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Opinião

O “pacifismo instintivo” de Stott

Por José de Segovia
 
A objeção de consciência do “tio John”, enquanto seu pai, médico militar, era cercado pelos nazistas em Dunquerque, gerou incompreensão e ruptura, razão pela qual não mantiveram nenhuma relação durante muitos anos.
  
Todos temos ideias e emoções que não constituem um sistema normativo de conduta e crenças que formem uma ideologia. Ultimamente, fala-se muito sobre a diferença entre ideias e ideologia. Em inglês, a distinção linguística é mais clara. É nesse sentido que John Stott costumava dizer que era “um pacifista instintivo”. Acontece que, na Segunda Guerra Mundial, isso não era algo simples, especialmente em um mundo que ainda não conhecia a popularidade do movimento pela paz dos anos 1960. Quando o conheci, Stott já não era um objetor de consciência, mas mantinha desde criança aquele “pacifismo instintivo” de que falava. Não era uma visão do mundo, nem uma filosofia, mas uma escolha pessoal.
 
A objeção de consciência do “tio John” - como gostava de ser chamado por todos que gostávamos dele - enquanto seu pai, médico militar, era cercado pelos nazistas em Dunquerque, gerou incompreensão e ruptura, razão pela qual não mantiveram nenhuma relação durante muitos anos. Era algo pouco conhecido, até que seu amigo Tim Dudley-Smith publicou o primeiro volume de sua monumental biografia. Stott não costumava falar disso, mas foi algo que marcou toda sua vida.
 
Se ele tivesse sido um “quaker”, como seu amigo íntimo Oliver Barclay (1919-2013) - responsável pelo movimento cristão de estudantes evangélicos na universidade de Cambridge durante a guerra, que estudava também no Trinity College, principal faculdade que havia na Inglaterra -, seria mais compreensível, mas Stott era anglicano. É verdade que sua avó era alemã e ele havia passado dois verões lá aprendendo alemão, mas não era uma questão familiar, pois seu pai era coronel do Exército. Frente a Hitler, poucos compreendiam a objeção de consciência.
 
Curiosamente, tanto Stott como Barclay acabariam sendo partidários da “guerra justa”, com as condições estabelecidas por Agostinho - ou seja, guerra de defesa e com proporcionalidade. Cheguei à mesma convicção que eles - depois de ter sido objetor de consciência -, mas suponho que, como dizia Stott, tenho um “instinto pacifista”. No meu caso, acho que é mais um sentimento antimilitarista. Nasci e cresci na Espanha, durante a ditadura do general Franco. Quem não compartilhava dos ideais do regime tinha, naturalmente, pouca simpatia pelo exército. O serviço militar era obrigatório, e a objeção de consciência, um direito. 
 
Tempo de guerra

Quando a guerra eclodiu, em setembro de 1939, Stott ainda estudava no colégio Rugby. Foi para Cambridge em outubro de 1940. Para ser registrado como objetor de consciência, era preciso passar por um tribunal que decidia se seu pacifismo era mesmo genuíno. Os membros do clero estavam isentos das armas, mas passavam a fazer parte da capelania militar. Na prática, durante a Segunda Guerra Mundial na Inglaterra, para ser aceito como objetor pelo tribunal, era necessário demonstrar que seu pacifismo era anterior ao início da guerra.
 
Seis meses da guerra começar, logo após sua conversão, Stott havia conversado com o diretor do Rugby sobre seu pacifismo e seu desejo de estudar teologia a fim de ser ordenado para o ministério anglicano. Quem pudesse demonstrar a intenção de ser candidato à ordenação antes de setembro de 1939 não precisava comparecer ao tribunal de objeção.
 
O problema é que Stott ficou registrado nos livros do regimento que correspondia ao Rugby em Warwickshire até janeiro de 1946, embora somente tenham sido convocados jovens com mais de vinte anos completos. Isso lhe trouxe muitos problemas mais tarde. Seu amigo de Cambridge, Oliver Barclay, havia passado pelo tribunal como “quaker” em 1938. Estava, como objetor de consciência, totalmente isento do serviço militar, mas esse não era o caso de Stott. À medida que a guerra avança, e com o início dos bombardeios à Inglaterra, a invasão alemã se torna uma clara possibilidade. 
 
“Um Novo Livro”

Quando “o tio John” conheceu a fé evangélica, já tinha certo conhecimento das Escrituras. “Lia a Bíblia todos os dias antes de me converter – diz – porque minha mãe me educou assim, embora não tivesse a mais vaga ideia do que se tratava”. Não entendia. “Quando nasci de novo e o Espírito Santo veio habitar em minha vida – conta Stott –, a Bíblia se tornou imediatamente um novo livro para mim”. Vinte anos depois, diria ainda, com sua característica humildade: “Estou longe de entendê-la toda hoje, mas comecei a compreender coisas que nunca havia entendido antes”.
 
