Opinião
- 22 de janeiro de 2019
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Ninguém escolhe ser refugiado ou nem sempre o que queremos dar é o que as pessoas precisam
Por Paula Mazzini
É a velha história: vamos ensinar e somos nós que aprendemos; vamos ajudar e nós que somos ajudados. Fui trabalhar com ajuda humanitária e eu que acabei me tornando mais humana. Compartilho alguns relatos subjetivos do que aprendi com os venezuelanos em Boa Vista-RR.
Pobreza não é desculpa para falta de generosidade.
Certamente um trabalho humanitário nos dá a chance de abençoar outros. Mas a experiência vai além disso – inclui ser alvo de atos de generosidade vindos de pessoas que não precisariam se justificar caso optassem por apenas receber. Um rapaz te oferece suco ao ver você suando durante uma brincadeira com as crianças. Um pai traz seu lençol para ajudar a projetar um filme. Uma mãe, ao receber uma doação de roupas de bebê, vai até seu quarto e volta com outras peças, que já não servem em seu filho, mas podem servir em outra criança. Uma artesã, ao ver você comprando pulseiras, oferece uma de brinde e, quando você escolhe uma das mais baratas, ainda ouve: “essa não, essa é muito simples”. Uma criança que, ao ver que o chinelo da sua amiga havia arrebentado, oferece seu próprio sapato para que a outra não precise andar descalça na rua. Todas essas pessoas são refugiadas e são generosas. Todas elas entenderam o que muitos de nós não conseguem: generosidade, bondade, amor ao próximo não estão ligados a condição financeira. Qualquer um, em qualquer lugar, pode demonstrar amor e cuidado.
Toda história tem mais de um lado.
Ouvimos muito sobre os efeitos que a chegada em massa dos venezuelanos tiveram sob a tranquila cidade de Boa Vista. Aumento da violência, da prostituição, superlotação de escolas e postos de saúde. Tudo isso é verdade. O que não podemos fazer é colocar neles o peso da culpa pelo aumento da criminalidade, por exemplo. Muitas pessoas – inclusive brasileiros – enxergam na fragilidade do próximo uma oportunidade de tirar proveito da situação. E assim, a lista de crimes cometidos nesse ambiente de crise humanitária inclui não somente crimes pequenos, como roubos e brigas, mas também crimes de extorsão, exploração de trabalho, xenofobia, violência física e psicológica. Muitos passam impunes e despercebidos ou são sequer denunciados. Restringir a onda de crimes e violência a uma nacionalidade ou culpabilizar apenas os refugiados é olhar apenas uma fração da história.
Todos nós somos imigrantes.
Essa foi a saudação de um padre, ao iniciar sua fala em um simpósio sobre refugiados e imigração. Em seu raciocínio, mostrou que não apenas o estado de Roraima tem uma história pautada na imigração (de maranhenses, de indígenas, de gaúchos, de nerds e agora de venezuelanos e haitianos), mas também o próprio Brasil, com sua famosa miscigenação. Qualquer pessoa que for traçar sua árvore genealógica verá que em algum lugar da sua história a imigração esteve presente. Ou seja, antes de julgar e condenar aqueles que usufruem do direito universal de migrar, é preciso um exercício de autoavaliação e o reconhecimento de que somos todos iguais, apenas vivendo épocas e ciclos migratórios diferentes.
Ninguém escolhe ser refugiado.
Parece óbvio demais. Mas ninguém, em sã consciência, escolhe sair de seu país, pedir refúgio e ter que recomeçar toda uma vida, tendo que aprender uma nova língua, uma nova cultura, deixando para trás uma família, uma história e uma bandeira. Ser refugiado não é uma escolha - é uma condição consequente de alguma falha social, crise ou situação de risco. É uma estratégia de sobrevivência. É como disse uma venezuelana que encontrei nas ruas de Boa Vista: “Eu sonhava em sair da Venezuela para passear, conhecer a Espanha, por exemplo. Nunca pensei e nunca quis deixar meu país”.
Existe uma constrangedora gratidão generalizada.
