Opinião
15 de dezembro de 2025- Visualizações: 43
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Cosmovisão e cultura
A relação da cosmovisão e o coração com os palcos da nossa atuação
Por Rodrigo Negreiros
No livro O drama da doutrina, Kevin Vanhoozer1 faz alusão a elementos do teatro e apontam que a prática cristã deve ser baseada no roteiro de Deus que nos foi entregue, a saber, as Sagradas Escrituras. Um dos elementos que podemos identificar no teatro é o palco e os seus cenários. Ainda numa referência ao drama, o cenário poderia ser comparado ao contexto das eras, o clima intelectual e religioso de uma época, o pano de fundo da nossa atuação. Obviamente que esses cenários são sustentados por uma base, as cosmovisões, responsáveis por ditar o tom da cultura, educação, ideologias, políticas etc. É sobre cosmovisão, a formação dos contextos de cada época e o cuidado com o coração que quero me ater nas próximas linhas.
Cosmovisão: conceito e sua relação com o coração
James W. Sire, em seu livro O universo ao lado2 afirma que cada cosmovisão pode ser identificada a partir de como ela busca responder as sete perguntas seguintes: Qual é a realidade primordial? Qual é a natureza da realidade externa? O que é o ser humano? O que acontece com a pessoa quando ela morre? Por que é possível saber alguma coisa? Como sabemos o que é certo ou errado? Qual o significado da história humana?
Talvez o leitor ainda pergunte, mas onde nascem as cosmovisões? Segundo David Naugle em seu livro Cosmovisão: A história de um conceito, “cosmovisão é uma função inescapável do coração humano e essencial para a identidade dos seres humanos como imago Dei”3.
A palavra cosmovisão, criada por Kant, é relativamente nova, mas a aplicação como uma visão sistemática sobre a fé já vem sendo trabalhada desde os pais da igreja, e dentro da igreja o conceito foi usado por homens como James Orr, Abraham Kuyper, Francis Schaeffer, Herman Dooyeweerd, entre outros.
Inicialmente, em James Orr, o conceito de cosmovisão é entendido como algo mais cognitivo, proposicional, com influências racionalistas. Basicamente, ele acreditava que a cosmovisão surgia das disposições inatas do ser humano em buscar respostas para o todo da realidade. O entendimento do Orr reduziu o conceito a lentes hermenêuticas e um exercício cognitivo, mental, mas o homem é constituído pelo que pensa, sente, faz e deseja.
Com o passar do tempo Abraham Kuyper identificou o coração como sendo o centro de onde partem as cosmovisões. Segundo o seu entendimento, só haveria dois direcionamentos que o coração poderia ter: ou para Deus ou para algum ídolo, produzindo impulsos para o que pensamos, fazemos e sentimos. Dooyeweerd refina o entendimento do Kuyper sob um aspecto essencialmente religioso de todas as coisas, inclusive do próprio coração. Ele chega ao entendimento que nem o coração do homem e nem sua produção são neutras, todos os homens são dotados de compromissos religiosos em seu coração, ou seja, não se trata de se cremos ou adoramos, mas no que cremos e adoramos.
É importante ressaltar pelo menos mais dois pontos aqui:
1. O caráter pré-teórico das cosmovisões – ou seja, elas existem antes mesmo das construções acadêmicas – acontece intuitivamente na interpretação da realidade por todos os seres humanos. Portanto, todos temos cosmovisão;
2. O coração, apontado aqui, não se refere ao músculo que bombeia o sangue, biologicamente falando, mas uma espécie de centro de controle emotivo, volitivo e afetivo do indivíduo – quem nós somos em essência.
Esse entendimento acerca do coração como o ponto arquimediano está completamente de acordo com a Bíblia e embasado em passagens como Mateus 15.19-20; Provérbios 4.23; Jeremias 17.9, entre outras.
