Opinião
26 de agosto de 2025- Visualizações: 4678
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O cristão e a psicologia: tensões e possibilidades
Tudo é dom de Deus, mesmo que quem produza o conhecimento não reconheça isso
Por Julio Cesar Silveira
Quando alguém me pergunta o que a psicologia diz a respeito de algo eu costumo responder com outra indagação: “Psicologia qual?”.
Tomás de Aquino já falava de ‘autorregulação’, isto é, da necessidade da moderação das paixões, não da repressão das mesmas. Não considerava as emoções boas ou ruins, morais ou imorais, em si mesmas. Todas eram necessárias, tinham o seu momento de manifestação. Precisavam, não obstante, ser governadas pela vontade orientada por uma razão reta para que não causassem transtornos à alma:
Outra verdade que o cristão deve ter ciência na sua relação com a psicologia – e outras ciências – é a “graça comum”. A ideia de que todo ser humano por ser criado à imagem e semelhança de Deus, independentemente de professar a fé cristã e apesar da Queda, é capaz de produzir o que é bom, belo, verdadeiro e justo, ainda que de modo imperfeito e com traços de iniquidade, foi defendida por Agostinho e Tomás de Aquino. Antes deles por Inácio de Antioquia e Orígenes depois deles pelos reformadores Martinho Lutero e João Calvino.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDO
Saiba mais:
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Por Julio Cesar Silveira
Quando alguém me pergunta o que a psicologia diz a respeito de algo eu costumo responder com outra indagação: “Psicologia qual?”.Existem várias teorias na psicologia – e na psicanálise -, cada uma com sua abordagem, seu método e seu pressuposto filosófico.
Algumas correntes são mais materialistas, enquanto outras se inclinam para o idealismo. Certas abordagens se concentram nos processos cognitivos e no comportamento, já outras nas produções do espírito humano, nas imagens e nos símbolos da psique, e no sentido existencial do sujeito. Algumas enfatizam os fatores ambientais e culturais, ao passo que outras os fatores naturais e universais.
Podemos acrescentar que toda teoria, por mais objetiva e científica que pretenda ser, é, em algum nível, autobiográfica: reflete as experiências de vida do seu autor. Nenhuma teoria é feita no vácuo, não é essencialismo puro, há existencialidade, há historicidade. Sem incorrermos em psicologismos, isto é, reduzirmos a interpretação de uma teoria a um reflexo de traumas, carências e aspirações do teórico, quando conhecemos a história do autor novas luzes são projetadas e temos uma compreensão mais ampla e aprofundada da sua obra.
Portanto, a psicologia pode dizer muitas coisas diferentes – complementares ou divergentes – a respeito de um mesmo tema. Por exemplo, em relação à fé, à espiritualidade e à religiosidade humana – aqui tratadas como fenômenos correlatos.
A função transcendente do ser humano pode ser abordada basicamente como:
1.Epifenômeno da química cerebral: subproduto da ação de neurotransmissores em determinadas estruturas do sistema nervoso que produzem sensações de enlevo espiritual e de integração com uma dimensão superior.
2.Compensação psicológica: um “sintoma” ou “sinal” da perturbação no desenvolvimento da sexualidade, da insegurança quanto ao ser amado ou da angústia de uma existência impermanente, incerta e ameaçadora.
3.Faculdade autônoma: potência da psique, cujo desenvolvimento é necessário, assim como o de outras potências, como a sexualidade, a estética e o trabalho, e se desenvolvida de modo salutar proporciona bem-estar e sentido existencial, ou seja, serve como fator de saúde biopsicossocial.
Saber que existem muitas psicologias é importante para qualquer pessoa – inclusive para o cristão –, pois isso qualifica sua escolha e reduz o ‘fator aleatório’.
Esse conhecimento não somente auxilia, por exemplo, na busca por psicoterapia, na identificação da abordagem terapêutica que melhor possa atender à queixa ou demanda do sujeito, mas também, na eventualidade de insatisfação com o trabalho e/ou com a pessoa do psicólogo, ajuda a evitar que ele generalize seu juízo crítico para toda a ciência psicológica.
Outrossim, é preciso salientar o “óbvio ululante”, assim como em qualquer outra profissão – advogado, médico, engenheiro, técnico de informática, mecânico de automóveis etc. –, entre os psicólogos, de todas as abordagens, há profissionais excelentes, bons, medianos e medíocres em termos de qualidade técnica. Do mesmo modo, em matéria de ética, há profissionais éticos e antiéticos.
Dito isso, depois desse longo preâmbulo, pontuo brevemente o que o cristão, em especial, deve saber a respeito da psicologia e como deve se relacionar com ela.
O cristão deve saber que séculos antes da psicologia e a psicanálise formularem seus modelos topográficos da psique, Agostinho e Tomás de Aquino, por exemplo, já tinham elaborado os seus “mapas da alma”.
Para Agostinho, a alma humana era estruturada dinamicamente em três dimensões:
Memória: o depositário dos registros sensíveis, das ideias universais, como o número, a beleza, a grandeza e igualdade - e das verdades eternas: Deus, justiça, bondade e perfeição.
Entendimento: o entendimento, a capacidade de operar intelectivamente com os registros da memória, ou seja, abstrair, raciocinar, concluir e construir ideias.
Vontade: o apetite nutrido por desejos terrenos e desejos celestiais, que decide o modo e a direção do agir.
Podemos ver ecos da “psicologia agostiniana” na psicanálise de Sigmund Freud. O pai da psicanálise também elaborou uma estruturação tripartite da psique. Na sua primeira tópica – inconsciente, pré-consciente e consciente – e na segunda – id, ego e superego.
