Opinião
03 de julho de 2025
- Visualizações: 540
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
O grito da arte
Por um olhar que veja a arte como deleite, espelho e janela
Por Medson Barreto
Certa vez, um professor de artes mostrou o quadro O Grito, de Edvard Munch, a uma turma de crianças de 10 anos. Elas nunca tinham visto aquela imagem. Uma disse que parecia uma criança sozinha e com medo. Outra enxergou a tragédia de Brumadinho. E, por fim, uma menina disse: “Esse cara tá olhando pra mim. Ele não está desesperado com o que está acontecendo lá atrás, mas com o que a gente está fazendo com o mundo”.
Esse grito transcende o quadro. É o grito da arte. O próprio Munch descreveu o quadro como fruto de um momento de angústia em que “sentiu um grito passando pela natureza”. O que ele pintou não foi apenas uma paisagem, mas um clamor da alma. Sua dor se tornou cor, forma e traço, visível ainda hoje.
Esse quadro nos lembra de que toda arte, em alguma medida, é um grito. Às vezes pessoal, nascido do íntimo do artista; às vezes coletivo, expressão de uma cultura ou época. O filósofo Hans Rookmaaker afirma: “A arte de cada período é uma expressão pura do espírito daquele período.”1 Se queremos entender uma sociedade, precisamos escutar o que sua arte está gritando.
Desde os primeiros registros artísticos da humanidade, percebemos um clamor por algo maior. As pinturas na Caverna de Lascaux na França, os zigurates mesopotâmicos, as pirâmides egípcias, as estatuetas de Vênus de Willendorf, o Teatro de Dionísio na Grécia: tudo isso era arte com função religiosa. O ser humano, em todas as culturas, sempre expressou através da arte seu anseio pelo eterno. A arte nasce, assim, como um grito de saudade de Deus.
Durante a Idade Média, a arte esteve profundamente ligada à Igreja. Era a Igreja quem encomendava e financiava as principais obras: desde catedrais a vitrais, esculturas, pinturas e músicas. O canto gregoriano, o teatro sacro, os mosaicos bizantinos e a arquitetura gótica eram expressões visuais e sonoras de uma fé encarnada na cultura.
Mas algo começa a mudar com o Renascimento e, mais adiante, com a Reforma. O filósofo Gilles Lipovetsky2 aponta que, se da Antiguidade à Idade Média a arte era “para os deuses”, na Modernidade ela passou a ser “para os príncipes”, financiada por nobres e elites, ganhando novos temas e estilos. Depois, surgiria a “arte pela arte”, onde o artista se torna uma espécie de gênio criador, livre das amarras religiosas ou políticas. E então, finalmente, no mundo Contemporâneo a arte se torna produto de mercado, vendida diretamente ao povo, moldada pelo gosto das massas.

