Opinião
08 de outubro de 2025- Visualizações: 1371
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Para que serve a arte?
Um olhar bíblico e cultural sobre a importância da arte
Por Bruno Santana
A arte é vista por muitos como uma proposta de desconexão da realidade e os artistas como seres que estão sempre com a cabeça nas nuvens, vivendo à procura de inspirações em coisas completamente abstratas e distantes de qualquer aspecto prático do dia a dia.
Gostaria de propor uma visão diferente, que acredito ser mais rica e elaborada sobre o assunto.
Primeiramente, acredito que é importante dizer que há, sim, no fazer artístico, um lugar essencial para o subjetivo e para o imaginativo. No entanto, quero defender que esses aspectos não tornam a arte algo fútil ou dispensável, como se esta fosse um mero capricho ou luxo na vida humana. Antes, “a boa obra de arte sempre enriquece e amplia nossa apreensão do real”.¹
Mas, para continuarmos esta conversa, o que podemos entender como arte? Calvin Seerveld traz a seguinte definição: “Um artefato ou ato bem trabalhado, distinguido por uma qualidade imaginativa cuja natureza é aludir a mais significados do que o que é visível, audível, escrito, sentido”.²
É por esse aspecto enriquecedor que muitas vezes a arte nos toca de uma forma que algo simplesmente descritivo não tocaria. Ilustro isso através das obras de dois gênios da música brasileira. Djavan poderia ter dito apenas “eu te amo e quero ficar com você para sempre”, mas disse:
O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo tem pra me conceder
São tuas, até morrer.³
Da mesma forma, Beto Guedes poderia ter dito: “faça o que ama, trabalhe e descanse também”. Mas ele disse:
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver⁴
Por que essa forma poética de dizer as coisas nos toca tanto? Por que queremos ver filmes e observar as escolhas do diretor nas cenas e seus ângulos, nos diálogos e suas tensões, na escolha dos atores fazendo este ou aquele papel?
C. S. Lewis nos dá um caminho quando diz: “Queremos ver com outros olhos, imaginar com outras imaginações, sentir com outros corações, e com os nossos próprios também. Exigimos janelas. A literatura enquanto sentido é uma série de janelas, ou mesmo de portas. Uma das coisas que sentimos depois de ler uma grande obra é ‘eu saí’. Ou, a partir de outro ponto de vista, ‘eu entrei’, perfurei algo indivisível e entrei e descobri como é lá dentro.”⁵
A obra de arte é um convite a olhar para um recorte da realidade, juntando a visão do artista depositada sobre a obra (direta ou indiretamente), os elementos da obra, a forma como a obra é apresentada e toda a bagagem de significados daquele que a desfruta.
Ou seja, temos um encontro de referências, valores e caminhos. Isso possibilita um fruir muito específico. Por isso, choramos com filmes, dançamos e celebramos com música. É por isso que muitas vezes basta um pequeno contato com a obra para que já sejamos transportados para um lugar diferente: talvez para onde queremos ir, talvez para onde já estivemos, ou mesmo para um estado mais presente onde já estamos – às vezes, todas essas coisas ao mesmo tempo.
Pensando assim, não é que a arte ignora a realidade; antes, convida a um olhar mais atento, muitas vezes mais elaborado. É claro que olhar com mais atenção nos custa tempo, energia e o exercício da nossa imaginação, que precisa apreender os significados e abstrações que a obra suscita.
Por isso, esse contato com a arte nunca é vão ou neutro. Existe no fruir da arte um processo formativo da nossa imaginação, já que ela mexe em um lugar onde estão os nossos significados mais inconscientes. Por isso, a arte pode formar e reformar o imaginário de uma nação inteira, consciente ou inconscientemente.
Assim, a questão não é se a arte está nos formando, mas sim qual arte está nos formando? E como temos respondido a isso? De que forma podemos olhar para a arte de maneira sábia e bíblica?
Entendendo que Deus se importa pessoalmente com a arte
“O primeiro artista citado pela Bíblia é Bezalel, que é especificamente cheio ‘do Espírito de Deus’, que lhe dá ‘destreza, habilidade e plena capacidade artística’ (Êx 31.3). Ele foi capacitado para trabalhar com ouro, prata e bronze, esculpir madeira, talhar e lapidar pedras, gravar e bordar.