Sua atitude em relação às Escrituras havia mudado. Antes, a julgava. O cristianismo evangélico, para Stott, começa sempre com a autoridade da Bíblia. Para ele, era algo fundamental. Aos 17 anos, começou a sublinhar em vermelho versos do Novo Testamento que lhe foi presenteado por Bash - o evangelista da União Bíblica (Scripture Union) que, para alcançar a geração que iria dirigir a Inglaterra, visitava as elitistas escolas privadas chamadas de “públicas” naquele país. Ao mesmo tempo, Stott começou outra série de cadernos, além daqueles de observação de pássaros. Neles escrevia notas de sermões, estudos bíblicos e palestras sobre a vida cristã.
 
Nos últimos anos no Rugby, levou vários companheiros à fé. No verão de 1938, foi novamente ao continente, para aprender francês, e depois foi ajudar Bash no acampamento da União Bíblica. Trouxe da França uma garrafa de vinho de presente, sem saber que Bash - como muitos evangélicos ingleses - não bebia álcool. No ano seguinte, convidou outros estudantes para um retiro de Páscoa e assumiu a condução do estudo bíblico do “assunto de Bridger” - como ele continuava a chamar divertidamente as reuniões, em referência ao estudante que o convidou inicialmente a participar. Um colega de classe fez uma profissão de fé (Philip Thomson), mas outro se afastou (David Jenkins) pela pressão do grupo que ridicularizava aqueles que iam à reunião de domingo após o almoço. Stott aprendeu com os dois casos. 
 
Cambridge nos anos 1940

Nos anos 1930, menos de dois por cento dos jovens britânicos de dezoito anos entravam na universidade, mas nos anos 1940, eram ainda menos. Foram os anos da Batalha da Inglaterra, tempos de máscaras de gás, abrigos antiaéreos e ausência de todos os rapazes a partir dos vinte anos. A cidade estava cheia de evacuados. Quase uma dezena de residências universitárias estavam cheias de aviadores militares em treinamento, porque a Royal Air Force tinha sua base ali. À noite havia um apagão, porque durante horas os bombardeiros alemães destruíam as casas e não se podia acender as luzes.
 
O Trinity College, fundado por Henrique VIII, era a faculdade mais importante da Inglaterra. Ali só eram aceitos estudantes dos colégios mais elitistas. Era na época um meio exclusivamente masculino - havia então na Inglaterra apenas duas faculdades para mulheres, Newnham e Girton. O alojamento de Stott não ficava no pátio principal mais conhecido, mas do outro lado da rua. Era um dormitório com uma sala de estar no primeiro andar da chamada “mesa de bilhar”, devido ao pátio retangular conhecido como “o Jardim do Éden”. Esse foi seu espaço de estudo durante quatro anos, guiado por um tutor, especialista em Direito romano, Patrick Duff - mais tarde professor de Direito Civil.
 
Foi durante aqueles anos na universidade que John Stott passou a se levantar cedo, hábito que manteve pelo resto da vida. Começou a acordar às seis, depois às cinco. Durante uma hora e meia, lia a Bíblia e orava, prática à que se refere nos diários por meio da sigla QT (Quiet Time), ou seja, tempo devocional, ou, literalmente, “tranquilo”, como Bash lhe havia ensinado. Depois lia o jornal, que costumava ser o The Times, e tomava o café da manhã no refeitório às oito. Compensava as poucas horas de sono com um tempo de “siesta” - como se diz em inglês usando a palavra espanhola -, algo pouco habitual em uma cultura que usa até a meia hora de almoço para fazer reuniões - embora Churchill mantivesse a mesma prática. 
 
Estudantes cristãos

O movimento de estudantes evangélicos nasce em Cambridge com a formação da CICCU (Cambrige Inter-Collegiate Christian Union) em 1876, embora tenha raízes no ministério de Charles Simeon quase um século antes, como membro do conselho do King"s College e pastor da Igreja da Santa Trindade (Holy Trinity). Tem caráter distintamente evangélico, baseado na teologia bíblica, com escopo interdenominacional e ênfase missionária. Em outras universidades o movimento é chamado simplesmente de Christian Union, mas em Cambridge continua sendo conhecido pela sigla CICCU - pronunciada “Kick-You”, um jogo de palavras para dar a ideia de avançar, ou, literalmente, ser “chutado”.
 
A CICCU estava baseada na igreja evangélica anglicana de Trinity, onde Simeon, que se tinha “proposto não conhecer nada além de Jesus Cristo crucificado”, pregou por mais de meio século. Costumavam se reunir no edifício que construíram ao lado do templo em homenagem ao missionário do século XIX na Índia e na Pérsia, Henry Martin, convertido sob o ministério de Simeon. O grupo rompe, em 1910, com o Movimento de Estudantes Cristãos (SCM), que havia abraçado a teologia liberal a respeito da Bíblia, da Cruz e da Deidade de Cristo. O primeiro presidente da CICCU foi o futuro arcebispo de Sydney, Howard Mowll.
 