Isso era algo visível na fala de muitos – a gratidão, o respeito e até o temor em vista da grande operação feita para acolhê-los. Talvez a melhor imagem disso foi ver algumas crianças venezuelanas, refugiadas e indígenas, em uma festa cultural, cantarem com uma dicção invejável o hino nacional brasileiro, com todas as suas pomposas palavras. Uma imagem marcante com uma mensagem profunda. Em alguns momentos a gratidão até atrapalhava. Na hora de reclamar de uma injustiça ou de um serviço mal feito, muitos não se sentiam “dignos”, devido a condição em que estão. Também havia um certo desencorajamento, diante de reações como “tá ganhando e ainda tá reclamando?” ou o cansativo rótulo de “mal-agradecidos”. Realmente precisamos rever o conceito de direitos humanos, que é bem diferente do conceito de caridade assistencialista.
Ninguém é melhor do que todos nós juntos.
Há pelo menos 25 organizações diferentes em Boa Vista trabalhando em prol dos venezuelanos. Cada uma com seus protocolos, seu modus operandi, seus uniformes, suas regras, sua equipe. Originárias da Itália, Noruega, Estados Unidos, França, bem conhecidas como os Médicos Sem Fronteiras ou mais desconhecidas como a ADRA (agência humanitária adventista). Muita gente, muitos recursos e talvez muitas desculpas para trabalhar de forma isolada. Porém, não é o que acontece. Ao ver um objetivo em comum, como a comemoração do dia das crianças, as forças se unem. Por que fazer cada uma sua festa se podemos nos juntar e fazer uma grande festa juntos? Há um espírito visível de cooperação entre organizações, agências, militares e voluntários. Fica o exemplo de que não apenas é possível, mas extremamente necessário nos ombrearmos em prol de um bem maior.
Nós, protestantes, temos muito o que aprender com os católicos.
Um dos abrigos de Boa Vista foi construído ao lado de uma igreja católica. A reação da igreja? Quebrar o muro de separação entre os terrenos para que o abrigo fosse ampliado e coubessem mais barracas. Nossos irmãos católicos têm uma longa e sólida caminhada entre os refugiados e migrantes. Basta mencionar a pastoral do migrante ou a Cáritas e observar o respeito que alguns padres e freiras tem nesses ambientes “seculares”. Mesmo havendo grandes reservas quanto a manifestação de princípios religiosos, isso não impediu que um padre fosse convidado para um dos eventos como palestrante. O motivo? Seu trabalho já existia muito antes de a crise migratória virar notícia. Eles sempre estão e sempre estiveram entre os refugiados. Infelizmente não podemos dizer o mesmo de nós, protestantes. Poucas igrejas estão envolvidas nos comitês e grupos de ajuda humanitária. E para nossa vergonha, alguns grupos protestantes que tentam são impedidos de entrar nos abrigos, por insistirem em realizar cultos e fazer evangelismo com o objetivo de “encher suas igrejas”. O que será que ainda não entendemos? Precisamos pedir ajuda aos católicos.
Amizades podem surgir em lugares improváveis.
Geralmente procuramos amizades entre os iguais. O que dizer então de uma amizade entre alguém na faixa dos 30 e uma senhora de 70? Ou com uma garotinha de 4 anos? É possível. A senhora se tornou uma excelente parceira em passeios, cafés, trocas de receita, caronas para a igreja, dicas de viagem e compras. A garotinha? Uma excelente companhia nos cafés da manhã e fins de tarde. Uma visita ilustre que aparecia em nossa casa enquanto seus pais missionários descansavam do trabalho entre os indígenas. E nos despedimos trocando presentes e abraços, certas de que uma boa amizade pode surgir até mesmo nos lugares mais improváveis.
Nem sempre o que queremos dar é o que as pessoas precisam.
Um princípio básico e conhecido que precisa ser relembrado. É bom quando nos dispomos a distribuir roupas, sapatos, Bíblias e comida para pessoas que precisam. Mas o melhor mesmo seria perguntar antes de dar, conforme o próprio conselho bíblico de “dar segundo a necessidade da pessoa” (At 2.45) e não segundo nossa percepção subjetiva dessa necessidade. Podemos nos surpreender ao perguntar e, além disso, oferecemos mais do que nossa ajuda – oferecemos a pessoa a dignidade de escolher. “Uns óculos para minha filha”, “usar a internet”, “comer biscoito recheado”, “não quero nada para mim, mas tenho uma amiga que está precisando de ajuda”, são algumas das respostas que recebemos e que nos deram a oportunidade de fazer mais do que o óbvio ululante.
