão se tornou o novo normal – até lhe demos um novo e elegante nome: ‘denominação’, que termina com ‘ação’, que soa bem respeitável, assim como ‘justificação’ ou ‘santificação’ – ficou fácil para as divisões visivelmente étnicas se encaixarem nesse padrão. Então, no exato ponto em que a igreja deveria ter sido uma luz viva de unidade policromática, as próprias igrejas se viram tão envolvidas no esquema quanto a cultura circundante. Desse modo, quando o projeto secular iluminista de ‘direitos humanos’ alcançou os níveis atuais, parece que o mundo ao nosso redor tentava realizar, sem o benefício do Evangelho ou do Espírito, aquilo que deveríamos estar fazendo desde sempre. Independentemente de nós, como indivíduos, nutrirmos ou não preconceito racial em segredo, nossas estruturas, por sua vez, foram sim coniventes. Enquanto isso, o Iluminismo tentou engendrar um novo mundo de ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. O colapso de tal projeto não torna a situação nenhum pouco menos irônica.

Creio que, como já disse, essa divisão em grupos étnicos foi um acidente, uma consequência não intencionada, resultante de algo que deveria estar acontecendo de qualquer maneira, a saber, a comunicação das Escrituras e da liturgia em línguas locais. Mas o segundo fator que devemos considerar é mais profundo e, acredito eu, mais desastroso. É pressuposição quase universal nas igrejas ocidentais de que o objetivo do Cristianismo resume-se a ‘ir para o céu quando morrer’, de maneira que como tudo se organiza na vida da igreja passa a ser literalmente secundário. Dá-se assim quase a completa vitória ao Platonismo. (Platão, o filósofo grego do quarto século antes de Cristo, ensinava que a realidade última era o mundo ‘Ideal’, imaterial). Como disse outras vezes, haviam pessoas no primeiro século que, de fato, pensavam que nós humanos tínhamos almas em exílio do nosso verdadeiro lar no céu e que desejávamos retornar para lá assim que possível. Essas pessoas, no entanto, eram Médio-Platonistas como Plutarco, e não cristãos como Paulo ou João.

O problema é que a grande ênfase paulina em graça e fé, em detrimento às obras da lei, tem sido ouvida, frequentemente, de dentro de uma câmara de ecos platônicos. Muitos protestantes, inclusive muitos evangélicos, passaram a acreditar implicitamente que Deus está mais interessado no mundo imaterial e na vida íntima invisível do indivíduo do que no mundo material e na vida real e visível da igreja e de seus membros. Além do mais, o Platonismo sempre andou de mãos dadas com uma hierarquia cosmológica implícita na qual (por exemplo) homens são ontologicamente superiores a mulheres. Muitos cristãos, em gerações passadas, realmente acreditaram, por diversas razões, que pessoas negras e indígenas eram, na verdade, menos humanas que pessoas brancas. Tudo isso permitiu a muitos cristãos devotos relegarem as ‘preocupações sociais’, incluindo o problema do racismo, a posições secundárias: “Ah”, eles dizem, “isso é ‘evangelho social’, nós não queremos isso”. Então, toleramos, com certa facilidade, os problemas nessa esfera.

Sim, existiu há mais de cem anos algo chamado ‘evangelho social’. O movimento foi liderado, em maior parte, por teólogos fartos do Platonismo predominante e socialmente irresponsável. Infelizmente tal movimento, por vezes, reduziu a fé cristã a uma agenda social; o que era compreensível no sentido de restabelecer um equilíbrio, mas não em termos de encontrar a visão plena – e bíblica – da igreja.