O ‘id’ freudiano tem paralelos com a ‘memória’ de Agostinho. Ambas são constituídas de registros afetivos e e têm elevado grau de autonomia em relação à vontade consciente, ou seja, interferem na dinâmica psíquica.
Assim como o ‘ego’ de Freud tem semelhanças com a ‘vontade’ de Agostinho. Os dois, além de serem semiconscientes, experimentam o conflito e decidem o modo de agir.
O ego freudiano vive a tensão e procura fazer a mediação entre o id e o superego. Enquanto a vontade agostiniana experiencia a disputa entre os desejos terrenos e os celestiais, e decide se age de acordo a ‘carne’, a vontade humana, ou de acordo com o ‘espírito’, a vontade de Deus.
A relação alma-Deus de Agostinho “prefigura” a relação ego-self, conforme o modelo da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
De acordo com Agostinho, a alma só encontra satisfação e equilíbrio pleno em Deus, que não se encontra ‘fora’, e sim nas ‘profundezas’ da alma, no âmago da memória. Portanto, é preciso fazer uma viagem interior. Para Jung, a harmonia total da psique passa pelo processo de individuação, isto é, de reencontro e reconciliação do ego – o centro da consciência e operador da vontade – com o self (si-mesmo) – o centro da totalidade psíquica, cuja imagem primordial é Deus – embora não necessariamente o Deus, conforme crido pela fé cristã. Por conseguinte, é também necessário fazer uma jornada na subjetividade.
A “psicologia tomista”, partindo de bases aristotélicas, intui e racionaliza um complexo sistema anímico. Séculos antes do surgimento do método científico moderno e do surgimento da neurociência, Tomás de Aquino concebeu a alma como uma unidade substancial, que integra as faculdades:
Vegetativa: faculdade compartilhada com as plantas, cujas potências são: nutrir, crescer e gerar.
Sensitiva: faculdade compartilhada com os animais, constituída pelas potências cognoscitivas - sentidos externos e internos - e apetitivas – concupiscíveis e irascíveis.
Intelectiva: faculdade exclusivamente humana, cujas potências são: o intelecto agente, o intelecto possível e a vontade.
Tomás de Aquino já falava de ‘autorregulação’, isto é, da necessidade da moderação das paixões, não da repressão das mesmas. Não considerava as emoções boas ou ruins, morais ou imorais, em si mesmas. Todas eram necessárias, tinham o seu momento de manifestação. Precisavam, não obstante, ser governadas pela vontade orientada por uma razão reta para que não causassem transtornos à alma:
“As paixões da alma podem considerar-se em dois pontos de vista: em si e enquanto caem sob o império da razão e da vontade. Em si consideradas e como uns movimentos do apetite irracional, não são susceptíveis de bem nem de mal moral, que dependem da razão, como já dissemos. São, porém, susceptíveis de bem ou de mal moral, enquanto caem sob o império da razão e da vontade.”
Esses dois exemplos são citados para mostrar que ‘parte’ do conhecimento produzido pela psicologia e outras ciências da mente humana é uma secularização e evolução de formulações teológicas cristãs.
E não só cristãs. Outras religiões, como o judaísmo, o budismo e as religiões do subcontinente indiano - que no Ocidente são chamadas genericamente de ‘hinduísmo’ – também podem legitimamente fazer essa reivindicação.
Outra verdade que o cristão deve ter ciência na sua relação com a psicologia – e outras ciências – é a “graça comum”. A ideia de que todo ser humano por ser criado à imagem e semelhança de Deus, independentemente de professar a fé cristã e apesar da Queda, é capaz de produzir o que é bom, belo, verdadeiro e justo, ainda que de modo imperfeito e com traços de iniquidade, foi defendida por Agostinho e Tomás de Aquino. Antes deles por Inácio de Antioquia e Orígenes depois deles pelos reformadores Martinho Lutero e João Calvino.
Logo, se por um lado, o cristão deve ter um espírito crítico com tudo que examina, por outro lado, não deve se constranger em reconhecer e absorver as “verdades reveladas” pela psicologia, pois tudo é dom de Deus, mesmo que quem produza o conhecimento não reconheça isso.
Conforme as palavras do Reformador de Genebra, a saber, João Calvino:
"Quando lemos escritores pagãos vemos neles aquela admirável luz da verdade que resplandece em seus escritos, eles nos devem servir como testemunho de que o entendimento humano, por mais que seja caído e degenerado de sua integridade e perfeição, sem dúvida não deixa de estar ainda adornado e enriquecido com excelentes dons de Deus. Se reconhecemos no Espírito Santo a única fonte de manancial da verdade não menosprezaremos a verdade donde quer que saia, a não ser que queiramos fazer uma injúria ao Espírito de Deus. Porque os dons do Espírito não podem ser menosprezados sem que ele mesmo seja menosprezado."
O que o cristão precisa saber além disso é que, a despeito da teoria psicológica, o psicólogo deve objetivar na sua prática profissional os princípios da "liberdade", da "dignidade", da "igualdade" e da "integridade" do ser humano e combater toda forma de discriminação – o que um cristão objetiva ou deveria objetivar.
Assim como saber que o psicólogo está submetido a um código de ética que o proíbe de induzir o paciente a “convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual, ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais (artigo 2º, alínea b)”.
Que toda pessoa, cristã ou não cristã, encontre um psicólogo que trate a sua alma como um território sagrado.
Que todo cristão ou não cristão, que é também psicólogo lembre-se, do que disse Jung:
"Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”
- Julio César Silveira, psicólogo e especialista em Neurociências e Psicologia Aplicada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. Membro Pleno do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos). Autor de Igreja: vocação para a desobediência e Espiritualidade transversal.
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