Um culto não acontece apenas quando há orações e liturgia.
Confesso que, sendo protestante, às vezes vinha o questionamento diante do fato de não poder fazer coisas “religiosas”. Nesse tempo não conduzi nenhum culto, ninguém aceitou Jesus e não fizemos nenhuma EBF, evangelismo ou vigília. Porém, numa tarde, fomos convidadas por uma família de um dos abrigos a participar da festa de uma criança de 9 anos. Uma festa singela, mas muito alegre, com música venezuelana e uma boa sinergia entre todos. Ao final, na hora de cantar parabéns, uma das senhoras puxa uma linda canção, uma bênção cantada para a aniversariante. E imediatamente todos começaram a cantar. E naquele momento solene eu entendi que, muitas vezes os cultos estão disfarçados de festas. E tem o mesmo efeito: revigoram, alegram, trazem comunhão, gratidão. Acho que por isso Jesus gostava tanto de festas.
É possível sorrir, mesmo em meio a situações difíceis.
Assim como a generosidade, o sorriso também não precisa estar restrito a determinadas situações. E para aqueles que, como eu, perdem facilmente a motivação de sorrir por causa de uma dor de cabeça, um dia ruim ou uma pessoa irritante, é constrangedor ver entre os refugiados pessoas com histórias devastadoras e ainda assim, sorridentes. Como o rapaz, executivo de vendas na Venezuela, que agora cuida de carros e dorme na rua para juntar dinheiro para mandar ao seu irmão portador de HIV em estado avançado. Ou a moça que deixou as duas filhas na Venezuela e veio sozinha tentar a sorte no Brasil. Histórias contadas com dor sim, mas também com um sorriso e a esperança de quem não desistiu de lutar.
Militares podem ser dóceis, religiosos podem ser rudes.
A figura de um militar, para qualquer brasileiro que conheça o mínimo sobre a ditadura, é uma figura séria, impositiva e até ameaçadora. Eles realmente mantêm a ordem dentro dos abrigos – mas o que vimos e testemunhamos foi que, além da força, também há doçura e humanidade por trás das fardas. Militares tirando selfies com crianças, perguntando do dever de casa, fazendo cócegas e emprestando o estetoscópio para elas ouvirem seu próprio coração. Montando redes de vôlei, tomadas, estruturas de cimento para cozinhar. Limpando, organizando, guardando bicicletas. Farda não define ninguém – o coração, sim.
Autoridade se conquista não se impõe.
Ainda sobre os militares, o que muitos não sabem é que dentro dos abrigos não há militares armados. Apenas em situações de emergência, um grupo armado entra se for solicitado. E como eles mantém a ordem em locais com 600 pessoas em situação de vulnerabilidade e stress? Certamente não da forma mais fácil, com armas de fogo e ameaças. Mas da forma mais consistente: conquistando um respeito que vai além da força física.
Não dá para desprezar o fator cultural.
Um dia tentamos fazer com as crianças uma brincadeira em círculo com cantigas de roda. Algumas tentaram nos acompanhar, mas não estava sendo tão proveitoso quanto pensávamos. Ao perceber isso, uma jovem que estava por perto entrou na roda e puxou a “conga” - o “atirei o pau no gato” das crianças venezuelanas. Foi um sucesso. O ambiente mudou rapidamente e confirmarmos o que já sabíamos: não dá para desprezar o poder que uma cultura tem de trazer senso de pertencimento.
O caos não impede a beleza.
Boa Vista é uma cidade que vive uma crise. Ainda assim, as praças são limpas, floridas e o Natal um dos mais iluminados que já vi. Nos abrigos há árvores de natal, pinturas nos muros e música de fundo. Enfeites feitos pelos próprios refugiados e até flores. Há caos? Obviamente. Mas também há beleza – porque uma coisa definitivamente não anula a outra.
