Opinião
- 28 de março de 2014
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A sociedade civil apoiou o golpe de 1964?
“Estávamos conversando, Jaime Wright e eu, sobre as consequências do golpe militar, quando um disse para o outro, não sei mais quem tomou a palavra: – Isso tudo vai ser esquecido na próxima geração, como foi esquecido tudo o que o Getúlio praticou no tempo dele - e foram horrores" (Dom Paulo Evaristo Arns).
O general Newton Cruz, mandatário e executor da repressão, tem a melhor frase, quando perguntado sobre esse tempo: “Ditadura militar? Que ditadura militar... se a própria sociedade civil pediu”? Como requerer dignidade e solidariedade ao regime autoritário que se entregara sem medo ou respeito às práticas mais bárbaras registradas na história da humanidade? Tortura, abdusão, banimento, sequestro político, assassinato e desaparecimento dissimulado – sem falar da limitação da liberdade de imprensa –, liberdade de ir e vir, que ocorria sob a justificativa de “livrar o Brasil do comunismo”.
O triunfo do poder totalitário parecia irrevogável em nosso país. Pessoas comuns ao regime, perseguidos por professarem ideologias de resistência, sequestrados, torturados, desde o golpe de 1964, experimentaram “tecnologias” de apagamento ideológico em laboratórios experimentais clandestinos, em numerosos casos com morte ou anulação física irreparáveis. Uma geração inteira (21 anos de fascismo) conheceu a força da sociedade autoritária, tendo à frente seus representantes armados com poder absoluto sobre a nação. Nenhuma instituição, civil ou militar, podia dizer-se politicamente neutra.
Na linha de frente no confronto com a ditadura, apresentavam-se aos presidentes militares, no regime de exceção, democracia e liberdades civis cerceadas, para reclamar direitos de pessoas e famílias atingidas pelo rolo compressor da polícia política da ditadura, encastelada no DOPS, no DOI-Codi, no SNI, no CENIMAR, na Polícia Federal e na Polícia Civil. Comandados diretamente dos salões presidenciais, da sede do governo federal, e dos governos estaduais, estas organizações de policiamento ideológico eram também reforçadas por confrarias e grupos de extermínio brotados na sociedade civil. Esquadrões da morte atuavam de norte a sul, coniventemente.
Ando de ônibus frequentemente. Preparando-me para este artigo, ouvia dois idosos comentando as passeatas reivindicatórias dos últimos dias, em minha cidade, enquanto associavam assassinatos, assaltos à mão armada, no mesmo plano: “A ditadura precisa voltar”. Um pastor pentecostal, líder de juventude evangélica, proclama seu saudosismo autoritário: “Durante o regime militar, tínhamos os melhores colégios, hospitais, casas populares; não havia maconha, crack, nem vagabundo te assaltando em cada esquina”.
Mas, as situações reais eram outras. No judiciário, juízes, promotores, desembargadores, serviam espontaneamente à ditadura. Alguns até integrando “scuderies” como a “Le Coq”, famosa por seus compromissos mafiosos e influência no governo e Assembleia Legislativa. Mendigos, homossexuais, crianças ou menores infratores, bandidos comuns, eram vítimas exemplares do autoritarismo assassino. Um secretário do governo, em meu Estado, metralhava dissidentes numa das praças da capital. Escapando de um atentado promovido pelo governo local, mais tarde, um deles foi eleito governador.
Nas igrejas, lideranças e notórios vultos insuflavam os fiéis à delação, quando não o faziam orgulhosamente com “carteira” de informante, no sentido de denunciarem crentes com “tendências ao comunismo”. Referindo-se às questões fundamentais, que envolviam interesses e defesa de grupos sociais oprimidos, desprotegidos, sem vez e sem voz, esmagadas por sistemas civis ciosos por impor a “autoridade do governo fascista”.
Através das solicitações, pedidos de “vistas”, que faziam advogados do projeto coordenado por Jaime Wright (pastor presbiteriano paranaense), “Brasil: Nunca Mais”, confirmam o cuidado com o “futuro” dos processos e papeis no judiciário fascista. Seriam incinerados, como se viu posteriormente, enquanto ocorreria, “legalmente”, o “silenciamento” sobre torturadores e torturados. Prudentemente, 1 milhão de páginas foram reproduzidas. Em seguida, microfilmadas. Fez o transporte para o exterior dos arquivos do Supremo Tribunal Militar (STM) – muitas vezes pessoalmente –, copiados em prazos legais mínimos de 24 horas em uma sala alugada e equipada com copiadoras, em Brasília.
