Opinião
- 21 de abril de 2021
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Pão a quem tem fome
Por Maria Aparecida Antão
“Eis que alguém se aproximou de Jesus e lhe perguntou: Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna”. “Se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê dinheiro aos pobres e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me” (Mt 19.16-21).
Há muito tempo tenho o hábito de escutar o programa “Observatório Feminino” que vai ao ar todos os domingos de manhã. Não só pelo título - “Observatório” -, mas também pelo chamado ao público feminino. Percorro os temas a partir da escuta que diz respeito às mulheres de modo geral, mas visceralmente também a mim. Num domingo recente a convidada foi “Patrícia” - (não guardei o sobrenome) - uma das coordenadoras da CUFA/BH – Central Única das Favelas de MG1, representante da comunidade/território do Morro do Papagaio. “Território” - denominação dada à região das comunidades excluídas no grande território não periférico.
Dentre as várias aflições já existentes nas comunidades, houve um agravamento após o início da pandemia. A palestrante citou na sua brilhante exposição as questões das mulheres das comunidades excluídas socialmente. Destaco alguns pontos: 1) As mulheres da periferia representam no mínimo 50% da renda familiar, sendo, desde cedo, a mão de obra ativa do lar. A Covid veio tirar concretamente dessas famílias o dinheiro trazido por essas mulheres. 2) Praticamente todas as mulheres da periferia têm dupla ou tripla jornada de trabalho, pois além dos afazeres domésticos trabalham em outros territórios e serviços que não pararam. 3) 80% dessas mulheres são “chefes de família” e neste momento encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade porque diariamente necessitam se deslocar de casa para o trabalho em transportes coletivos precários e lotados, ou seja, exposição concreta de risco à saúde. 4) O problema mais grave é o número de óbitos. São muitas famílias cujas crianças ficarão órfãs pós controle da pandemia e até o momento não há nenhuma ação concreta que esteja, antecipadamente, desenhando algum projeto social e de assistência a uma geração que está aí na nossa frente e que se tornará mais um dos tantos problemas sociais gravíssimos de nosso país.
Infelizmente a pandemia, além da grande devastação que vem promovendo mundo afora, também traz um forte agravante: não é democrática!
Além dos temas destacados, a palestrante se incluiu na situação. Relatou aos ouvintes que do lugar onde reside no Morro do Papagaio tem vista para o bairro Serra. Disse também que a separação dos territórios se dá às vezes pela divisão de apenas uma rua. A comunidade enxerga do outro lado da rua além dos muros de concreto, “muros invisíveis” que separam seres humanos em pessoas desiguais. Não estava falando, naturalmente, apenas da cor da pele, das diferenças culturais e econômicas, isto é óbvio e sim do fosso aberto pela fome. Atrás do muro, a mesa farta! Tão farta que deixa restos e mais restos que mais tarde ou no dia seguinte serão catados, como se fosse uma colheita perdida, por aqueles do outro lado que, cruelmente, no mesmo dia estavam dividindo entre si (quando havia) apenas um prato de comida.
Encerro este texto com dois pequenos trechos do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus2: - “Passei no frigorífico para pegar ossos. Nos início eles nos dava linguiça. Agora nos dá osso. Eu fico horrorisada vendo a paciência da mulher pobre que contenta com qualquer coisa” (p. 113). “Achei um saco de fubá no lixo e trouxe para dar ao porco. Eu já estou tão habituada com as latas de lixo, que não sei passar por elas sem ver o que há dentro” (p. 125). Dá vontade de citar o livro todo. Os erros ortográficos fazem parte do original.
Concluo fazendo minhas as palavras da Patrícia: “A desigualdade não é lá longe, às vezes é apenas atravessar a rua. Doar é um gesto de amor”.
• Maria Aparecida Antão, psicóloga clínica, especialista em Psicanálise, Saúde Pública e Saúde Mental e Trabalho. Membro da Igreja Batista da Redenção, BH/MG.
Notas:
1. CUFA – Central Única das Favelas / contato@cufa.org.br (Diretoria Institucional)
2. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo – diário de uma favelada. 1960.
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