A dupla relação entre cosmovisão e zeitgest a partir do coração
Como descoberto por Dooyeweerd, nosso coração é sempre enviesado. O homem criado por Deus, que inicialmente tinha o seu coração naturalmente inclinado a Deus, após a queda se voltou à desobediência, toda a sua produção e os eventos formativos das próprias cosmovisões (educação, costumes, leis, mídia…) também passaram a sofrer as consequências. A partir daí, o homem passou a tornar como um absoluto alguma parte da criação na busca por respostas e contentamento.
Naugle cita Calvino ao mencionar como o homem cria um sistema de crenças alternativo a Deus e a partir daí concebe toda a realidade. Calvino usa o exemplo naturalismo e panteísmo para isso:
“Para Calvino, portanto, o naturalismo e o panteísmo são apenas dois exemplos entre muitos que demonstram como o coração é propenso a substituir Deus por sistemas de crença e perspectivas religiosas alternativas. Quer substituindo Deus pela natureza, quer tentando identificá-lo com ela, naturalistas e panteístas respectivamente fazem da criação um ídolo de uma maneira totalmente não religiosa ou religiosa. Em qualquer dos casos, o coração idólatra concebe o Universo diferentemente em termos intelectuais e espirituais. Ao gerar essas novas cosmovisões, o coração dos incrédulos encontra, em sua injustiça, uma forma de desviar da verdade sobre Deus e sua criação.”4
As cosmovisões majoritárias têm domínio sobre importantes setores da sociedade e ditam as normas do debate, a agenda das discussões, as questões sociais mais relevantes e assim por diante. É ao redor dos absolutos como os mencionados acima e a partir das cosmovisões que se forma nas sociedades o clima espiritual e religioso de cada época, alterando hábitos e culturas.
Mas, embora as cosmovisões sejam a base do zeitgeist, como inclusive Naugle cita em seu livro5, eu vou além e entendo que isso é parte da verdade apenas, pois, a relação entre os dois é de mão dupla: Ora o espírito da época recebe influências da cosmovisão por meio do direcionamento do coração do indivíduo, ora a cosmovisão recebe as influências do zeitgeist. Essa influência desce para o coração no qual pode ser internalizado ou rejeitado. Se internalizado tende a ser projetado na cosmovisão, solidificando, reformando ou promovendo mudança completa no sistema de crenças do indivíduo. Então, o processo se repete num ciclo que pode ser vicioso ou virtuoso, a depender do que o coração está emitindo ou recebendo. Consequentemente, a cultura e a mentalidade intelectual da época podem mudar. Claro que esse processo dinâmico entre zeitgeist e cosmovisão não acontece de um dia para o outro, mas o fato é que essa relação entre o pano de fundo das eras e o nosso sistema de crença têm o coração como elemento primordial que recebe influências desde que nascemos com as cosmovisões já existentes, e emite influências à medida que nossas vivências e compromissos últimos moldam a forma como a gente faz tudo na realidade.
Percebemos a importância do coração e a necessidade de análise frequente, a partir do que David Naugle diz em sua obra Cosmovisão: a história de um conceito:
“O controle do “espírito da época” (zeitgeist), ou clima intelectual e espiritual da época, é um dos mais eficazes meios de controlar o que entra no coração dos homens e das mulheres, moldando seus interesses e governando sua vida.”6
Atuando em palcos em constantes mudanças
E nós cristãos obviamente estamos inseridos nessas dinâmicas envolvendo o coração, estamos suscetíveis às mesmas influências, por isso o livro de provérbios nos exorta: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4:23).
Segundo Pedro Dulci7, muitas vezes as pessoas querem discutir umas com as outras em termos filosóficos, científicos, em evidências, quando na verdade o âmbito mais profundo do ser humano – onde as cosmovisões são alteradas profundamente – é o coração.
Voltamos à metáfora do Vanhoozer em O drama da doutrina e a necessidade que a igreja tem de identificar os cenários em que estamos inseridos, apresentando respostas à plateia a partir da cosmovisão cristã, e até improvisando se preciso for – usando, claro, o roteiro bíblico.