• Paula Mazzini é membro do Exército de Salvação.
É a velha história: vamos ensinar e somos nós que aprendemos; vamos ajudar e nós que somos ajudados. Fui trabalhar com ajuda humanitária e eu que acabei me tornando mais humana. Compartilho alguns relatos subjetivos do que aprendi com os venezuelanos em Boa Vista-RR.
Pobreza não é desculpa para falta de generosidade.
Certamente um trabalho humanitário nos dá a chance de abençoar outros. Mas a experiência vai além disso – inclui ser alvo de atos de generosidade vindos de pessoas que não precisariam se justificar caso optassem por apenas receber. Um rapaz te oferece suco ao ver você suando durante uma brincadeira com as crianças. Um pai traz seu lençol para ajudar a projetar um filme. Uma mãe, ao receber uma doação de roupas de bebê, vai até seu quarto e volta com outras peças, que já não servem em seu filho, mas podem servir em outra criança. Uma artesã, ao ver você comprando pulseiras, oferece uma de brinde e, quando você escolhe uma das mais baratas, ainda ouve: “essa não, essa é muito simples”. Uma criança que, ao ver que o chinelo da sua amiga havia arrebentado, oferece seu próprio sapato para que a outra não precise andar descalça na rua. Todas essas pessoas são refugiadas e são generosas. Todas elas entenderam o que muitos de nós não conseguem: generosidade, bondade, amor ao próximo não estão ligados a condição financeira. Qualquer um, em qualquer lugar, pode demonstrar amor e cuidado.
Toda história tem mais de um lado.
Ouvimos muito sobre os efeitos que a chegada em massa dos venezuelanos tiveram sob a tranquila cidade de Boa Vista. Aumento da violência, da prostituição, superlotação de escolas e postos de saúde. Tudo isso é verdade. O que não podemos fazer é colocar neles o peso da culpa pelo aumento da criminalidade, por exemplo. Muitas pessoas – inclusive brasileiros – enxergam na fragilidade do próximo uma oportunidade de tirar proveito da situação. E assim, a lista de crimes cometidos nesse ambiente de crise humanitária inclui não somente crimes pequenos, como roubos e brigas, mas também crimes de extorsão, exploração de trabalho, xenofobia, violência física e psicológica. Muitos passam impunes e despercebidos ou são sequer denunciados. Restringir a onda de crimes e violência a uma nacionalidade ou culpabilizar apenas os refugiados é olhar apenas uma fração da história.
Todos nós somos imigrantes.
Essa foi a saudação de um padre, ao iniciar sua fala em um simpósio sobre refugiados e imigração. Em seu raciocínio, mostrou que não apenas o estado de Roraima tem uma história pautada na imigração (de maranhenses, de indígenas, de gaúchos, de nerds e agora de venezuelanos e haitianos), mas também o próprio Brasil, com sua famosa miscigenação. Qualquer pessoa que for traçar sua árvore genealógica verá que em algum lugar da sua história a imigração esteve presente. Ou seja, antes de julgar e condenar aqueles que usufruem do direito universal de migrar, é preciso um exercício de autoavaliação e o reconhecimento de que somos todos iguais, apenas vivendo épocas e ciclos migratórios diferentes.
Ninguém escolhe ser refugiado.
Parece óbvio demais. Mas ninguém, em sã consciência, escolhe sair de seu país, pedir refúgio e ter que recomeçar toda uma vida, tendo que aprender uma nova língua, uma nova cultura, deixando para trás uma família, uma história e uma bandeira. Ser refugiado não é uma escolha - é uma condição consequente de alguma falha social, crise ou situação de risco. É uma estratégia de sobrevivência. É como disse uma venezuelana que encontrei nas ruas de Boa Vista: “Eu sonhava em sair da Venezuela para passear, conhecer a Espanha, por exemplo. Nunca pensei e nunca quis deixar meu país”.
Existe uma constrangedora gratidão generalizada.