Jaime Wright, representando de resistência eclesiástica minoritária, estava ciente também das imperfeições e fraquezas da democracia, especialmente no comportamento da sociedade brasileira, ambígua, escorregadia em questões éticas essenciais, com a Anistia e a abertura democrática. Criticou os abusos comuns. Entrevistado pelo Jornal da USP, Jaime passou o recado, além de repudiar a violência do Estado: "uma violência cometida pelo mais forte contra o mais fraco", disse. Lembrou, em outro momento, que o governo brasileiro "fala muito e faz pouco", motivo por que se demitira do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, governo FHC, que integrava a convite do secretário José Gregori. "A tortura continua sendo praticada sem que se faça nada para coibir esse abuso", destacou o pastor, repetindo uma denúncia que vinha das práticas das ditaduras de Vargas, aprimoradas desde o Golpe de 1964.
A condenação moral que terminou se abatendo sobre os torturadores não pode ser classificada. Depois de ter se tornado uma ênfase do estado militar e de ter vitimado e consumido com milhares de pessoas, a tortura tornou-se uma realidade em si mesma e, como tal, gerou efeitos não previstos, não controlados e, sobretudo, não desejados pelos próprios vencedores da “guerra suja”. Não se poderá afirmar que eles permaneceram completamente impunes.
Além das penas morais que sobre eles recaíram, houve uma espécie de “punição suave” no processo lento e claudicante, até chegarmos aos pronunciamentos recentes da Comissão Nacional da Verdade. O isolamento paulatino dos oficiais diretamente envolvidos na repressão política, como reclamavam expoentes da repressão, chega ao fim. Alguns deles, orgulhosos, mostram-se até satisfeitos por estarem sendo lembrados, em sua participação.
O cinismo é impressionante, quando declara ainda hoje: “...não havia tortura no regime inaugurado em 1964, era preciso fazer o que fizemos, para salvar o Brasil”. Lamentavelmente, porém, expoentes políticos civis, sustentadores do Congresso Nacional durante a ditadura, jamais irão a julgamento público. Não escaparão, contudo, do julgamento da História. Para sempre.
O general Newton Cruz, mandatário e executor da repressão, tem a melhor frase, quando perguntado sobre esse tempo: “Ditadura militar? Que ditadura militar... se a própria sociedade civil pediu”? Como requerer dignidade e solidariedade ao regime autoritário que se entregara sem medo ou respeito às práticas mais bárbaras registradas na história da humanidade? Tortura, abdusão, banimento, sequestro político, assassinato e desaparecimento dissimulado – sem falar da limitação da liberdade de imprensa –, liberdade de ir e vir, que ocorria sob a justificativa de “livrar o Brasil do comunismo”.
O triunfo do poder totalitário parecia irrevogável em nosso país. Pessoas comuns ao regime, perseguidos por professarem ideologias de resistência, sequestrados, torturados, desde o golpe de 1964, experimentaram “tecnologias” de apagamento ideológico em laboratórios experimentais clandestinos, em numerosos casos com morte ou anulação física irreparáveis. Uma geração inteira (21 anos de fascismo) conheceu a força da sociedade autoritária, tendo à frente seus representantes armados com poder absoluto sobre a nação. Nenhuma instituição, civil ou militar, podia dizer-se politicamente neutra.
Na linha de frente no confronto com a ditadura, apresentavam-se aos presidentes militares, no regime de exceção, democracia e liberdades civis cerceadas, para reclamar direitos de pessoas e famílias atingidas pelo rolo compressor da polícia política da ditadura, encastelada no DOPS, no DOI-Codi, no SNI, no CENIMAR, na Polícia Federal e na Polícia Civil. Comandados diretamente dos salões presidenciais, da sede do governo federal, e dos governos estaduais, estas organizações de policiamento ideológico eram também reforçadas por confrarias e grupos de extermínio brotados na sociedade civil. Esquadrões da morte atuavam de norte a sul, coniventemente.