Assim, em nossos dias, muitos estudiosos (incluo-me aqui) tem insistido que a doutrina paulina da justificação pela fé afora as obras da lei judaica dizia respeito tanto ao que chamamos de ‘salvação final’ (a nova criação, note bem, e não o fato de ‘ir para o céu’) quanto ao ajuntamento de judeus e gentios na família singular de Abraão; e que esses dois grupos viveriam fortemente unidos. A reação de nervosos tradicionalistas de diversos setores tem sido a de afirmar que tal postura é o mesmo que diluir o evangelho, que substituir uma doutrina gloriosa da salvação por meras regras de ‘boas maneiras à mesa’. A discussão, enfim, incentivou e consolidou algo que é basicamente o restabelecimento secular do antigo Epicurismo: um mundo ‘espiritual’ ou ‘divino’ ‘lá em cima’, completamente dissociado do ‘nosso’ mundo aqui de baixo. Se você é um Platonista, como muitos evangélicos são, conseguirá se safar. Você poderá dizer que o presente mundo não é preocupação sua. ‘Este mundo não é meu lar; estou apenas de passagem’. No entanto, essa afirmação não é teologia nem espiritualidade bíblicas.

A discussão toda, a propósito, faz muito mais sentido – assim como faziam também o antigo Epicurismo e o Platonismo – se você é abastado, vivendo uma vida sossegada ‘aqui em baixo’ (talvez com escravos obedientes que cuidam de você!) e podendo pensar filosoficamente acerca de realidades ‘espirituais’, sem que elas o aflijam diariamente. Entretanto, percebe-se que, assim que as pessoas se tornam pobres ou menos favorecidas, elas, de repente, ‘descobrem’ todos os textos da Bíblia que tratam de justiça e unidade aqui e agora e não apenas de uma esperança celestial longínqua...

Paulo ficaria horrorizado com essas distorções modernas. Leia Romanos 14 e 15 mais uma vez. O acolhimento mútuo que suplanta barreiras étnicas e culturais não é meramente uma ‘consequência’ distante do evangelho. É o próprio sinal físico, tangível e visível da justificação pela fé.

O resultado foi a criação e, em alguns casos, a manutenção, durante gerações, de comunidades de igrejas onde todos pareciam iguais. Em algumas regiões de alguns países esse efeito é inevitável. Eu cresci numa cidade bem ao norte da Inglaterra onde simplesmente não havia pessoas diferentes – apesar de haver outras divisões, menos visíveis. Suspeito que a divisão demográfica entre a congregação anglicana à qual eu pertencia e a congregação católica romana na outra ponta da cidade estava bem clara para os sociólogos. Mas, no mundo crescentemente policromático de hoje, não vai funcionar simplesmente abrigar-se em comunidades por semelhança. Leia Efésios 3 ou Colossenses 3 de novo e pense como nos empobrecemos em nossos refúgios auto- encerrados. Lembre-se da definição de Lutero para pecado: a humanidade entregue a si mesma. E pense em quantos males permitimos escapar do nosso conhecimento.

Então em que pé estamos agora?

O resultado final é que o projeto do Iluminismo, de uma sociedade crescentemente igualitária, homogênea em suas aspirações e valores, apesar de seu individualismo radical, praticamente roubou o que deveria ter sido a agenda cristã, e tentou implementá-la – mas sem nenhum dos alicerces que o evangelho teria provido. Reunir pessoas de contextos tão radicalmente diferentes numa única sociedade é dificílimo. Já é difícil se juntos creem que Jesus derrotou o poder do mal e que seu Espírito foi dado a todo crente para o benefício de todos. É, francamente, impossível se não se crê nisso, e a derrocada da ambição nos dois grandes projetos do Iluminismo, França e Estados Unidos, é prova irrefutável disso. Assim, nós nos encontramos agora na situação em que nos sentimos todos culpados pela tensão e violência raciais – e mais a violência que é desencadeada quando, por exemplo, numa guerra, um mal abre portas para outros tantos (motins, saques, violência gratuita). Como sociedade, não temos os meios espirituais ou mesmo filosóficos para lidar com esse cenário. Como igreja, nós temos tais recursos, basta-nos lembrarmos de onde encontrá-los.