Com a Reforma, especialmente nos países influenciados pelo Calvinismo, a arte foi, em certa medida, desvinculada do culto. Abraham Kuyper argumenta que a religião e a arte, embora tenham raízes comuns, ganham esferas distintas. Isso não significa que a arte não tenha relação com a fé. Pelo contrário, Kuyper afirma que a arte cristã é aquela que, mesmo em meio a um mundo caído, nos faz lembrar a beleza original da criação, denuncia as dores da queda, e antecipa, pela imaginação, a sua restauração final.3
A arte, portanto, é uma dádiva da graça comum de Deus e uma expressão cultural humana. Uma expressão que grita nossa busca por sentido. E que não apenas expressa cosmovisões, mas também as forma. O autor brasileiro Bruno Maroni propõe que a cultura pode ser lida como um “mundo-texto”4. Inspirado no teólogo Kevin Vanhoozer, ele nos convida a perguntar: Quem fez esta obra e por quê? O que ela significa? Que efeito tem sobre aqueles que o recebem, usam ou consomem? O que ela diz sobre o que é o ser humano?
Toda obra de arte carrega dentro de si uma cosmovisão, mesmo que o próprio artista não a perceba. Como define James Sire, cosmovisão é um compromisso profundo do coração, que orienta como vemos e vivemos a realidade5. E, como aponta James K. A. Smith, essas visões de mundo nos formam não apenas por ideias, mas por meio de histórias que moldam nossos desejos e afetos. A arte nos cativa porque nos conta histórias e é nessas histórias que aprendemos o que é belo, bom e verdadeiro6.
Como cristãos, não somos chamados a julgar apressadamente os gritos da cultura, mas a escutá-los com discernimento e compaixão. Por isso, é preciso desenvolver um olhar atento e amoroso. Um olhar que veja a arte como deleite (um bem cultural a ser apreciado com gratidão), como espelho (percebendo como ela reflete e molda nossa própria visão de mundo) e como janela (para enxergar o outro, seu clamor, seu anseio, sua busca).
Quando uma música estoura nas plataformas, quando um filme bate recordes de bilheteria, quando uma estética domina as redes, ou mesmo na arte considerada indie, há sempre um grito ali. Pode ser um grito de dor, de prazer, de busca por identidade ou pertencimento, ou até um grito contra Deus; mas ainda assim é um eco de algo mais profundo: o desejo humano por sentido, por beleza, por redenção.
As pessoas estão gritando através da arte. A pergunta é: será que como cristãos estamos ouvindo?
***
Este foi o tema do último encontro do Vitral na Cidade, realizado no dia 30 de maio de 2025 no Museu da Moda, em Belo Horizonte. O evento é promovido pelo Vitral Podcast, uma iniciativa que promove conversas sobre fé e cultura, dialogando com temas como arte, filosofia, teologia e outras áreas do conhecimento, a partir de uma visão cristã da realidade.
Assista à palestra O grito da arte completa no canal do Vitral Podcast. Acesse aqui.
Medson Barreto, artista e escritor.
Notas:
1 ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e Estética. Monergismo, 2018. p. 157.
2 LIPOVETSKY, Gilles. A estetização do Mundo. Companhia das Letras, 2015.
3 KUYPER, Abraham. Calvinismo. Editora Cultura Cristã, 2002.
4 MARONI, Bruno. Pós-Créditos – Sabedoria Bíblica para a Cultura Pop. Thomas Nelson, 2023. p. 254.
5 SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como conceito. Monergismo, 2012.
6 SMITH, James K. Imaginando o reino: a dinâmica do culto. Vida Nova, 2019.
REVISTA ULTIMATO – ADOLESCÊNCIA – ONLINE E OFFLINE
Muito já se falou da adolescência como uma fase crítica da vida, em que as dificuldades próprias da idade inspiram cuidados especiais – o que é ainda mais importante hoje.
Os adolescentes desta geração são o grupo mais impactado pelo ritmo acelerado das mudanças. A matéria dessa edição oferece subsídio para melhor conhecer e atuar com esse grupo. Nos depoimentos dos 12 adolescentes que participam eles pedem: “Acreditem em nós!”.
É disso que trata a edição 414 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Calvinismo Para Uma Era Secular – uma leitura contemporânea de Abraham Kuyper
» A Arte Não Precisa de Justificativa, H. R. Rookmaaker
» A refeição de Emaús e a Ceia do Senhor em Frans Snyders, por Marleen Hengelaar-Rookmaaker
Por Medson Barreto

Esse grito transcende o quadro. É o grito da arte. O próprio Munch descreveu o quadro como fruto de um momento de angústia em que “sentiu um grito passando pela natureza”. O que ele pintou não foi apenas uma paisagem, mas um clamor da alma. Sua dor se tornou cor, forma e traço, visível ainda hoje.
Esse quadro nos lembra de que toda arte, em alguma medida, é um grito. Às vezes pessoal, nascido do íntimo do artista; às vezes coletivo, expressão de uma cultura ou época. O filósofo Hans Rookmaaker afirma: “A arte de cada período é uma expressão pura do espírito daquele período.”1 Se queremos entender uma sociedade, precisamos escutar o que sua arte está gritando.
Desde os primeiros registros artísticos da humanidade, percebemos um clamor por algo maior. As pinturas na Caverna de Lascaux na França, os zigurates mesopotâmicos, as pirâmides egípcias, as estatuetas de Vênus de Willendorf, o Teatro de Dionísio na Grécia: tudo isso era arte com função religiosa. O ser humano, em todas as culturas, sempre expressou através da arte seu anseio pelo eterno. A arte nasce, assim, como um grito de saudade de Deus.
Durante a Idade Média, a arte esteve profundamente ligada à Igreja. Era a Igreja quem encomendava e financiava as principais obras: desde catedrais a vitrais, esculturas, pinturas e músicas. O canto gregoriano, o teatro sacro, os mosaicos bizantinos e a arquitetura gótica eram expressões visuais e sonoras de uma fé encarnada na cultura.
Mas algo começa a mudar com o Renascimento e, mais adiante, com a Reforma. O filósofo Gilles Lipovetsky2 aponta que, se da Antiguidade à Idade Média a arte era “para os deuses”, na Modernidade ela passou a ser “para os príncipes”, financiada por nobres e elites, ganhando novos temas e estilos. Depois, surgiria a “arte pela arte”, onde o artista se torna uma espécie de gênio criador, livre das amarras religiosas ou políticas. E então, finalmente, no mundo Contemporâneo a arte se torna produto de mercado, vendida diretamente ao povo, moldada pelo gosto das massas.