Ando de ônibus frequentemente. Preparando-me para este artigo, ouvia dois idosos comentando as passeatas reivindicatórias dos últimos dias, em minha cidade, enquanto associavam assassinatos, assaltos à mão armada, no mesmo plano: “A ditadura precisa voltar”. Um pastor pentecostal, líder de juventude evangélica, proclama seu saudosismo autoritário: “Durante o regime militar, tínhamos os melhores colégios, hospitais, casas populares; não havia maconha, crack, nem vagabundo te assaltando em cada esquina”.
Mas, as situações reais eram outras. No judiciário, juízes, promotores, desembargadores, serviam espontaneamente à ditadura. Alguns até integrando “scuderies” como a “Le Coq”, famosa por seus compromissos mafiosos e influência no governo e Assembleia Legislativa. Mendigos, homossexuais, crianças ou menores infratores, bandidos comuns, eram vítimas exemplares do autoritarismo assassino. Um secretário do governo, em meu Estado, metralhava dissidentes numa das praças da capital. Escapando de um atentado promovido pelo governo local, mais tarde, um deles foi eleito governador.
Nas igrejas, lideranças e notórios vultos insuflavam os fiéis à delação, quando não o faziam orgulhosamente com “carteira” de informante, no sentido de denunciarem crentes com “tendências ao comunismo”. Referindo-se às questões fundamentais, que envolviam interesses e defesa de grupos sociais oprimidos, desprotegidos, sem vez e sem voz, esmagadas por sistemas civis ciosos por impor a “autoridade do governo fascista”.
Através das solicitações, pedidos de “vistas”, que faziam advogados do projeto coordenado por Jaime Wright (pastor presbiteriano paranaense), “Brasil: Nunca Mais”, confirmam o cuidado com o “futuro” dos processos e papeis no judiciário fascista. Seriam incinerados, como se viu posteriormente, enquanto ocorreria, “legalmente”, o “silenciamento” sobre torturadores e torturados. Prudentemente, 1 milhão de páginas foram reproduzidas. Em seguida, microfilmadas. Fez o transporte para o exterior dos arquivos do Supremo Tribunal Militar (STM) – muitas vezes pessoalmente –, copiados em prazos legais mínimos de 24 horas em uma sala alugada e equipada com copiadoras, em Brasília.
Jaime Wright, representando de resistência eclesiástica minoritária, estava ciente também das imperfeições e fraquezas da democracia, especialmente no comportamento da sociedade brasileira, ambígua, escorregadia em questões éticas essenciais, com a Anistia e a abertura democrática. Criticou os abusos comuns. Entrevistado pelo Jornal da USP, Jaime passou o recado, além de repudiar a violência do Estado: "uma violência cometida pelo mais forte contra o mais fraco", disse. Lembrou, em outro momento, que o governo brasileiro "fala muito e faz pouco", motivo por que se demitira do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, governo FHC, que integrava a convite do secretário José Gregori. "A tortura continua sendo praticada sem que se faça nada para coibir esse abuso", destacou o pastor, repetindo uma denúncia que vinha das práticas das ditaduras de Vargas, aprimoradas desde o Golpe de 1964.
A condenação moral que terminou se abatendo sobre os torturadores não pode ser classificada. Depois de ter se tornado uma ênfase do estado militar e de ter vitimado e consumido com milhares de pessoas, a tortura tornou-se uma realidade em si mesma e, como tal, gerou efeitos não previstos, não controlados e, sobretudo, não desejados pelos próprios vencedores da “guerra suja”. Não se poderá afirmar que eles permaneceram completamente impunes.
Além das penas morais que sobre eles recaíram, houve uma espécie de “punição suave” no processo lento e claudicante, até chegarmos aos pronunciamentos recentes da Comissão Nacional da Verdade. O isolamento paulatino dos oficiais diretamente envolvidos na repressão política, como reclamavam expoentes da repressão, chega ao fim. Alguns deles, orgulhosos, mostram-se até satisfeitos por estarem sendo lembrados, em sua participação.
O cinismo é impressionante, quando declara ainda hoje: “...não havia tortura no regime inaugurado em 1964, era preciso fazer o que fizemos, para salvar o Brasil”. Lamentavelmente, porém, expoentes políticos civis, sustentadores do Congresso Nacional durante a ditadura, jamais irão a julgamento público. Não escaparão, contudo, do julgamento da História. Para sempre.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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