Apesar de seus dons terem sido dados para ajudar na construção de um lugar para adoração, neste texto é estabelecido o princípio de que Deus gosta de beleza, design e harmonia. Deus queria ser lembrado de uma forma especial em uma construção que foi o produto da cultura popular da época.”⁶
Há em toda narrativa bíblica sinais claros de que Deus se importa com a arte e deu o fazer artístico à humanidade como uma forma de representar sua visão da realidade criada ou de algo que está além dela.
A arte é vista em diversas manifestações bíblicas:
No Templo: Deus dita todos os detalhes de formatos, cores e materiais que Ele quer que haja na construção.
Na pregação dos profetas: eles, diversas vezes, não falam a mensagem de forma direta, mas encenam aquilo que irá acontecer com o povo (ato teatral), fazendo isso em obediência à voz do próprio Deus.
Na fala de Jesus: quando Ele precisa trazer uma verdade para os ouvintes, constantemente usa figuras de linguagem (metáforas, parábolas, hipérboles). Ele faz isso para ensinar a imaginação dos ouvintes; Jesus se importa com a imaginação, e isso tem tudo a ver com arte.
Um olhar mais atento para as obras do próprio Deus
“Habitamos no mundo de Deus. Isso não é apenas ‘natureza’; é criação. E isso é ‘muito bom’ (Gn 1.31). A criação material não é apenas um tipo de desvio de nossa existência celestial. É a morada muito boa criada por nosso Pai celestial.
A criação não é um erro repulsivo e lamentável da parte de Deus. É o produto do seu amor.”⁷
Olhar para a natureza pode inspirar um artista e nos fazer perceber que há em Deus uma criatividade perfeita. Quando vemos a natureza, precisamos lembrar que ela é também criação de Deus. Toda a sua grandeza, seus detalhes e complexidade podem apontar para alguém que nos criou no meio de um universo belo e diverso.

Uma visão mais generosa para a arte feita por pessoas diferentes de nós
Existem algumas formas de ver a arte que demonizam tudo o que é produzido por não cristãos ou que não tem claramente uma forma confessional, o que acontece principalmente na música. No geral, há uma divisão entre gospel e secular, ou arte cristã e “do mundo”.
Mas essas duas categorias não dão conta da complexidade desse assunto. Fazer arte exige referências, e essas referências estão sendo formadas em nós ainda que inconscientemente. Muitos artistas que são cristãos demonizam a música chamada “do mundo”, mas têm em suas obras diversas referências e influências de obras de não cristãos, percebendo ou não. O que não é um problema em si; no entanto, torna incoerente a ideia de desprezar toda e qualquer influência da arte feita “fora da igreja”. Isso não é possível nem necessário.
A arte não é produzida em um vácuo, e nem precisa ser. Podemos olhar à nossa volta e ter um olhar mais generoso e humilde sobre os artistas que estão fazendo coisas diferentes de nós.
Afinal, essa postura de distância muitas vezes vem de um lugar de arrogância, que acredita que não precisamos passar pelos mesmos processos que outros artistas. Não consumir arte feita fora do nosso “círculo fechado” vai nos levar a uma falta de diversidade e falta de capacidade de comunicação com o diferente.
Há outras formas de escolher a arte da qual queremos desfrutar, mas, é claro, essas formas exigem muito mais maturidade e uma identidade mais clara para sabermos aquilo que está nos fazendo bem ou mal.
Assim, podemos buscar um caminho mais maduro e saudável para nos relacionarmos com a arte, seja no fruir ou na produção dela. H. R. Rookmaaker, em seu livro A Arte não Precisa de Justificativa, escreve:
“O Senhor disse que não é o que entra em nós que nos torna impuros, mas o que sai de nós (Mt 15.11). Entretanto, por essa mesma razão, jamais devemos concluir que não podemos escutar esse tipo de música. Isso significa nos desconectar de nosso próprio tempo. Tal comportamento é empobrecedor e significa que não conseguimos entender nossos contemporâneos, aqueles com quem queremos compartilhar sobre o Senhor e a Palavra que Ele nos deu e sobre o que Ele requer de todas as pessoas em obediência a essa palavra.”⁸
Categorias mais claras para lidar com a arte e com a cultura
Precisamos de critérios que não sejam apenas fruto de uma mente dividida (dualista), que considera como critério somente “isso é do mundo ou isso é gospel?”.