Infelizmente ao invés de contribuirmos com a mudança do cenário por meio da pregação do evangelho e da continuidade do drama, em muitos momentos permitimos ser influenciados pela cultura, os hábitos, a moral deturpada, e as ideologias de nossos tempos. Sabemos o que a Bíblia fala acerca das questões espirituais, mas no debate junto à sociedade, nos assuntos que afetam todos fora da igreja, sucumbimos aos formadores de opinião que se apresentam na mídia, passamos a lutar com armas humanas e nos digladiamos, reproduzimos narrativas alternativas que apontam para um falso criador. O problema último da humanidade e a libertação passam a ser encontrados na imanência, na matéria, nas utopias.
Não é difícil encontrar cristãos que entendem que o maior problema da sociedade está na luta de classes e não no pecado, por exemplo. Muitos assumem isso pela forma como pensam, agem e falam inconscientemente – ainda que, se questionados, eles porventura neguem ao lembrarem por um momento o que dizem as Sagradas Escrituras. Cada vez que nos deixamos influenciar pelo espírito da época e fazemos sínteses da cosmovisão cristã com sistemas de crenças alternativos, esvaziamos a mensagem da cruz, além de oferecermos um ídolo ao coração dos homens.
Segundo Dulci, quando a igreja se casa com o espírito da sua época, na época seguinte ela se torna viúva, pois o espírito da época sempre muda.
Portanto é preciso, primeiramente, olhar para nós enquanto atores do teatro de Deus, pedindo a Ele que sonde e traga à tona os propósitos do nosso coração, pois a conversão é um processo que deve acontecer todo o dia e é preciso nos certificar constantemente se os nossos pressupostos permanecem alicerçados na doutrina cristã. Tendo o nosso coração alinhado, vamos para a rua! Realizar um trabalho evangelístico, para que Deus opere em outros corações, tanto convencendo-os do pecado da idolatria a deuses falsos quanto redirecionando-os para Ele. Ao mesmo tempo em que improvisamos no dia a dia sob novos contextos, porém sempre nos atendo ao roteiro.
Vanhoozer8 afirma que considerações de contexto e cultura fazem parte do próprio cânon, pois conectar a cultura com o evangelho é uma prática canônica. Porém, ele também chama a atenção para a preservação da integridade do evangelho, possibilitando que ele seja sim atraente, mas continue sendo o mesmo. A doutrina cristã deve formar a base sólida de nossas cosmovisões para que não nos deixemos levar em sínteses por aí.
Hebreus 4.12 nos mostra que é a Palavra de Deus que é apta para chegar no mais profundo do coração humano, capaz de esquadrinhar as cosmovisões sustentadas e que contradizem a Sua Palavra.
Uma vez que nós mesmos já temos o coração regenerado e tendo apresentado fielmente a razão de nossa fé aos outros, e havendo Deus também lhes restaurado o coração, direcionando-o novamente para ele, podemos e devemos apresentar evidências, mostrar as pressuposições, as narrativas e como a realidade se explica e se organiza.
Conclusão
O conceito de cosmovisão sofreu muitas mudanças desde sua criação, tanto dentro como fora da igreja. Nesse contexto especificamente, ele foi reformado, se livrando de influências racionalistas. Ao longo do tempo, cosmovisão permaneceu na cabeça, mas além da cabeça desceu para o coração – a raiz mais profunda do homem, o centro das afeições, emoções e volições. De teórico, assumiu um caráter pré-teórico e religioso, no qual tende sempre a algum absoluto para explicação da realidade. Absolutos diversos nos quais dão forma a todas as cosmovisões, e claro, contribuem na formação do palco onde atuamos. Mas também chegamos à conclusão de que as cosmovisões recebem influências da cultura, educação, hábitos, e pensamento de determinado momento da história, isso desde que nascemos, na nossa própria casa, na escola, por meio da TV e de tudo o que consumimos ao longo do nosso desenvolvimento.
