Opinião
24 de setembro de 2025- Visualizações: 2619
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Uma reavaliação da função narrativa e teológica de Ismael em Gênesis e Gálatas
Uma exegese responsável de Gênesis 16 exige superar a leitura pastoral simplista
Por Marcos Amado
A interpretação pastoral da narrativa do nascimento de Ismael (Gn 16) consolidou-se como referência clássica para exortações sobre fé e paciência diante da soberania divina. Nessa hermenêutica predominante, a iniciativa de Sara e a concordância de Abraão são apresentadas como uma tentativa de “dar uma mãozinha a Deus”. Contudo, essa abordagem, ao impor uma grade teológica posterior sobre o texto, ignora elementos cruciais tanto do contexto histórico- cultural quanto da economia narrativa de Gênesis.
Este artigo propõe uma reavaliação dessa passagem, argumentando que sua função vai além de uma simples lição moral. Sustenta-se que a narrativa não visa condenar Abraão por
incredulidade (“não tiveram fé”), mas estabelecer um contraponto teológico fundamental sobre a iniciativa divina no cumprimento da promessa. Demonstraremos que: (1) a ação de
Abraão estava em conformidade com práticas legais do Antigo Oriente Próximo (AOP) como meio de garantir descendência; (2) a caracterização de Ismael no Pentateuco é consistentemente positiva diante de Deus; e (3) uma compreensão contextualizada de Gênesis 16 enriquece a leitura do argumento de Paulo em Gálatas 4.
Contextualizando a ação patriarcal: lei e costume no AOP
A infertilidade no AOP era uma crise social e religiosa, e diversos códigos legais e costumes existiam para mitigar suas consequências. Documentos cuneiformes, como o Código de Hamurabi e os contratos de casamento de Nuzi, registram a prática legal pela qual a esposa estéril podia fornecer sua serva ao marido para gerar descendência, que era legalmente considerada filha da esposa principal.
A fala de Sara em Gênesis 16:2, “para que por ela eu venha a ter filhos”, reflete exatamente essa prática jurídica. A informação de que a promessa se cumpriria por meio de um filho gerado especificamente por Sara só veio em Gn 17.15-19, cerca de 24 anos depois do chamado inicial, quando Abrão tinha 99 anos. A ação de Abraão, portanto, não deve ser entendida como um desvio moral impensado ou falta de fé, mas como a aplicação de um procedimento legal reconhecido, uma tentativa racional de implementar a promessa divina com os recursos sancionados por sua cultura. A ausência de qualquer repreensão divina direta a Abraão nesse ato é significativa.
A atuação divina e a teologia do cuidado de Deus na narrativa de Ismael
A interpretação de Ismael como um “erro” entra em conflito direto com a forma como o texto apresenta a ação divina em relação a ele e sua mãe. A narrativa mostra vários momentos de intervenção e bênção direta de Deus:

A inconsistência de nossa crítica a Abraão se torna ainda mais clara quando olhamos para seu neto, Jacó. Ele teve filhos com quatro mulheres, em meio a uma família disfuncional e cheia de rivalidades, e foram justamente esses filhos que se tornaram o fundamento das doze tribos de Israel. A história de Jacó nos ensina que o plano de Deus não é frágil; ele tece sua vontade soberanamente através da tapeçaria desordenada de nossas vidas.
Ressonâncias em Gálatas 4: A lei como sistema de atuação humana
A aparente tensão entre essa leitura e o uso que Paulo faz de Agar em Gálatas 4 se dissolve com uma análise mais atenta. O alvo da crítica de Paulo eram os judaizantes que defendiam a submissão à Lei Mosaica como necessária para a justificação. Sua associação de Agar com o Monte Sinai (Gl 4.24-25) mostra isso claramente.
Contudo, a genialidade da analogia paulina se revela ainda mais diante da análise de Gênesis. Paulo escolhe como arquétipo da “Lei” uma situação em que Abraão recorreu a um sistema legal humano para tentar realizar a promessa. O princípio comum entre a ação de Abraão e a posição dos judaizantes é a confiança em um sistema de obras humanas como meio de efetivar a promessa divina.