Há uma forma de ver a cultura como algo além do qual devemos apenas nos proteger. Algo que pode nos ajudar é pensar no senhorio de Cristo com seu poder e vontade de transformar a cultura através de nossas mãos.
Makoto Fujimura afirma que: “A cultura não é um território a ser ganhado ou perdido, mas um recurso que somos chamados a administrar com cuidado. A cultura é um jardim a ser cultivado.”⁹
Acreditar que o que fazemos aqui tem um valor maior do que o que vemos
Há muitas formas de ver a relação do agora com o futuro. Algumas trazem uma demonização de tudo que existe agora em detrimento ao que virá, levando à crença de que o que importa é a eternidade e nada no presente é digno de atenção. Isso nos leva a acreditar que apenas alguns momentos e lugares específicos (como o momento de culto, o templo ou o chamado altar da igreja) são sagrados, assim como só um tipo de arte, aquela feita para servir esse momento ou ambiente.
No entanto, há uma expressão conhecida que diz “já, mas ainda não”. Ela pode nos ajudar a pensar nesse papel da arte na vida. Vivemos em uma realidade onde experimentamos traços do reino de Deus, mas ainda aguardamos a plenitude de sua manifestação. É nesse intervalo que vivemos, trabalhamos e fazemos arte, cooperando com essa dinâmica da aproximação do reino.
Deus quer manifestar o seu reino aqui e agora. E podemos ser participantes disso enquanto colocamos neste mundo os valores do mundo que virá.
Ainda que não tenhamos a pretensão de transformar o mundo completamente aqui e agora, fomos chamados para realizar o trabalho que está em nossas mãos.
Tolkien, em seu conto Folha de Niggle, fala de um pintor que passou a vida tentando concluir um grande quadro de uma árvore, mas só conseguia terminar pequenas partes dela. Quando Niggle morre, ele se depara com a árvore completa, maior e mais bela do que jamais teria imaginado e representado em sua obra.
Tim Keller¹⁰ lembra desse conto para mostrar que tudo aquilo que fazemos neste mundo, ainda que imperfeito, inacabado e limitado, é um vislumbre do que existirá plenamente na eternidade. Nossos esforços criativos, nossa arte, nossas pequenas “folhas” pintadas no presente, não se perdem. Elas encontram seu lugar no grande quadro de Deus, aquele que um dia veremos completo e plenamente belo.
A arte não é um capricho, um luxo. Ela é o apontamento de Deus que diz que o desfrute que encontramos aqui é só uma sombra do que um dia desfrutaremos plenamente.
Notas
1 AMORIM, Rodolfo. Arte e espiritualidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2022. p. 429.
2 AMORIM, Rodolfo. Arte e espiritualidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2022. p. 428. (citando Calvin Seerveld).
3 DJAVAN. Um amor puro.
4 GUEDES, Beto. Amor de Índio.
5 LEWIS, Clive Staples. Um experimento em crítica literária. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2019. Epílogo.
6 TURNER, Steve. Engolidos pela cultura pop. Viçosa: Ultimato, 2014. p. 44.
7 SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama. São Paulo: Vida Nova, 2017. Cap. 7.
8 ROOKMAAKER, H. R. A arte não precisa de justificativa. Viçosa: Ultimato, 2010. Cap. 4.
9 FUJIMURA, Makoto. Cuidado cultura. Viçosa: Thomas Nelson, 2024. p. 52.
10 KELLER, Timothy. Como integrar fé e trabalho. São Paulo: Vida Nova, 2014. Introdução.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDO
Jesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» O Caminho do Coração – Meditações diárias, Ricardo Barbosa
» A Arte Não Precisa de Justificativa, H. R. Rookmaaker
» A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer
» Fé e cultura: discernindo com sabedoria, por Theo Pemberton
» A igreja precisa de artistas, por Medson Barreto
Por Bruno Santana
A arte é vista por muitos como uma proposta de desconexão da realidade e os artistas como seres que estão sempre com a cabeça nas nuvens, vivendo à procura de inspirações em coisas completamente abstratas e distantes de qualquer aspecto prático do dia a dia.Gostaria de propor uma visão diferente, que acredito ser mais rica e elaborada sobre o assunto.