Como cristãos, a base para o nosso sistema de crenças são as doutrinas cristãs. É preciso encenar o drama colocando nossa pequena narrativa na grande narrativa de Deus, vivermos uma vida prática em decorrência do que aconteceu dos nossos compromissos religiosos. Dessa forma, cosmovisão, assim como a doutrina, aponta para a prática que preserva a integridade do roteiro, atuando em novas situações de maneira criativa, porém sem permitir sínteses em seu sistema de crenças no afã de apresentá-lo de maneira mais atrativa. Ou até mesmo sem cair na tentação inconsciente de vivermos um dualismo e um conflito interno de cosmovisões. Dualismo esse que já seria em si oriundo de uma síntese de cosmovisões.
Somente assim conseguiremos trazer respostas coerentes e coesas às perguntas genuínas que as pessoas têm.
Para ouvir mais sobre essa temática, recomendamos o episódio nº 153 do Vitral Podcast “O que é Cosmovisão”, com o teólogo Eduardo Nunes. Acesse aqui.
Notas
1. VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.
2. SIRE, James W. O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. 5. ed. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2018.
3. NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2017.
NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2017. 535 p.
(2017, p. 16)
4. Idem, p. 354.
5. Idem, p. 347.
6. Idem, p. 347.
7. DULCI, Pedro. Aulas Invisible College. Módulo 2. Goiânia, 2020.
8. VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 145.
Imagem: Unsplash.
REVISTA ULTIMATO - A IGREJA EM MISSÃO
Ultimato celebra a igreja em missão, a missão da igreja e o movimento missionário brasileiro, cuja história é quase tão longeva quanto a do Brasil.
Ao longo de mais de 10 páginas, o leitor vai encontrar parte das palestras do 10ª edição do Congresso Brasileiro de Missões (CBM 2025), que aconteceu em outubro, em Águas de Lindóia, SP, e lerá, no "Especial", um painel com uma avaliação ampla e crítica do movimento missionário brasileiro.
É disso que trata a edição 416 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» O Cristão e a Arte em um Mundo em Desencanto, Rodolfo Amorim
» A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer
» Fé Cristã e Cultura Contemporânea – Cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral, Leonardo Ramos, Marcel Camargo e Rodolfo Amorim (org.)
» Como ser evangélico sem deixar de ser brasileiro, por Gerson Borges
Por Rodrigo Negreiros
No livro O drama da doutrina, Kevin Vanhoozer1 faz alusão a elementos do teatro e apontam que a prática cristã deve ser baseada no roteiro de Deus que nos foi entregue, a saber, as Sagradas Escrituras. Um dos elementos que podemos identificar no teatro é o palco e os seus cenários. Ainda numa referência ao drama, o cenário poderia ser comparado ao contexto das eras, o clima intelectual e religioso de uma época, o pano de fundo da nossa atuação. Obviamente que esses cenários são sustentados por uma base, as cosmovisões, responsáveis por ditar o tom da cultura, educação, ideologias, políticas etc. É sobre cosmovisão, a formação dos contextos de cada época e o cuidado com o coração que quero me ater nas próximas linhas.Cosmovisão: conceito e sua relação com o coração
James W. Sire, em seu livro O universo ao lado2 afirma que cada cosmovisão pode ser identificada a partir de como ela busca responder as sete perguntas seguintes: Qual é a realidade primordial? Qual é a natureza da realidade externa? O que é o ser humano? O que acontece com a pessoa quando ela morre? Por que é possível saber alguma coisa? Como sabemos o que é certo ou errado? Qual o significado da história humana?
Talvez o leitor ainda pergunte, mas onde nascem as cosmovisões? Segundo David Naugle em seu livro Cosmovisão: A história de um conceito, “cosmovisão é uma função inescapável do coração humano e essencial para a identidade dos seres humanos como imago Dei”3.
A palavra cosmovisão, criada por Kant, é relativamente nova, mas a aplicação como uma visão sistemática sobre a fé já vem sendo trabalhada desde os pais da igreja, e dentro da igreja o conceito foi usado por homens como James Orr, Abraham Kuyper, Francis Schaeffer, Herman Dooyeweerd, entre outros.
