Opinião
- 05 de outubro de 2015
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Dejetos nos portões das mansões
Marcos 10.17-30 – A riqueza é iníqua quando não serve a todos
Renuncie à ganância e siga-me, disse Jesus. Será que o rico se salva? Sobre o “significado” das riquezas na perspectiva do evangelho, o texto generaliza: não só o que tem muitas propriedades, mas todos os que possuem fortunas, bens abundantes, correm sério perigo de não se salvar. Que é ser afortunado? Ser bem-posto, bem remunerado, proprietário de bens essenciais sem nada lhe faltar não é ser rico?
Estar longe do desemprego, da fome, da miséria, da falta de previdência social, do atendimento à saúde, da educação de qualidade, não é ser bem-posto socialmente, portanto, rico? José Bortolini nos lembra que a afirmação de Jesus: “como é difícil entrarem os ricos no Reino de Deus!”, assusta os discípulos em escala crescente até ao “espanto” (Mc 10.24-26). O abismo entre pobres e ricos, no tempo apostólico, era ainda maior que o dos nossos dias.
Em Leônia, cidade com evidências menores, moderna, pós-industrial, imaginada por Ítalo Calvino, os moradores são insensíveis à realidade, vestem roupas novas imoderadamente, comem alimentos retirados da geladeira moderníssima, ouvem e reproduzem jingles publicitários sobre os produtos mais quentes do momento, segundo a mídia disponível. Mas, a cada manhã, “as sobras de ontem aguardam pelo caminhão de lixo” – informam-nos que restos jogados fora poderiam alimentar milhões no planeta.
A verdadeira paixão dos habitantes da hipermoderna cidade, na verdade, não seria “o prazer de expelir, descartar, dejetar a ‘impureza incessante’” – como prostitutas, moradores de rua, mendigos, crackeiros? Os varredores são “recebidos como anjos das ruas”, mesmo que sua missão seja “cercada de um silêncio respeitoso. Ninguém quer pensar em coisas que já foram rejeitadas”, diz Calvino, o Ítalo. Sem confusão. Os moradores se superam na sua busca por novidades eletrônicas, automóveis, motos, roupas de grife, comida industrializada, não importando-se que uma fortaleza de excrementos indestrutíveis coloque-se diante deles como muros cercando a cidade.
Poderíamos perguntar: será que as pessoas não enxergam esses muros? Compaixão, cuidado, solidariedade, contrariam a insensibilidade e impiedade reinantes. O odor dos montes de lixo não estaria dentro das residências luxuosas, nos narizes de incomodados e enojados pela pobreza ao redor? É difícil saber se teriam de olhar, cheios de preocupação, medo, tremor e horror, as imagens da miséria e fraqueza dos socialmente despoderados.
Abominariam a feiura da miséria, por macular as paisagens da sociedade e nação desejável, por serem fétidas, repulsivas, ofensivas e revoltantes; por abrigarem perigos conhecidos e outros, ocultos. Odiariam os dejetos nos seus devaneios desde ontem por uma sociedade “limpa”, próspera, incontaminada pela pobreza. Certamente gostariam que as montanhas do refugo social se desvanecessem diante de seus olhos e sumissem, esmagadas, pulverizadas ou dissolvidas pelo poder das riquezas concentradas nas mãos de bilionários e “trilhardários” que financiam governos que não os incomodem com impostos justos sobre suas fortunas.
É preciso lembrar também os países ricos e as profundas diferenças existentes abaixo da Linha do Equador. A ONU informa que em termos comerciais, tecnológicos e financeiros, os países do mundo estão cada vez mais próximos, numa rede de interdependência. Em termos de desenvolvimento humano, entretanto, há um fosso entre pobres e ricos, destaca o IDH 2014/ONU (Índice de Desenvolvimento Humano), que dedica capítulos inteiros ao estudo da desigualdade no planeta: “Em alguns casos, as diferenças de renda e condições de vida estão aumentando”, alerta. O rei da Noruega, fazendo turismo no Brasil, foi ver escolas de samba nas favelas do Rio. Disse, então, que os escandinavos tinham tanto dinheiro que não sabiam o que fazer com o mesmo.
É fácil, também, falar da opção pelos desfavorecidos, sem dignidade social e econômica, quando não temos que nos preocupar com o dia de amanhã, como viverão nossos filhos e netos. É cômodo especular sobre a fome e a miséria no mundo quando nossa geladeira e nossos armários guardam o necessário para a semana e o mês. Quando o bom salário permite morar bem, educar os filhos nas melhores escolas, gozar do lazer de alto custo, mantendo nas contas bancárias saldos suficientes para cobrir nossas necessidades.
Atacar o governo e um presidente, sem considerar no todo responsabilidades do Estado e da população, atribuindo desequilíbrios à situação política do momento é o mais comum. Bem-postos gostariam de eleger representantes das elites econômicas, sempre, porque se acham herdeiras do patrimônio nacional, dos cargos públicos, virando as costas para a realidade.
Não nos iludamos. O discurso liberal é antievangélico, fala de acumulação de riqueza, de capitalização, de desenvolvimento econômico sem desenvolvimento social -- o tal bolo que precisa crescer, no forno dos ricos, para depois ser repartido... Ouvimos isso desde criancinha. Quem está falando de promoção humana? Quem busca o desenvolvimento humano? Parece ser somente o Filho de Deus. Então, quem vai botar a boca no mundo? Se não falarmos, “as pedras clamarão” (Lc 19.40).
