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Palavra do leitor

Duas, dentre tantas Senhoras - Relato de uma visita.

Semana passada revisitei duas conhecidas senhoras – dona Calvínia e dona Armínia. Conhecidas de muitos há muito tempo, mas hoje, amigas de poucos. Seletivas, agora, como toda senhora de suas opiniões das quais se orgulha e não arreda pé.
Cheguei ao amplo casarão onde, antes, as grandes amigas recebiam felizes tantos quantos precisassem de uma boa amizade. Ainda moram juntas, aliás, para quem não as conhece, Calvínia e Armínia são irmãs. Soube que não mais se conversavam. Ainda assim, tive saudade daquele ambiente que, no passado, era arejado, iluminado e sempre muito bem frequentado; e saudade mesmo das conversas felizes, daquele relacionamento que, diante dos grandes mistérios da vida, só os corações voluntariosos permitem revelar.
Ao chegar, percebi que até mesmo o meu anúncio seria pelo velho batedor de bronze. Nada mudara. Até mesmo o ar dentro do casarão parecia faltar. Um misto de tradição e falta de interesse pelo que se passa além dos vitrais trincados das janelas.
Não tive escolha, a conversa aconteceu com cada uma individualmente. Apesar do amplo espaço comum, Calvínia e Armínia limitavam-se a morar cada uma em um quartinho, bem pequeno mesmo. Não é necessário dizer que, com os anos, elas achavam o espaço do quartinho muito abrangente. Lá com meus botões, passei a chamar os quartinhos de "caixinhas".
Já com dona Calvínia, ela determinou um dos únicos cinco pontos para eu sentar, e iniciei uma conversa que, ao menos, pudesse lembrar aquele leve relacionamento do passado.
Apenas uns poucos minutos para perceber que dona Calvínia mantinha firme a certeza da depravação total em que se encontram todos os homens, cujo pecado não é apenas um hábito ou uma mera doença, como afirmara o seu vizinho de rua, o seu Pelágio, com quem, aliás, cortou relações também. Lembrei a ela que em outra visita ao seu Agostinho e Martinho, seus vizinhos, ambos pareciam concordar com ela, o que a fez mover rapidamente o canto esquerdo dos lábios num curto e convicto sorriso.
Nada, nenhuma obra de justiça. João, o seu mentor, antigo morador da viela Dort, havia ensinado sobre a natureza humana, vazia e indigente de bem – um cânone inamovível.
Eleição incondicional. Cresse eu ou não, não importava, ninguém poderia frustrar isto. Não cresse eu nisto, disse-me olhando-me fixamente para depois voltar ao vazio, seria eu mesmo um reprovado.
Nossa conversa fora interrompida pelo Sr. Dogma, o mordomo, que me recebera e o único que transitava livremente entre os dois quartinhos das donas Calvínia e Armínia. Trazia um chá de Alma-Cega, uma resina do lentisco, da Ilha de Quio. Enquanto bebia, aproveitei para reparar nos detalhes do quartinho minúsculo e antiquado, ainda que dona Calvínia insistisse que era reformado.
Notando o meu curto desvio de atenção, dona Calvínia retomou a conversa com vigor, questionando porque haveria reconciliação por todos e não limitada, se somente alguns eram escolhidos? Salvação para todos significa, na realidade, salvação para ninguém, decretou.
Penso que, ao perceber meu olhar desinteressado em aceitar o repto, dona Calvínia quis parecer mais condescendente ao afirmar que essa graça era mesmo irresistível e imerecida, bela e um atributo irrecusável.
Animado com o novo rumo da conversa, argumentei sobre a nossa caminhada comum pela vida; da necessidade de perseverança até a condução ao estado de perfeição. Expirando ruidosamente pelas narinas, dona Calvínia, decepcionada, deixou claro que eu nada havia entendido, então, e encerrou nosso encontro. Antes, porém, e agora já em pé, disse-me que até mesmo a perseverança não contava com nossa interação, e que só perseverava quem já era preservado de antemão.
Ali, assentado, quase afundado num dos cinco pontos do quartinho, nem bem havia discordado, e senti-me convidado a me retirar. E o fiz, não sem antes cumprimentar a senhora que, muda e de olhar convicto, despediu-me com um aceno misericordioso.
Ao dirigir-me ao quartinho de dona Armínia, e ainda sob o impacto da conversa, ouvi um leve ruído em uma das janelas fechadas do casarão. Vi um pequeno Rouxinol já morto; não resistira ao choque com o vidro. Aquele pequeno passarinho é um excelente cantor, com extenso repertório de trinados fluidos terminando em crescendo, ouvido depois do escurecer e um dos poucos pássaros a cantar à noite. Uma pena. A graça não mais irá cantar naquelas noites escuras por ali.
Nem bem terminei o terceiro "toc" e dona Armínia já abrira a porta de sua "caixinha", como assim eu pensara daquele quartinho. Resoluta, pediu-me, ao contrário de dona Calvínia, para eu escolher onde me assentar.
Antes mesmo que eu a cumprimentasse e pudesse antes papear sobre "coisas que nóis não entende nada", como fazem o Dito e o João de Adoniran, dona Armínia confessou que ouvira eu entrar no aposento de sua irmã Calvínia e que já imaginara que conversa tínhamos tido. Surpreso, disse que minha intenção ao visitá-las era mesmo de rever as irmãs e amigas, ao mínimo minhas amigas.
Disse-me, emendando sem titubear, que esquecesse o que ouvira e que as suas convicções, sim, essas eram as mais influentes, profundas e mais disseminadas que as de Calvínia.
Algum rancor? Perguntei por curioso… Não, respondeu vigorosamente, apenas não esquecia da rejeição a que fora submetida pelos pupilos do João, na viela Dort – tinha certeza que Calvínia houvera falado de João, seu mentor, certamente. Mas, foi melhor assim; todos agora sabem quem é quem.
A essa altura da conversa o que menos quis foi pacificar o desconsenso.
Dona Armínia emendou rapidamente questionando como alguém – citando mesmo o nome de sua irmã Calvínia, podia crer que perdemos totalmente a capacidade espiritual. Era óbvio para dona Armínia que a responsabilidade pessoal define o destino eterno dos homens.
Quando argumentei se especulava sobre soberania e a limitação dos eleitos, bem como a reprovação prévia, ela não conteve um risinho irônico dizendo que nem mesmo Martinho, o vizinho comum, em suas prédicas enfatizava tal ideia. Não se trata de especulação, disse-me em tom repreensivo. Soberania, disse ela, implica em presciência em eleger os que reagirão positivamente ao seu convite.
Sempre tivemos, continuou agora em tom de discurso, e digo todos, sempre tivemos a potência de decidir, não apenas o que recebemos, mas, também, permanecer e perseverar. Mas também temos a liberdade de não permanecer e, assim, perder o que já obtivemos, ainda que recebido imerecida e graciosamente.
Outra vez à porta, o Sr. Dogma ofereceu uma segunda xícara de chá de Alma-Cega. Desta vez recusei, pedindo apenas um copo de água, que ele trouxera na mesma bandeja – água viva para uma garganta seca, como a minha.
Ao despedir-me de dona Armínia e conduzido pelo mordomo, Sr. Dogma, ouvi pelas costas o fechar da porta do casarão e, chegando à calçada, voltei-me para olhar novamente a histórica e imponente construção dos homens. Inspirei e expirei profundamente com a certeza de que dona Calvínia havia exercido seu livre-arbítrio em pensar como pensa e dona Armínia era mesmo uma predestinada em suas convicções.
Segui minha caminhada…
Santos - SP
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