Assim, Paulo não necessariamente condena Abraão moralmente. Ele utiliza sua ação como paradigma histórico para sua tese teológica. A questão não é a validade da promessa, mas o agente de seu cumprimento. Toda tentativa de assegurar a herança divina por meio de sistemas humanos, seja a lei cultural do AOP ou a Lei religiosa do Sinai, gera “filhos para a escravidão”. A verdadeira liberdade vem do nascimento “segundo o Espírito”, um ato que só pode ser realizado por Deus.
Uma exegese responsável de Gênesis 16 exige superar a leitura pastoral simplista. A ação de Abraão, contextualizada, mostra-se como tentativa de realizar a promessa de acordo com as normas legais de seu tempo. A caracterização de Ismael revela a graça soberana de Deus.
Essa compreensão mais profunda ilumina o argumento de Paulo em Gálatas. A história de Ismael e Isaque permanece como testemunho da distinção fundamental entre a promessa divina e a execução de seu cumprimento. Não se trata de uma substituição da promessa, mas de uma tentativa de gerenciar seu cumprimento com base na segurança de sistemas legais. A narrativa ensina que a promessa de Deus é cumprida não pela engenhosidade humana, mas pela intervenção graciosa e soberana do próprio Deus, por meios que frequentemente superam a lógica e a legalidade humanas.
A metáfora, portanto, não deve ser usada para legitimar preconceitos contra judeus, árabes ou muçulmanos. O foco de Paulo está na insuficiência de qualquer lei ou costume humano para gerar a herança prometida, e não em condenar grupos étnicos ou religiosos.
Nota
Texto desenvolvido por Marcos Amado com o apoio de recursos digitais voltados à pesquisa, organização e redação. O conteúdo, a articulação das ideias, a estrutura, a argumentação lógica e as conclusões são de sua inteira concepção e responsabilidade.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDO
Jesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Gênesis Para Maiores, Antonio Carlos F. Cintra
» O Caminho do Coração – Meditações diárias, Ricardo Barbosa
Por Marcos Amado
A interpretação pastoral da narrativa do nascimento de Ismael (Gn 16) consolidou-se como referência clássica para exortações sobre fé e paciência diante da soberania divina. Nessa hermenêutica predominante, a iniciativa de Sara e a concordância de Abraão são apresentadas como uma tentativa de “dar uma mãozinha a Deus”. Contudo, essa abordagem, ao impor uma grade teológica posterior sobre o texto, ignora elementos cruciais tanto do contexto histórico- cultural quanto da economia narrativa de Gênesis.Este artigo propõe uma reavaliação dessa passagem, argumentando que sua função vai além de uma simples lição moral. Sustenta-se que a narrativa não visa condenar Abraão por
incredulidade (“não tiveram fé”), mas estabelecer um contraponto teológico fundamental sobre a iniciativa divina no cumprimento da promessa. Demonstraremos que: (1) a ação de
Abraão estava em conformidade com práticas legais do Antigo Oriente Próximo (AOP) como meio de garantir descendência; (2) a caracterização de Ismael no Pentateuco é consistentemente positiva diante de Deus; e (3) uma compreensão contextualizada de Gênesis 16 enriquece a leitura do argumento de Paulo em Gálatas 4.
Contextualizando a ação patriarcal: lei e costume no AOP
A infertilidade no AOP era uma crise social e religiosa, e diversos códigos legais e costumes existiam para mitigar suas consequências. Documentos cuneiformes, como o Código de Hamurabi e os contratos de casamento de Nuzi, registram a prática legal pela qual a esposa estéril podia fornecer sua serva ao marido para gerar descendência, que era legalmente considerada filha da esposa principal.
A fala de Sara em Gênesis 16:2, “para que por ela eu venha a ter filhos”, reflete exatamente essa prática jurídica. A informação de que a promessa se cumpriria por meio de um filho gerado especificamente por Sara só veio em Gn 17.15-19, cerca de 24 anos depois do chamado inicial, quando Abrão tinha 99 anos. A ação de Abraão, portanto, não deve ser entendida como um desvio moral impensado ou falta de fé, mas como a aplicação de um procedimento legal reconhecido, uma tentativa racional de implementar a promessa divina com os recursos sancionados por sua cultura. A ausência de qualquer repreensão divina direta a Abraão nesse ato é significativa.