A situação se faz ainda mais confusa porque o projeto do Iluminismo, embora, em alguns aspectos, ainda a todo vapor e suscitando esta ideia de uma unidade multicultural, foi cutucado em suas próprias entranhas pelo que chamamos de pós-modernismo. Contra essa ‘solidariedade’ homogênea, o pós-modernismo em insistido na ‘diferença’ entre todas as identidades, produzindo uma ‘política de identidade’ bem conhecida por nós e que produz anseios e, também, queixas quando tais anseios são frustrados. Esse sintoma agora emerge em cada canto da vida humana que possa imaginar (e em outras que provavelmente não consiga).

Tudo isso, então, coloca o ‘racismo’ em destaque na outra ponta, por assim dizer. O modernismo iluminista tentou eliminar o racismo porque todas as pessoas deveriam ser idênticas. O pós-modernismo quer eliminar o racismo porque todas as pessoas são diferentes, e deveriam ser valorizadas e respeitadas como tais. Estas duas análises conflitantes, obviamente, escapam à vista quando se berram slogans e as ruas se enchem de violência. A confusão ideológica parece dar combustível à raiva, ao invés de controlá-la. Claro que aqueles que se ferem são, frequentemente, os mais vulneráveis.

É necessário se fazer uma avaliação muito mais cuidadosa à luz do que tem acontecido. Uma primeira resposta cristã pode ser a de que a visão paulina da igreja oferece o que nem o modernismo nem o pós-modernismo consegue: a distinta unidade na qual as múltiplas diferenças humanas, refratadas através do prisma da nova vida no Jesus Ungido, formam a unidade coerente do Corpo de Cristo com seus muitos membros. Claro que poderíamos fazer um estudo mais amplo, mas não tenho espaço aqui para isso. Para mim, no entanto, é suficiente repetir a tese principal deste artigo: não dá mais para ficar só esfregando as mãos em preocupação pelo racismo. Nós precisamos compreender por que o racismo surgiu nos formatos em que surgiu e como o evangelho bíblico de Jesus, quando atua livremente, solapa radicalmente o racismo. Permita-me dizer apenas três coisas em conclusão. Palavras urgentes para uma época difícil.

Primeiro, a ‘identidade’ cristã é para ser uma pessoa ‘Messias’: ser ‘em Cristo’. O que significa dizer que a postura básica de vida de uma pessoa é a de quem ‘morreu’ para o passado e ressurgiu para o novo mundo: ‘se alguém está em Cristo’, escreve Paulo, ‘é nova criação’! (NVI). Aqui é onde a advertência que mencionei antes entra em cena: como é fácil para um homem branco dizer a todas as outras pessoas que elas devem morrer para suas ‘identidades’ anteriores, quando a identidade do próprio homem branco continua parecendo privilegiada. (E como é fácil, quando reconhecemos isso, se permitir mais ostentação de virtude!). Não há caminho de volta e a nova identidade é a base da comunhão eclesial verdadeira, que deveria envergonhar o mundo. ‘Pois, por meio da Lei eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim’ (NVI). Isso é o que somos e o que nos faz genuínos irmãos e irmãs que Deus deu a todos os outros que se encaixam nessa verdade. Assim, essa é a realidade que o projeto secular do Iluminismo tenta conquistar, mas sem ter os meios para tal, como uma mariposa tentando voar até a lua. Novamente a ironia: os cristãos deveriam ter percebido o racismo chegar e o denunciado logo no início. Tanto a modernidade quanto a pós-modernidade querem eliminá-lo, por diferentes motivos, mas berrar mais alto não vai adiantar nada.