Isso era algo visível na fala de muitos – a gratidão, o respeito e até o temor em vista da grande operação feita para acolhê-los. Talvez a melhor imagem disso foi ver algumas crianças venezuelanas, refugiadas e indígenas, em uma festa cultural, cantarem com uma dicção invejável o hino nacional brasileiro, com todas as suas pomposas palavras. Uma imagem marcante com uma mensagem profunda. Em alguns momentos a gratidão até atrapalhava. Na hora de reclamar de uma injustiça ou de um serviço mal feito, muitos não se sentiam “dignos”, devido a condição em que estão. Também havia um certo desencorajamento, diante de reações como “tá ganhando e ainda tá reclamando?” ou o cansativo rótulo de “mal-agradecidos”. Realmente precisamos rever o conceito de direitos humanos, que é bem diferente do conceito de caridade assistencialista.
Ninguém é melhor do que todos nós juntos.
Há pelo menos 25 organizações diferentes em Boa Vista trabalhando em prol dos venezuelanos. Cada uma com seus protocolos, seu modus operandi, seus uniformes, suas regras, sua equipe. Originárias da Itália, Noruega, Estados Unidos, França, bem conhecidas como os Médicos Sem Fronteiras ou mais desconhecidas como a ADRA (agência humanitária adventista). Muita gente, muitos recursos e talvez muitas desculpas para trabalhar de forma isolada. Porém, não é o que acontece. Ao ver um objetivo em comum, como a comemoração do dia das crianças, as forças se unem. Por que fazer cada uma sua festa se podemos nos juntar e fazer uma grande festa juntos? Há um espírito visível de cooperação entre organizações, agências, militares e voluntários. Fica o exemplo de que não apenas é possível, mas extremamente necessário nos ombrearmos em prol de um bem maior.
Nós, protestantes, temos muito o que aprender com os católicos.
Um dos abrigos de Boa Vista foi construído ao lado de uma igreja católica. A reação da igreja? Quebrar o muro de separação entre os terrenos para que o abrigo fosse ampliado e coubessem mais barracas. Nossos irmãos católicos têm uma longa e sólida caminhada entre os refugiados e migrantes. Basta mencionar a pastoral do migrante ou a Cáritas e observar o respeito que alguns padres e freiras tem nesses ambientes “seculares”. Mesmo havendo grandes reservas quanto a manifestação de princípios religiosos, isso não impediu que um padre fosse convidado para um dos eventos como palestrante. O motivo? Seu trabalho já existia muito antes de a crise migratória virar notícia. Eles sempre estão e sempre estiveram entre os refugiados. Infelizmente não podemos dizer o mesmo de nós, protestantes. Poucas igrejas estão envolvidas nos comitês e grupos de ajuda humanitária. E para nossa vergonha, alguns grupos protestantes que tentam são impedidos de entrar nos abrigos, por insistirem em realizar cultos e fazer evangelismo com o objetivo de “encher suas igrejas”. O que será que ainda não entendemos? Precisamos pedir ajuda aos católicos.
Amizades podem surgir em lugares improváveis.
Geralmente procuramos amizades entre os iguais. O que dizer então de uma amizade entre alguém na faixa dos 30 e uma senhora de 70? Ou com uma garotinha de 4 anos? É possível. A senhora se tornou uma excelente parceira em passeios, cafés, trocas de receita, caronas para a igreja, dicas de viagem e compras. A garotinha? Uma excelente companhia nos cafés da manhã e fins de tarde. Uma visita ilustre que aparecia em nossa casa enquanto seus pais missionários descansavam do trabalho entre os indígenas. E nos despedimos trocando presentes e abraços, certas de que uma boa amizade pode surgir até mesmo nos lugares mais improváveis.
Nem sempre o que queremos dar é o que as pessoas precisam.
Um princípio básico e conhecido que precisa ser relembrado. É bom quando nos dispomos a distribuir roupas, sapatos, Bíblias e comida para pessoas que precisam. Mas o melhor mesmo seria perguntar antes de dar, conforme o próprio conselho bíblico de “dar segundo a necessidade da pessoa” (At 2.45) e não segundo nossa percepção subjetiva dessa necessidade. Podemos nos surpreender ao perguntar e, além disso, oferecemos mais do que nossa ajuda – oferecemos a pessoa a dignidade de escolher. “Uns óculos para minha filha”, “usar a internet”, “comer biscoito recheado”, “não quero nada para mim, mas tenho uma amiga que está precisando de ajuda”, são algumas das respostas que recebemos e que nos deram a oportunidade de fazer mais do que o óbvio ululante.