Inicialmente, em James Orr, o conceito de cosmovisão é entendido como algo mais cognitivo, proposicional, com influências racionalistas. Basicamente, ele acreditava que a cosmovisão surgia das disposições inatas do ser humano em buscar respostas para o todo da realidade. O entendimento do Orr reduziu o conceito a lentes hermenêuticas e um exercício cognitivo, mental, mas o homem é constituído pelo que pensa, sente, faz e deseja.
Com o passar do tempo Abraham Kuyper identificou o coração como sendo o centro de onde partem as cosmovisões. Segundo o seu entendimento, só haveria dois direcionamentos que o coração poderia ter: ou para Deus ou para algum ídolo, produzindo impulsos para o que pensamos, fazemos e sentimos. Dooyeweerd refina o entendimento do Kuyper sob um aspecto essencialmente religioso de todas as coisas, inclusive do próprio coração. Ele chega ao entendimento que nem o coração do homem e nem sua produção são neutras, todos os homens são dotados de compromissos religiosos em seu coração, ou seja, não se trata de se cremos ou adoramos, mas no que cremos e adoramos.
É importante ressaltar pelo menos mais dois pontos aqui:
1. O caráter pré-teórico das cosmovisões – ou seja, elas existem antes mesmo das construções acadêmicas – acontece intuitivamente na interpretação da realidade por todos os seres humanos. Portanto, todos temos cosmovisão;
2. O coração, apontado aqui, não se refere ao músculo que bombeia o sangue, biologicamente falando, mas uma espécie de centro de controle emotivo, volitivo e afetivo do indivíduo – quem nós somos em essência.
Esse entendimento acerca do coração como o ponto arquimediano está completamente de acordo com a Bíblia e embasado em passagens como Mateus 15.19-20; Provérbios 4.23; Jeremias 17.9, entre outras.
A dupla relação entre cosmovisão e zeitgest a partir do coração
Como descoberto por Dooyeweerd, nosso coração é sempre enviesado. O homem criado por Deus, que inicialmente tinha o seu coração naturalmente inclinado a Deus, após a queda se voltou à desobediência, toda a sua produção e os eventos formativos das próprias cosmovisões (educação, costumes, leis, mídia…) também passaram a sofrer as consequências. A partir daí, o homem passou a tornar como um absoluto alguma parte da criação na busca por respostas e contentamento.
Naugle cita Calvino ao mencionar como o homem cria um sistema de crenças alternativo a Deus e a partir daí concebe toda a realidade. Calvino usa o exemplo naturalismo e panteísmo para isso:
“Para Calvino, portanto, o naturalismo e o panteísmo são apenas dois exemplos entre muitos que demonstram como o coração é propenso a substituir Deus por sistemas de crença e perspectivas religiosas alternativas. Quer substituindo Deus pela natureza, quer tentando identificá-lo com ela, naturalistas e panteístas respectivamente fazem da criação um ídolo de uma maneira totalmente não religiosa ou religiosa. Em qualquer dos casos, o coração idólatra concebe o Universo diferentemente em termos intelectuais e espirituais. Ao gerar essas novas cosmovisões, o coração dos incrédulos encontra, em sua injustiça, uma forma de desviar da verdade sobre Deus e sua criação.”4
As cosmovisões majoritárias têm domínio sobre importantes setores da sociedade e ditam as normas do debate, a agenda das discussões, as questões sociais mais relevantes e assim por diante. É ao redor dos absolutos como os mencionados acima e a partir das cosmovisões que se forma nas sociedades o clima espiritual e religioso de cada época, alterando hábitos e culturas.
Mas, embora as cosmovisões sejam a base do zeitgeist, como inclusive Naugle cita em seu livro5, eu vou além e entendo que isso é parte da verdade apenas, pois, a relação entre os dois é de mão dupla: Ora o espírito da época recebe influências da cosmovisão por meio do direcionamento do coração do indivíduo, ora a cosmovisão recebe as influências do zeitgeist. Essa influência desce para o coração no qual pode ser internalizado ou rejeitado. Se internalizado tende a ser projetado na cosmovisão, solidificando, reformando ou promovendo mudança completa no sistema de crenças do indivíduo. Então, o processo se repete num ciclo que pode ser vicioso ou virtuoso, a depender do que o coração está emitindo ou recebendo. Consequentemente, a cultura e a mentalidade intelectual da época podem mudar. Claro que esse processo dinâmico entre zeitgeist e cosmovisão não acontece de um dia para o outro, mas o fato é que essa relação entre o pano de fundo das eras e o nosso sistema de crença têm o coração como elemento primordial que recebe influências desde que nascemos com as cosmovisões já existentes, e emite influências à medida que nossas vivências e compromissos últimos moldam a forma como a gente faz tudo na realidade.