Primeiramente, acredito que é importante dizer que há, sim, no fazer artístico, um lugar essencial para o subjetivo e para o imaginativo. No entanto, quero defender que esses aspectos não tornam a arte algo fútil ou dispensável, como se esta fosse um mero capricho ou luxo na vida humana. Antes, “a boa obra de arte sempre enriquece e amplia nossa apreensão do real”.¹
Mas, para continuarmos esta conversa, o que podemos entender como arte? Calvin Seerveld traz a seguinte definição: “Um artefato ou ato bem trabalhado, distinguido por uma qualidade imaginativa cuja natureza é aludir a mais significados do que o que é visível, audível, escrito, sentido”.²
É por esse aspecto enriquecedor que muitas vezes a arte nos toca de uma forma que algo simplesmente descritivo não tocaria. Ilustro isso através das obras de dois gênios da música brasileira. Djavan poderia ter dito apenas “eu te amo e quero ficar com você para sempre”, mas disse:
O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo tem pra me conceder
São tuas, até morrer.³
Da mesma forma, Beto Guedes poderia ter dito: “faça o que ama, trabalhe e descanse também”. Mas ele disse:
Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado de viver⁴
Por que essa forma poética de dizer as coisas nos toca tanto? Por que queremos ver filmes e observar as escolhas do diretor nas cenas e seus ângulos, nos diálogos e suas tensões, na escolha dos atores fazendo este ou aquele papel?
C. S. Lewis nos dá um caminho quando diz: “Queremos ver com outros olhos, imaginar com outras imaginações, sentir com outros corações, e com os nossos próprios também. Exigimos janelas. A literatura enquanto sentido é uma série de janelas, ou mesmo de portas. Uma das coisas que sentimos depois de ler uma grande obra é ‘eu saí’. Ou, a partir de outro ponto de vista, ‘eu entrei’, perfurei algo indivisível e entrei e descobri como é lá dentro.”⁵
A obra de arte é um convite a olhar para um recorte da realidade, juntando a visão do artista depositada sobre a obra (direta ou indiretamente), os elementos da obra, a forma como a obra é apresentada e toda a bagagem de significados daquele que a desfruta.
Ou seja, temos um encontro de referências, valores e caminhos. Isso possibilita um fruir muito específico. Por isso, choramos com filmes, dançamos e celebramos com música. É por isso que muitas vezes basta um pequeno contato com a obra para que já sejamos transportados para um lugar diferente: talvez para onde queremos ir, talvez para onde já estivemos, ou mesmo para um estado mais presente onde já estamos – às vezes, todas essas coisas ao mesmo tempo.
Pensando assim, não é que a arte ignora a realidade; antes, convida a um olhar mais atento, muitas vezes mais elaborado. É claro que olhar com mais atenção nos custa tempo, energia e o exercício da nossa imaginação, que precisa apreender os significados e abstrações que a obra suscita.
Por isso, esse contato com a arte nunca é vão ou neutro. Existe no fruir da arte um processo formativo da nossa imaginação, já que ela mexe em um lugar onde estão os nossos significados mais inconscientes. Por isso, a arte pode formar e reformar o imaginário de uma nação inteira, consciente ou inconscientemente.
Assim, a questão não é se a arte está nos formando, mas sim qual arte está nos formando? E como temos respondido a isso? De que forma podemos olhar para a arte de maneira sábia e bíblica?
Entendendo que Deus se importa pessoalmente com a arte
“O primeiro artista citado pela Bíblia é Bezalel, que é especificamente cheio ‘do Espírito de Deus’, que lhe dá ‘destreza, habilidade e plena capacidade artística’ (Êx 31.3). Ele foi capacitado para trabalhar com ouro, prata e bronze, esculpir madeira, talhar e lapidar pedras, gravar e bordar.