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Foto: Jerzy Müller/Images.com
Renuncie à ganância e siga-me, disse Jesus. Será que o rico se salva? Sobre o “significado” das riquezas na perspectiva do evangelho, o texto generaliza: não só o que tem muitas propriedades, mas todos os que possuem fortunas, bens abundantes, correm sério perigo de não se salvar. Que é ser afortunado? Ser bem-posto, bem remunerado, proprietário de bens essenciais sem nada lhe faltar não é ser rico?
Estar longe do desemprego, da fome, da miséria, da falta de previdência social, do atendimento à saúde, da educação de qualidade, não é ser bem-posto socialmente, portanto, rico? José Bortolini nos lembra que a afirmação de Jesus: “como é difícil entrarem os ricos no Reino de Deus!”, assusta os discípulos em escala crescente até ao “espanto” (Mc 10.24-26). O abismo entre pobres e ricos, no tempo apostólico, era ainda maior que o dos nossos dias.
Em Leônia, cidade com evidências menores, moderna, pós-industrial, imaginada por Ítalo Calvino, os moradores são insensíveis à realidade, vestem roupas novas imoderadamente, comem alimentos retirados da geladeira moderníssima, ouvem e reproduzem jingles publicitários sobre os produtos mais quentes do momento, segundo a mídia disponível. Mas, a cada manhã, “as sobras de ontem aguardam pelo caminhão de lixo” – informam-nos que restos jogados fora poderiam alimentar milhões no planeta.
A verdadeira paixão dos habitantes da hipermoderna cidade, na verdade, não seria “o prazer de expelir, descartar, dejetar a ‘impureza incessante’” – como prostitutas, moradores de rua, mendigos, crackeiros? Os varredores são “recebidos como anjos das ruas”, mesmo que sua missão seja “cercada de um silêncio respeitoso. Ninguém quer pensar em coisas que já foram rejeitadas”, diz Calvino, o Ítalo. Sem confusão. Os moradores se superam na sua busca por novidades eletrônicas, automóveis, motos, roupas de grife, comida industrializada, não importando-se que uma fortaleza de excrementos indestrutíveis coloque-se diante deles como muros cercando a cidade.
Poderíamos perguntar: será que as pessoas não enxergam esses muros? Compaixão, cuidado, solidariedade, contrariam a insensibilidade e impiedade reinantes. O odor dos montes de lixo não estaria dentro das residências luxuosas, nos narizes de incomodados e enojados pela pobreza ao redor? É difícil saber se teriam de olhar, cheios de preocupação, medo, tremor e horror, as imagens da miséria e fraqueza dos socialmente despoderados.
Abominariam a feiura da miséria, por macular as paisagens da sociedade e nação desejável, por serem fétidas, repulsivas, ofensivas e revoltantes; por abrigarem perigos conhecidos e outros, ocultos. Odiariam os dejetos nos seus devaneios desde ontem por uma sociedade “limpa”, próspera, incontaminada pela pobreza. Certamente gostariam que as montanhas do refugo social se desvanecessem diante de seus olhos e sumissem, esmagadas, pulverizadas ou dissolvidas pelo poder das riquezas concentradas nas mãos de bilionários e “trilhardários” que financiam governos que não os incomodem com impostos justos sobre suas fortunas.
É preciso lembrar também os países ricos e as profundas diferenças existentes abaixo da Linha do Equador. A ONU informa que em termos comerciais, tecnológicos e financeiros, os países do mundo estão cada vez mais próximos, numa rede de interdependência. Em termos de desenvolvimento humano, entretanto, há um fosso entre pobres e ricos, destaca o IDH 2014/ONU (Índice de Desenvolvimento Humano), que dedica capítulos inteiros ao estudo da desigualdade no planeta: “Em alguns casos, as diferenças de renda e condições de vida estão aumentando”, alerta. O rei da Noruega, fazendo turismo no Brasil, foi ver escolas de samba nas favelas do Rio. Disse, então, que os escandinavos tinham tanto dinheiro que não sabiam o que fazer com o mesmo.
É fácil, também, falar da opção pelos desfavorecidos, sem dignidade social e econômica, quando não temos que nos preocupar com o dia de amanhã, como viverão nossos filhos e netos. É cômodo especular sobre a fome e a miséria no mundo quando nossa geladeira e nossos armários guardam o necessário para a semana e o mês. Quando o bom salário permite morar bem, educar os filhos nas melhores escolas, gozar do lazer de alto custo, mantendo nas contas bancárias saldos suficientes para cobrir nossas necessidades.
Atacar o governo e um presidente, sem considerar no todo responsabilidades do Estado e da população, atribuindo desequilíbrios à situação política do momento é o mais comum. Bem-postos gostariam de eleger representantes das elites econômicas, sempre, porque se acham herdeiras do patrimônio nacional, dos cargos públicos, virando as costas para a realidade.
Não nos iludamos. O discurso liberal é antievangélico, fala de acumulação de riqueza, de capitalização, de desenvolvimento econômico sem desenvolvimento social -- o tal bolo que precisa crescer, no forno dos ricos, para depois ser repartido... Ouvimos isso desde criancinha. Quem está falando de promoção humana? Quem busca o desenvolvimento humano? Parece ser somente o Filho de Deus. Então, quem vai botar a boca no mundo? Se não falarmos, “as pedras clamarão” (Lc 19.40).
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Foto: Jerzy Müller/Images.com
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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