Após a Primeira Guerra Mundial, muitos ex-combatentes vão para a universidade. A liderança da SCM faz uma tentativa de se aproximar da CICCU em 1918, com a ideia de que aportasse algo de seu calor devocional e entusiasmo evangelístico ao movimento original, debilitado pela guerra. O presidente da CICCU era Norman Grubb. Após as conversas que tiveram em Trinity, Grubb concluiu que “não podiam se unir a algo que não mantinha o sangue expiatório de Jesus Cristo como centro”. Isso era muito importante para Stott, que menciona o episódio em seu livro A Cruz de Cristo a fim de ilustrar o caráter essencial dessa doutrina. 
 
A centralidade da cruz

Stott diz que, nos anos em que estudou em Cambridge, de 1940 a 1945, o grupo bíblico universitário lhe deu “amizades, ensino, livros e oportunidades de serviço”. Nas manhãs de domingo, frequentava a igreja de São Paulo ou a outra congregação anglicana de Cambridge, mais conhecida por sua fé evangélica, a Igreja Redonda do Santo Sepulcro. Embora Stott nunca tenha se tornado, formalmente, membro da CICCU, ele participava de todas as atividades, junto com seu colega de faculdade, Oliver Barclay. Dois anos mais velho, Barclay vinha de uma conhecida família evangélica e era filho de missionários no Japão. Os dois cantavam no coro de Trinity e depois iam à pregação evangelística que a CICCU organizava na Holy Trinity nas tardes de domingo.
 
A principal referência teológica de Stott em Cambridge era John Wenham (1913-1996). Pastor da igreja de São Mateus, era oito anos mais velho que “o tio John”. Uma vez, Wenham convidou Stott a para falar em sua congregação sobre as Últimas Coisas. Por influência de Bash, Stott tinha a Bíblia de Scofield e apresentou um esquema dispensacional de escatologia, sobre um Reino milenar. Wenham mostrou-lhe “o erro de sua postura”. Foi ele também quem apresentou a Stott a monumental biografia em dois volumes do missionário na China Hudson Taylor. Dela aprendeu, diz Stott, sobre a fidelidade de Deus e a necessidade de ter fé como uma criança, tanto no âmbito material como no espiritual.
 
Alguém poderia perguntar como Stott e Barclay conciliavam seu pacifismo não violento com a doutrina da ira de Deus mostrada no caráter expiatório da Cruz. Para eles, não se trata de dois elementos contrapostos, pois a verdadeira base da não-violência é a Cruz. Quando o apóstolo Paulo diz aos Romanos que devemos renunciar à vingança (12:19), é porque a ira de Deus pertence ao Juízo final. O cristão não deve devolver mal com mal (v. 17), porque Cristo sofreu em nosso lugar, como diz Pedro (I Pedro 2:21-24). A justiça de Deus mostrada na cruz é a razão pela qual devemos “estar em paz com todos” (Romanos 12:18).
 
A teologia evangélica clássica considera que esse não é um tema com o qual possamos brincar. Podemos ter uma atitude aberta em muitas coisas, mas a natureza expiatória da redenção não é só uma possibilidade a mais de entender a Cruz. Está bem no centro da doutrina cristã. Não há como buscar a justiça sem reconhecer que ela é realizada plenamente na Cruz e será finalmente manifesta no julgamento futuro. É por isso que podemos mostrar graça e amor a todos. Se a ira de Deus não for revelada na Cruz, o que haverá é um desejo de vingança, mesmo que esteja disfarçado como os ideais mais elevados. Só é possível renunciar à violência por meio da violência da Cruz. Essa é a maravilha do Evangelho.

• José de Segovia Barrón, pastor da Igreja Evangélica do bairro de San Pascual em Madrid. Professor da Faculdade Internacional de Teologia IBSTE de Castelldefels, do Centro Evangélico de Estudios Bíblicos (CEEB) de Barcelona, da Faculdade de Teologia UEBE (FTUEBE) de Alcobendas (Madrid) e da Escola de Estudos Bíblicos e Teológicos de Welwyn (Inglaterra). Autor dos livros EntrelíneasOcultismoHistorias Extrañas Sobre JesúsEl Príncipe Caspian y La Fe de C. S. LewisMarcas del Cristianismo en el Cine e El Asombro del perdón. É casado com Anna, e tem quatro filhos: Lluvia, Natán, Noé e Edén.
 
Publicado originalmente no site Protestante Digital. Reproduzido com autorização.
 
Traduzido por Davi Pinto.

>> Conheça a série O Cristão Contemporâneo, de John Stott

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