A atuação divina e a teologia do cuidado de Deus na narrativa de Ismael
A interpretação de Ismael como um “erro” entra em conflito direto com a forma como o texto apresenta a ação divina em relação a ele e sua mãe. A narrativa mostra vários momentos de intervenção e bênção direta de Deus:
- A manifestação divina a Agar (Gn 16.7-13): Agar recebe uma promessa de descendência numerosa, análoga à de Abraão.
- A nomeação de Ismael (Gn 16.11): o nome significa “Deus ouve” e foi dado como memorial da atenção de Deus à aflição.
- A bênção prometida (Gn 17.20; 21.17-18): Deus promete abençoar Ismael e fazê-lo uma “grande nação”.

A inconsistência de nossa crítica a Abraão se torna ainda mais clara quando olhamos para seu neto, Jacó. Ele teve filhos com quatro mulheres, em meio a uma família disfuncional e cheia de rivalidades, e foram justamente esses filhos que se tornaram o fundamento das doze tribos de Israel. A história de Jacó nos ensina que o plano de Deus não é frágil; ele tece sua vontade soberanamente através da tapeçaria desordenada de nossas vidas.
Ressonâncias em Gálatas 4: A lei como sistema de atuação humana
A aparente tensão entre essa leitura e o uso que Paulo faz de Agar em Gálatas 4 se dissolve com uma análise mais atenta. O alvo da crítica de Paulo eram os judaizantes que defendiam a submissão à Lei Mosaica como necessária para a justificação. Sua associação de Agar com o Monte Sinai (Gl 4.24-25) mostra isso claramente.
Contudo, a genialidade da analogia paulina se revela ainda mais diante da análise de Gênesis. Paulo escolhe como arquétipo da “Lei” uma situação em que Abraão recorreu a um sistema legal humano para tentar realizar a promessa. O princípio comum entre a ação de Abraão e a posição dos judaizantes é a confiança em um sistema de obras humanas como meio de efetivar a promessa divina.
Assim, Paulo não necessariamente condena Abraão moralmente. Ele utiliza sua ação como paradigma histórico para sua tese teológica. A questão não é a validade da promessa, mas o agente de seu cumprimento. Toda tentativa de assegurar a herança divina por meio de sistemas humanos, seja a lei cultural do AOP ou a Lei religiosa do Sinai, gera “filhos para a escravidão”. A verdadeira liberdade vem do nascimento “segundo o Espírito”, um ato que só pode ser realizado por Deus.
Uma exegese responsável de Gênesis 16 exige superar a leitura pastoral simplista. A ação de Abraão, contextualizada, mostra-se como tentativa de realizar a promessa de acordo com as normas legais de seu tempo. A caracterização de Ismael revela a graça soberana de Deus.
Essa compreensão mais profunda ilumina o argumento de Paulo em Gálatas. A história de Ismael e Isaque permanece como testemunho da distinção fundamental entre a promessa divina e a execução de seu cumprimento. Não se trata de uma substituição da promessa, mas de uma tentativa de gerenciar seu cumprimento com base na segurança de sistemas legais. A narrativa ensina que a promessa de Deus é cumprida não pela engenhosidade humana, mas pela intervenção graciosa e soberana do próprio Deus, por meios que frequentemente superam a lógica e a legalidade humanas.
A metáfora, portanto, não deve ser usada para legitimar preconceitos contra judeus, árabes ou muçulmanos. O foco de Paulo está na insuficiência de qualquer lei ou costume humano para gerar a herança prometida, e não em condenar grupos étnicos ou religiosos.
Nota
Texto desenvolvido por Marcos Amado com o apoio de recursos digitais voltados à pesquisa, organização e redação. O conteúdo, a articulação das ideias, a estrutura, a argumentação lógica e as conclusões são de sua inteira concepção e responsabilidade.
- Marcos Amado é diretor do Centro de Reflexão Missiológica Martureo, é graduado em teologia pelo All Nations Cristian College (Reino Unido) e mestre em missiologia com especialização em estudos islâmicos pela mesma instituição. Em Beirute, no Líbano, cursou estudos avançados em religiões e culturas do Oriente Médio no Institute of Middle East Studies. É casado com Rosângela e acumula mais de 25 anos de experiência transcultural.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDOJesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
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» Gênesis Para Maiores, Antonio Carlos F. Cintra
» O Caminho do Coração – Meditações diárias, Ricardo Barbosa
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