Apesar de seus dons terem sido dados para ajudar na construção de um lugar para adoração, neste texto é estabelecido o princípio de que Deus gosta de beleza, design e harmonia. Deus queria ser lembrado de uma forma especial em uma construção que foi o produto da cultura popular da época.”⁶
Há em toda narrativa bíblica sinais claros de que Deus se importa com a arte e deu o fazer artístico à humanidade como uma forma de representar sua visão da realidade criada ou de algo que está além dela.
A arte é vista em diversas manifestações bíblicas:
No Templo: Deus dita todos os detalhes de formatos, cores e materiais que Ele quer que haja na construção.
Na pregação dos profetas: eles, diversas vezes, não falam a mensagem de forma direta, mas encenam aquilo que irá acontecer com o povo (ato teatral), fazendo isso em obediência à voz do próprio Deus.
Na fala de Jesus: quando Ele precisa trazer uma verdade para os ouvintes, constantemente usa figuras de linguagem (metáforas, parábolas, hipérboles). Ele faz isso para ensinar a imaginação dos ouvintes; Jesus se importa com a imaginação, e isso tem tudo a ver com arte.
Um olhar mais atento para as obras do próprio Deus
“Habitamos no mundo de Deus. Isso não é apenas ‘natureza’; é criação. E isso é ‘muito bom’ (Gn 1.31). A criação material não é apenas um tipo de desvio de nossa existência celestial. É a morada muito boa criada por nosso Pai celestial.
A criação não é um erro repulsivo e lamentável da parte de Deus. É o produto do seu amor.”⁷
Olhar para a natureza pode inspirar um artista e nos fazer perceber que há em Deus uma criatividade perfeita. Quando vemos a natureza, precisamos lembrar que ela é também criação de Deus. Toda a sua grandeza, seus detalhes e complexidade podem apontar para alguém que nos criou no meio de um universo belo e diverso.

Uma visão mais generosa para a arte feita por pessoas diferentes de nós
Existem algumas formas de ver a arte que demonizam tudo o que é produzido por não cristãos ou que não tem claramente uma forma confessional, o que acontece principalmente na música. No geral, há uma divisão entre gospel e secular, ou arte cristã e “do mundo”.
Mas essas duas categorias não dão conta da complexidade desse assunto. Fazer arte exige referências, e essas referências estão sendo formadas em nós ainda que inconscientemente. Muitos artistas que são cristãos demonizam a música chamada “do mundo”, mas têm em suas obras diversas referências e influências de obras de não cristãos, percebendo ou não. O que não é um problema em si; no entanto, torna incoerente a ideia de desprezar toda e qualquer influência da arte feita “fora da igreja”. Isso não é possível nem necessário.
A arte não é produzida em um vácuo, e nem precisa ser. Podemos olhar à nossa volta e ter um olhar mais generoso e humilde sobre os artistas que estão fazendo coisas diferentes de nós.
Afinal, essa postura de distância muitas vezes vem de um lugar de arrogância, que acredita que não precisamos passar pelos mesmos processos que outros artistas. Não consumir arte feita fora do nosso “círculo fechado” vai nos levar a uma falta de diversidade e falta de capacidade de comunicação com o diferente.
Há outras formas de escolher a arte da qual queremos desfrutar, mas, é claro, essas formas exigem muito mais maturidade e uma identidade mais clara para sabermos aquilo que está nos fazendo bem ou mal.
Assim, podemos buscar um caminho mais maduro e saudável para nos relacionarmos com a arte, seja no fruir ou na produção dela. H. R. Rookmaaker, em seu livro A Arte não Precisa de Justificativa, escreve:
“O Senhor disse que não é o que entra em nós que nos torna impuros, mas o que sai de nós (Mt 15.11). Entretanto, por essa mesma razão, jamais devemos concluir que não podemos escutar esse tipo de música. Isso significa nos desconectar de nosso próprio tempo. Tal comportamento é empobrecedor e significa que não conseguimos entender nossos contemporâneos, aqueles com quem queremos compartilhar sobre o Senhor e a Palavra que Ele nos deu e sobre o que Ele requer de todas as pessoas em obediência a essa palavra.”⁸
Categorias mais claras para lidar com a arte e com a cultura
Precisamos de critérios que não sejam apenas fruto de uma mente dividida (dualista), que considera como critério somente “isso é do mundo ou isso é gospel?”.