Um culto não acontece apenas quando há orações e liturgia.
Confesso que, sendo protestante, às vezes vinha o questionamento diante do fato de não poder fazer coisas “religiosas”. Nesse tempo não conduzi nenhum culto, ninguém aceitou Jesus e não fizemos nenhuma EBF, evangelismo ou vigília. Porém, numa tarde, fomos convidadas por uma família de um dos abrigos a participar da festa de uma criança de 9 anos. Uma festa singela, mas muito alegre, com música venezuelana e uma boa sinergia entre todos. Ao final, na hora de cantar parabéns, uma das senhoras puxa uma linda canção, uma bênção cantada para a aniversariante. E imediatamente todos começaram a cantar. E naquele momento solene eu entendi que, muitas vezes os cultos estão disfarçados de festas. E tem o mesmo efeito: revigoram, alegram, trazem comunhão, gratidão. Acho que por isso Jesus gostava tanto de festas.
É possível sorrir, mesmo em meio a situações difíceis.
Assim como a generosidade, o sorriso também não precisa estar restrito a determinadas situações. E para aqueles que, como eu, perdem facilmente a motivação de sorrir por causa de uma dor de cabeça, um dia ruim ou uma pessoa irritante, é constrangedor ver entre os refugiados pessoas com histórias devastadoras e ainda assim, sorridentes. Como o rapaz, executivo de vendas na Venezuela, que agora cuida de carros e dorme na rua para juntar dinheiro para mandar ao seu irmão portador de HIV em estado avançado. Ou a moça que deixou as duas filhas na Venezuela e veio sozinha tentar a sorte no Brasil. Histórias contadas com dor sim, mas também com um sorriso e a esperança de quem não desistiu de lutar.
Militares podem ser dóceis, religiosos podem ser rudes.
A figura de um militar, para qualquer brasileiro que conheça o mínimo sobre a ditadura, é uma figura séria, impositiva e até ameaçadora. Eles realmente mantêm a ordem dentro dos abrigos – mas o que vimos e testemunhamos foi que, além da força, também há doçura e humanidade por trás das fardas. Militares tirando selfies com crianças, perguntando do dever de casa, fazendo cócegas e emprestando o estetoscópio para elas ouvirem seu próprio coração. Montando redes de vôlei, tomadas, estruturas de cimento para cozinhar. Limpando, organizando, guardando bicicletas. Farda não define ninguém – o coração, sim.
Autoridade se conquista não se impõe.
Ainda sobre os militares, o que muitos não sabem é que dentro dos abrigos não há militares armados. Apenas em situações de emergência, um grupo armado entra se for solicitado. E como eles mantém a ordem em locais com 600 pessoas em situação de vulnerabilidade e stress? Certamente não da forma mais fácil, com armas de fogo e ameaças. Mas da forma mais consistente: conquistando um respeito que vai além da força física.
Não dá para desprezar o fator cultural.
Um dia tentamos fazer com as crianças uma brincadeira em círculo com cantigas de roda. Algumas tentaram nos acompanhar, mas não estava sendo tão proveitoso quanto pensávamos. Ao perceber isso, uma jovem que estava por perto entrou na roda e puxou a “conga” - o “atirei o pau no gato” das crianças venezuelanas. Foi um sucesso. O ambiente mudou rapidamente e confirmarmos o que já sabíamos: não dá para desprezar o poder que uma cultura tem de trazer senso de pertencimento.
O caos não impede a beleza.
Boa Vista é uma cidade que vive uma crise. Ainda assim, as praças são limpas, floridas e o Natal um dos mais iluminados que já vi. Nos abrigos há árvores de natal, pinturas nos muros e música de fundo. Enfeites feitos pelos próprios refugiados e até flores. Há caos? Obviamente. Mas também há beleza – porque uma coisa definitivamente não anula a outra.
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