Palavra do leitor
09 de setembro de 2011- Visualizações: 2936
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Não entendo o que faço
Estou lendo o livro do Universo à Jabuticaba, de Rubem Alves (Editora Planeta do Brasil, 2010), adquirido recentemente por indicação de um amigo. Trata-se de uma coleção de pequenos escritos, pensamentos do autor sobre temas como música, vida, infância, velhice, morte, natureza, memórias, etc. Mesmo sendo uma leitura leve e agradável, o texto é profundo e reflexivo. Por diversas vezes precisei fechá-lo para refletir sobre o que acabara de ler. A seguir reproduzo e comento um desses trechos:
PENSÃO
Os apaixonados não sabem que cada casa de paredes brancas e janelas azuis é uma pensão. Pensões frequentemente se anunciam como “familiares”, lugares de respeito. O dono até pode rejeitar um possível hóspede. Com o corpo não é assim. Os hóspedes já estão lá, todos com a mesma cara, mas cada um de um jeito: um professor sério, uma criança que brinca, um avô carinhoso, um sedutor de fala mansa, um pecador arrependido, um poeta deprimido, um sargento autoritário, uma criança birrenta, um órfão abandonado, um sabe-tudo que só fala e não escuta, um debochado, um torturador que sabe onde dói mais, um assassino que só não mata por medo, um ser monstruoso, mistura de bruxa e demônio. Todos nos seus quartos. Normalmente não aparecem. Esse rol de hóspedes – eles não se encontram todos na pensão. Apenas alguns – o que é suficiente.
O dono da pensão – que se chama “eu” – se esforça por mantê-los quietos. Alguns, ele gosta que apareçam. São seres civilizados. Confirmam o caráter “familiar” da pensão. Outros, quando aparecem, é como se o inferno acontecesse. Trancam o dono da pensão num quarto, e estabelecem o horror-terror. É a gritaria, as ofensas, os palavrões, a ironia cortante, as agressões, a violência.
Os demônios têm um conhecimento preciso dos lugares a serem tocados. A pensão – paredes brancas e janelas azuis – se transforma num lugar infernal. (É nesses momentos que acontecem as tragédias. Crimes. Vem o julgamento. Mas aquele que é julgado, odiado e executado não é o criminoso. É o dono da pensão, pessoa pacífica e de bons sentimentos. O criminoso está dormindo, numa cela, no porão da pensão…).
Passada a orgia infernal, os demônios exauridos e satisfeitos retornam às suas celas, deixando os destroços para serem arrumados pelo dono da pensão. É o momento da tristeza e da vergonha. Como explicar que aquela pensão de paredes brancas e janelas azuis, anunciada como lugar sagrado – à porta, “Lar, doce lar”; no hall de entrada uma Bíblia aberta – de repente se transforme num lugar infernal?1
Todos carregamos dentro de nós duas tendências opostas. Uma delas é para o bem, a outra é para o mal. Ambas estão constantemente lutando pelas rédeas do “eu”. O apóstolo Paulo testemunhou acerca desta incômoda bivalência: “Quando quero fazer o bem, o mal está junto a mim”. Ele continua: “Vejo o melhor e aprovo, contudo faço o que é pior; esforço-me por conseguir o que é proibido, e desejo as coisas que me são negadas”.É o pecado residente, um legado maldito proveniente da queda.
Leonardo Boff explica que o homem interior “é o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, nossa marca registrada, nossa identidade mais radical, [que] se esconde atrás de muitas máscaras”. O teólogo e ex-franciscano sugere que abandonemos o palco, tiremos as máscaras e nos perguntemos: “Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que anjos me habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio do mistério? À medida que tentamos,com temor e tremor, responder a essas indagações, vem a lume o homem interior”.2
Há um médico e um monstro3 dentro de cada um de nós, quase todos admitem isso. Entre estes está o indígena convertido que procurou o missionário para dizer-lhe, em sua linguagem primitiva, que dentro do seu coração havia dois cães em conflito, um muito feio, e o outro, muito bonito. Quando o pastor lhe perguntou qual dos dois ganhava a batalha, o novo convertido respondeu com notável sabedoria: “É aquele que eu alimento mais e melhor”4.
REFERÊNCIAS
1. Alves, Rubem. Do universo à jabuticaba, 1.ª Edição, São Paulo, SP: Editora Planeta do Brasil, 2010, p. 31.
2. Boff, L.H. (2008). Oficialmente velho, www.adital.com.br, acessado em 16 de agosto de 2011.
3. Romance do escocês Robert Louis Stevenson, intitulado originalmente O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mais conhecido como O Médico e o Monstro, publicado em 1886 e logo transformado em peça de teatro. O médico, uma pessoa decente, e o monstro, um maníaco sexual, habitam numa mesma pessoa, que não sabe se é o Dr. Jekyll ou o monstruoso Hyde.