Há uma forma de ver a cultura como algo além do qual devemos apenas nos proteger. Algo que pode nos ajudar é pensar no senhorio de Cristo com seu poder e vontade de transformar a cultura através de nossas mãos.
Makoto Fujimura afirma que: “A cultura não é um território a ser ganhado ou perdido, mas um recurso que somos chamados a administrar com cuidado. A cultura é um jardim a ser cultivado.”⁹
Acreditar que o que fazemos aqui tem um valor maior do que o que vemos
Há muitas formas de ver a relação do agora com o futuro. Algumas trazem uma demonização de tudo que existe agora em detrimento ao que virá, levando à crença de que o que importa é a eternidade e nada no presente é digno de atenção. Isso nos leva a acreditar que apenas alguns momentos e lugares específicos (como o momento de culto, o templo ou o chamado altar da igreja) são sagrados, assim como só um tipo de arte, aquela feita para servir esse momento ou ambiente.
No entanto, há uma expressão conhecida que diz “já, mas ainda não”. Ela pode nos ajudar a pensar nesse papel da arte na vida. Vivemos em uma realidade onde experimentamos traços do reino de Deus, mas ainda aguardamos a plenitude de sua manifestação. É nesse intervalo que vivemos, trabalhamos e fazemos arte, cooperando com essa dinâmica da aproximação do reino.
Deus quer manifestar o seu reino aqui e agora. E podemos ser participantes disso enquanto colocamos neste mundo os valores do mundo que virá.
Ainda que não tenhamos a pretensão de transformar o mundo completamente aqui e agora, fomos chamados para realizar o trabalho que está em nossas mãos.
Tolkien, em seu conto Folha de Niggle, fala de um pintor que passou a vida tentando concluir um grande quadro de uma árvore, mas só conseguia terminar pequenas partes dela. Quando Niggle morre, ele se depara com a árvore completa, maior e mais bela do que jamais teria imaginado e representado em sua obra.
Tim Keller¹⁰ lembra desse conto para mostrar que tudo aquilo que fazemos neste mundo, ainda que imperfeito, inacabado e limitado, é um vislumbre do que existirá plenamente na eternidade. Nossos esforços criativos, nossa arte, nossas pequenas “folhas” pintadas no presente, não se perdem. Elas encontram seu lugar no grande quadro de Deus, aquele que um dia veremos completo e plenamente belo.
A arte não é um capricho, um luxo. Ela é o apontamento de Deus que diz que o desfrute que encontramos aqui é só uma sombra do que um dia desfrutaremos plenamente.
- Bruno Santana, músico, palestrante e cofundador do Vitral Podcast
Notas
1 AMORIM, Rodolfo. Arte e espiritualidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2022. p. 429.
2 AMORIM, Rodolfo. Arte e espiritualidade. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2022. p. 428. (citando Calvin Seerveld).
3 DJAVAN. Um amor puro.
4 GUEDES, Beto. Amor de Índio.
5 LEWIS, Clive Staples. Um experimento em crítica literária. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2019. Epílogo.
6 TURNER, Steve. Engolidos pela cultura pop. Viçosa: Ultimato, 2014. p. 44.
7 SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama. São Paulo: Vida Nova, 2017. Cap. 7.
8 ROOKMAAKER, H. R. A arte não precisa de justificativa. Viçosa: Ultimato, 2010. Cap. 4.
9 FUJIMURA, Makoto. Cuidado cultura. Viçosa: Thomas Nelson, 2024. p. 52.
10 KELLER, Timothy. Como integrar fé e trabalho. São Paulo: Vida Nova, 2014. Introdução.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDOJesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» O Caminho do Coração – Meditações diárias, Ricardo Barbosa
» A Arte Não Precisa de Justificativa, H. R. Rookmaaker
» A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer
» Fé e cultura: discernindo com sabedoria, por Theo Pemberton
» A igreja precisa de artistas, por Medson Barreto
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