Percebemos a importância do coração e a necessidade de análise frequente, a partir do que David Naugle diz em sua obra Cosmovisão: a história de um conceito:
“O controle do “espírito da época” (zeitgeist), ou clima intelectual e espiritual da época, é um dos mais eficazes meios de controlar o que entra no coração dos homens e das mulheres, moldando seus interesses e governando sua vida.”6
Atuando em palcos em constantes mudanças
E nós cristãos obviamente estamos inseridos nessas dinâmicas envolvendo o coração, estamos suscetíveis às mesmas influências, por isso o livro de provérbios nos exorta: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4:23).
Segundo Pedro Dulci7, muitas vezes as pessoas querem discutir umas com as outras em termos filosóficos, científicos, em evidências, quando na verdade o âmbito mais profundo do ser humano – onde as cosmovisões são alteradas profundamente – é o coração.
Voltamos à metáfora do Vanhoozer em O drama da doutrina e a necessidade que a igreja tem de identificar os cenários em que estamos inseridos, apresentando respostas à plateia a partir da cosmovisão cristã, e até improvisando se preciso for – usando, claro, o roteiro bíblico.
Infelizmente ao invés de contribuirmos com a mudança do cenário por meio da pregação do evangelho e da continuidade do drama, em muitos momentos permitimos ser influenciados pela cultura, os hábitos, a moral deturpada, e as ideologias de nossos tempos. Sabemos o que a Bíblia fala acerca das questões espirituais, mas no debate junto à sociedade, nos assuntos que afetam todos fora da igreja, sucumbimos aos formadores de opinião que se apresentam na mídia, passamos a lutar com armas humanas e nos digladiamos, reproduzimos narrativas alternativas que apontam para um falso criador. O problema último da humanidade e a libertação passam a ser encontrados na imanência, na matéria, nas utopias.
Não é difícil encontrar cristãos que entendem que o maior problema da sociedade está na luta de classes e não no pecado, por exemplo. Muitos assumem isso pela forma como pensam, agem e falam inconscientemente – ainda que, se questionados, eles porventura neguem ao lembrarem por um momento o que dizem as Sagradas Escrituras. Cada vez que nos deixamos influenciar pelo espírito da época e fazemos sínteses da cosmovisão cristã com sistemas de crenças alternativos, esvaziamos a mensagem da cruz, além de oferecermos um ídolo ao coração dos homens.
Segundo Dulci, quando a igreja se casa com o espírito da sua época, na época seguinte ela se torna viúva, pois o espírito da época sempre muda.
Portanto é preciso, primeiramente, olhar para nós enquanto atores do teatro de Deus, pedindo a Ele que sonde e traga à tona os propósitos do nosso coração, pois a conversão é um processo que deve acontecer todo o dia e é preciso nos certificar constantemente se os nossos pressupostos permanecem alicerçados na doutrina cristã. Tendo o nosso coração alinhado, vamos para a rua! Realizar um trabalho evangelístico, para que Deus opere em outros corações, tanto convencendo-os do pecado da idolatria a deuses falsos quanto redirecionando-os para Ele. Ao mesmo tempo em que improvisamos no dia a dia sob novos contextos, porém sempre nos atendo ao roteiro.
Vanhoozer8 afirma que considerações de contexto e cultura fazem parte do próprio cânon, pois conectar a cultura com o evangelho é uma prática canônica. Porém, ele também chama a atenção para a preservação da integridade do evangelho, possibilitando que ele seja sim atraente, mas continue sendo o mesmo. A doutrina cristã deve formar a base sólida de nossas cosmovisões para que não nos deixemos levar em sínteses por aí.