4. César, Elben M. Lenz. Por que (sempre) faço o que não quero? , 1.ª Edição, Viçosa, MG : Ultimato, 2011, p.18.
PENSÃO
Os apaixonados não sabem que cada casa de paredes brancas e janelas azuis é uma pensão. Pensões frequentemente se anunciam como “familiares”, lugares de respeito. O dono até pode rejeitar um possível hóspede. Com o corpo não é assim. Os hóspedes já estão lá, todos com a mesma cara, mas cada um de um jeito: um professor sério, uma criança que brinca, um avô carinhoso, um sedutor de fala mansa, um pecador arrependido, um poeta deprimido, um sargento autoritário, uma criança birrenta, um órfão abandonado, um sabe-tudo que só fala e não escuta, um debochado, um torturador que sabe onde dói mais, um assassino que só não mata por medo, um ser monstruoso, mistura de bruxa e demônio. Todos nos seus quartos. Normalmente não aparecem. Esse rol de hóspedes – eles não se encontram todos na pensão. Apenas alguns – o que é suficiente.
O dono da pensão – que se chama “eu” – se esforça por mantê-los quietos. Alguns, ele gosta que apareçam. São seres civilizados. Confirmam o caráter “familiar” da pensão. Outros, quando aparecem, é como se o inferno acontecesse. Trancam o dono da pensão num quarto, e estabelecem o horror-terror. É a gritaria, as ofensas, os palavrões, a ironia cortante, as agressões, a violência.
Os demônios têm um conhecimento preciso dos lugares a serem tocados. A pensão – paredes brancas e janelas azuis – se transforma num lugar infernal. (É nesses momentos que acontecem as tragédias. Crimes. Vem o julgamento. Mas aquele que é julgado, odiado e executado não é o criminoso. É o dono da pensão, pessoa pacífica e de bons sentimentos. O criminoso está dormindo, numa cela, no porão da pensão…).
Passada a orgia infernal, os demônios exauridos e satisfeitos retornam às suas celas, deixando os destroços para serem arrumados pelo dono da pensão. É o momento da tristeza e da vergonha. Como explicar que aquela pensão de paredes brancas e janelas azuis, anunciada como lugar sagrado – à porta, “Lar, doce lar”; no hall de entrada uma Bíblia aberta – de repente se transforme num lugar infernal?1
Todos carregamos dentro de nós duas tendências opostas. Uma delas é para o bem, a outra é para o mal. Ambas estão constantemente lutando pelas rédeas do “eu”. O apóstolo Paulo testemunhou acerca desta incômoda bivalência: “Quando quero fazer o bem, o mal está junto a mim”. Ele continua: “Vejo o melhor e aprovo, contudo faço o que é pior; esforço-me por conseguir o que é proibido, e desejo as coisas que me são negadas”.É o pecado residente, um legado maldito proveniente da queda.
Leonardo Boff explica que o homem interior “é o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, nossa marca registrada, nossa identidade mais radical, [que] se esconde atrás de muitas máscaras”. O teólogo e ex-franciscano sugere que abandonemos o palco, tiremos as máscaras e nos perguntemos: “Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que anjos me habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio do mistério? À medida que tentamos,com temor e tremor, responder a essas indagações, vem a lume o homem interior”.2
Há um médico e um monstro3 dentro de cada um de nós, quase todos admitem isso. Entre estes está o indígena convertido que procurou o missionário para dizer-lhe, em sua linguagem primitiva, que dentro do seu coração havia dois cães em conflito, um muito feio, e o outro, muito bonito. Quando o pastor lhe perguntou qual dos dois ganhava a batalha, o novo convertido respondeu com notável sabedoria: “É aquele que eu alimento mais e melhor”4.
REFERÊNCIAS
1. Alves, Rubem. Do universo à jabuticaba, 1.ª Edição, São Paulo, SP: Editora Planeta do Brasil, 2010, p. 31.
2. Boff, L.H. (2008). Oficialmente velho, www.adital.com.br, acessado em 16 de agosto de 2011.
3. Romance do escocês Robert Louis Stevenson, intitulado originalmente O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mais conhecido como O Médico e o Monstro, publicado em 1886 e logo transformado em peça de teatro. O médico, uma pessoa decente, e o monstro, um maníaco sexual, habitam numa mesma pessoa, que não sabe se é o Dr. Jekyll ou o monstruoso Hyde.
4. César, Elben M. Lenz. Por que (sempre) faço o que não quero? , 1.ª Edição, Viçosa, MG : Ultimato, 2011, p.18.
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