Segundo, a crise atual destaca a necessidade, em todas as esferas, de a liderança e os ministros na igreja se unirem para além das barreiras tradicionais, especialmente onde a diferença étnica é visível e óbvia. É vital conhecer um ao outro, orar juntos, ler a Palavra juntos, encontrar formas de fazer o máximo de coisas juntos, incluindo compartilhar o louvor, alternar a vez nos púlpitos e assim por diante. A crise do momento precisa gerar uma nova onda de esforço ecumênico urgente e genuíno, não de pequenos comitês que discutem tecnicalidades, mas de comunidades inteiras que compartilham uma vida em comum com os vizinhos da rua, pessoas de cujas vidas mal sabem e com quem não parecem ter muito em comum. Entendo que isso é difícil, mas o evangelho e as escrituras não nos dão outra opção.

Terceiro, a liderança da igreja deve encontrar maneiras de se juntar aos líderes da comunidade – novamente, de todos os níveis e de todos os perfis – e descobrir onde residem as reais queixas a serem tratadas e onde as pessoas estão usando essas queixas como um disfarce para infundir outras agendas, incluindo diferentes formas de anarquia. Neste processo, haverá, naturalmente, arrependimento. Mas o arrependimento de cristãos de todos os tipos não acontecerá porque deixamos de obedecer um dos ditames da moralidade secular de nossos tempos (i.e. de que nós fomos barulhentos o suficiente). Nosso arrependimento será devido ao fato de não termos cumprido nosso chamado no evangelho, como membros do corpo do Messias, como a comunidade que deveria atuar como um sinal para o mundo (por sua feliz reunião de diferentes classes e grupos) que Jesus é Senhor e que nele, e pelo seu Espírito, a nova criação de Deus já se iniciou – e a igreja é sua guarda-avançada.

A igreja, claro, é uma turma de pecadores. Nós oramos todos os dias ‘perdoe as nossas ofensas’ e com razão. E o perdão de Deus nos é mediado não apenas, mas também, pelo mútuo acolhimento que oferecemos uns aos outros. (A coisa realmente extraordinária nisso é que os cristãos negros felizmente ainda terão comunhão com os cristãos brancos, apesar de tudo.) Nós não vamos acertar em tudo. Vamos ainda cometer erros, assim como fizemos no passado. Alguns desses erros ainda permanecerão profundamente em nossos sistemas e culturas, mas devem ser extirpados. Mesmo assim, nós acidentalmente ofenderemos alguém e seremos, por vezes, ofendidos também. Jesus previu isso. Perdoe seu irmão ou irmã, ele afirmou, setenta vezes sete. Não, ele não quis que você anotasse a frequência. Quatrocentos e noventa vezes parece um jubileu para mim. E é disso que precisamos agora. Uma gloriosa anistia de perdão mútuo. Não o varrer para debaixo do tapete também: precisamos é de reconhecimento lúcido do mal que ocorreu e de arrependimento banhado a lágrimas tanto pelo mal em si como pelo ressentimento causado por ele. E, por fim, perdão. Começar de novo. Toda a ostentação de virtude no mundo não pode realizar isso. Mas o evangelho de Jesus pode. Ele pode abrir caminho para um novo começo. Um sinal ao mundo de que o Jesus crucificado e ressurreto – aquele que perdoa, que renova todas as coisas afinal – é seu verdadeiro Senhor.

• N. T. WRIGHT é autor de Os Últimos Dias de Jesus, Surpreendido pela Esperança, Simplesmente Cristão, O Mal e a Justiça de Deus, Eu Creio. E Agora? e Surpreendido pelas Escrituras, N.T. Wright é um dos mais conhecidos e respeitados estudiosos do Novo Testamento da atualidade. Bispo anglicano de Durham, na Inglaterra, foi professor das universidades de Cambridge e Oxford por vinte anos e é professor visitante de universidades como Harvard Divinity School, nos Estados Unidos, Universidade Hebraica de Jerusalém e Universidade Gregoriana em Roma, entre outras. É autor de mais de quarenta livros e articulista de jornais como The Times, The Independent e The Guardian.

Traduzido por Ludhiana Moreira Sales e Silva
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