Hebreus 4.12 nos mostra que é a Palavra de Deus que é apta para chegar no mais profundo do coração humano, capaz de esquadrinhar as cosmovisões sustentadas e que contradizem a Sua Palavra.
Uma vez que nós mesmos já temos o coração regenerado e tendo apresentado fielmente a razão de nossa fé aos outros, e havendo Deus também lhes restaurado o coração, direcionando-o novamente para ele, podemos e devemos apresentar evidências, mostrar as pressuposições, as narrativas e como a realidade se explica e se organiza.
Conclusão
O conceito de cosmovisão sofreu muitas mudanças desde sua criação, tanto dentro como fora da igreja. Nesse contexto especificamente, ele foi reformado, se livrando de influências racionalistas. Ao longo do tempo, cosmovisão permaneceu na cabeça, mas além da cabeça desceu para o coração – a raiz mais profunda do homem, o centro das afeições, emoções e volições. De teórico, assumiu um caráter pré-teórico e religioso, no qual tende sempre a algum absoluto para explicação da realidade. Absolutos diversos nos quais dão forma a todas as cosmovisões, e claro, contribuem na formação do palco onde atuamos. Mas também chegamos à conclusão de que as cosmovisões recebem influências da cultura, educação, hábitos, e pensamento de determinado momento da história, isso desde que nascemos, na nossa própria casa, na escola, por meio da TV e de tudo o que consumimos ao longo do nosso desenvolvimento.
Como cristãos, a base para o nosso sistema de crenças são as doutrinas cristãs. É preciso encenar o drama colocando nossa pequena narrativa na grande narrativa de Deus, vivermos uma vida prática em decorrência do que aconteceu dos nossos compromissos religiosos. Dessa forma, cosmovisão, assim como a doutrina, aponta para a prática que preserva a integridade do roteiro, atuando em novas situações de maneira criativa, porém sem permitir sínteses em seu sistema de crenças no afã de apresentá-lo de maneira mais atrativa. Ou até mesmo sem cair na tentação inconsciente de vivermos um dualismo e um conflito interno de cosmovisões. Dualismo esse que já seria em si oriundo de uma síntese de cosmovisões.
Somente assim conseguiremos trazer respostas coerentes e coesas às perguntas genuínas que as pessoas têm.
- Rodrigo Negreiros, colaborador do Vitral Podcast.
Para ouvir mais sobre essa temática, recomendamos o episódio nº 153 do Vitral Podcast “O que é Cosmovisão”, com o teólogo Eduardo Nunes. Acesse aqui.
Notas
1. VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016.
2. SIRE, James W. O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisão. 5. ed. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2018.
3. NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2017.
NAUGLE, David K. Cosmovisão: a história de um conceito. Trad. Marcelo Herberts. Brasília: Monergismo, 2017. 535 p.
(2017, p. 16)
4. Idem, p. 354.
5. Idem, p. 347.
6. Idem, p. 347.
7. DULCI, Pedro. Aulas Invisible College. Módulo 2. Goiânia, 2020.
8. VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística. Trad. Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 145.
Imagem: Unsplash.
REVISTA ULTIMATO - A IGREJA EM MISSÃOUltimato celebra a igreja em missão, a missão da igreja e o movimento missionário brasileiro, cuja história é quase tão longeva quanto a do Brasil.
Ao longo de mais de 10 páginas, o leitor vai encontrar parte das palestras do 10ª edição do Congresso Brasileiro de Missões (CBM 2025), que aconteceu em outubro, em Águas de Lindóia, SP, e lerá, no "Especial", um painel com uma avaliação ampla e crítica do movimento missionário brasileiro.
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Saiba mais:
» O Cristão e a Arte em um Mundo em Desencanto, Rodolfo Amorim
» A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer
» Fé Cristã e Cultura Contemporânea – Cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral, Leonardo Ramos, Marcel Camargo e Rodolfo Amorim (org.)
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