Com a Reforma, especialmente nos países influenciados pelo Calvinismo, a arte foi, em certa medida, desvinculada do culto. Abraham Kuyper argumenta que a religião e a arte, embora tenham raízes comuns, ganham esferas distintas. Isso não significa que a arte não tenha relação com a fé. Pelo contrário, Kuyper afirma que a arte cristã é aquela que, mesmo em meio a um mundo caído, nos faz lembrar a beleza original da criação, denuncia as dores da queda, e antecipa, pela imaginação, a sua restauração final.3
A arte, portanto, é uma dádiva da graça comum de Deus e uma expressão cultural humana. Uma expressão que grita nossa busca por sentido. E que não apenas expressa cosmovisões, mas também as forma. O autor brasileiro Bruno Maroni propõe que a cultura pode ser lida como um “mundo-texto”4. Inspirado no teólogo Kevin Vanhoozer, ele nos convida a perguntar: Quem fez esta obra e por quê? O que ela significa? Que efeito tem sobre aqueles que o recebem, usam ou consomem? O que ela diz sobre o que é o ser humano?
Toda obra de arte carrega dentro de si uma cosmovisão, mesmo que o próprio artista não a perceba. Como define James Sire, cosmovisão é um compromisso profundo do coração, que orienta como vemos e vivemos a realidade5. E, como aponta James K. A. Smith, essas visões de mundo nos formam não apenas por ideias, mas por meio de histórias que moldam nossos desejos e afetos. A arte nos cativa porque nos conta histórias e é nessas histórias que aprendemos o que é belo, bom e verdadeiro6.
Como cristãos, não somos chamados a julgar apressadamente os gritos da cultura, mas a escutá-los com discernimento e compaixão. Por isso, é preciso desenvolver um olhar atento e amoroso. Um olhar que veja a arte como deleite (um bem cultural a ser apreciado com gratidão), como espelho (percebendo como ela reflete e molda nossa própria visão de mundo) e como janela (para enxergar o outro, seu clamor, seu anseio, sua busca).
Quando uma música estoura nas plataformas, quando um filme bate recordes de bilheteria, quando uma estética domina as redes, ou mesmo na arte considerada indie, há sempre um grito ali. Pode ser um grito de dor, de prazer, de busca por identidade ou pertencimento, ou até um grito contra Deus; mas ainda assim é um eco de algo mais profundo: o desejo humano por sentido, por beleza, por redenção.
As pessoas estão gritando através da arte. A pergunta é: será que como cristãos estamos ouvindo?
***
Este foi o tema do último encontro do Vitral na Cidade, realizado no dia 30 de maio de 2025 no Museu da Moda, em Belo Horizonte. O evento é promovido pelo Vitral Podcast, uma iniciativa que promove conversas sobre fé e cultura, dialogando com temas como arte, filosofia, teologia e outras áreas do conhecimento, a partir de uma visão cristã da realidade.
Assista à palestra O grito da arte completa no canal do Vitral Podcast. Acesse aqui.
Medson Barreto, artista e escritor.
Notas:
1 ROOKMAAKER, H. R. Filosofia e Estética. Monergismo, 2018. p. 157.
2 LIPOVETSKY, Gilles. A estetização do Mundo. Companhia das Letras, 2015.
3 KUYPER, Abraham. Calvinismo. Editora Cultura Cristã, 2002.
4 MARONI, Bruno. Pós-Créditos – Sabedoria Bíblica para a Cultura Pop. Thomas Nelson, 2023. p. 254.
5 SIRE, James W. Dando nome ao elefante: cosmovisão como conceito. Monergismo, 2012.
6 SMITH, James K. Imaginando o reino: a dinâmica do culto. Vida Nova, 2019.

Muito já se falou da adolescência como uma fase crítica da vida, em que as dificuldades próprias da idade inspiram cuidados especiais – o que é ainda mais importante hoje.
Os adolescentes desta geração são o grupo mais impactado pelo ritmo acelerado das mudanças. A matéria dessa edição oferece subsídio para melhor conhecer e atuar com esse grupo. Nos depoimentos dos 12 adolescentes que participam eles pedem: “Acreditem em nós!”.
É disso que trata a edição 414 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Calvinismo Para Uma Era Secular – uma leitura contemporânea de Abraham Kuyper
» A Arte Não Precisa de Justificativa, H. R. Rookmaaker
» A refeição de Emaús e a Ceia do Senhor em Frans Snyders, por Marleen Hengelaar-Rookmaaker
03 de julho de 2025
- Visualizações: 540
comente!
- +A
- -A
-
compartilhar
QUE BOM QUE VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI.
Ultimato quer falar com você.
A cada dia, mais de dez mil usuários navegam pelo Portal Ultimato. Leem e compartilham gratuitamente dezenas de blogs e hotsites, além do acervo digital da revista Ultimato, centenas de estudos bíblicos, devocionais diárias de autores como John Stott, Eugene Peterson, C. S. Lewis, entre outros, além de artigos, notícias e serviços que são atualizados diariamente nas diferentes plataformas e redes sociais.
PARA CONTINUAR, precisamos do seu apoio. Compartilhe conosco um cafezinho.

Leia mais em Opinião

Opinião do leitor
Para comentar é necessário estar logado no site. Clique aqui para fazer o login ou o seu cadastro.
Ainda não há comentários sobre este texto. Seja o primeiro a comentar!
Escreva um artigo em resposta
Para escrever uma resposta é necessário estar cadastrado no site. Clique aqui para fazer o login ou seu cadastro.
Ainda não há artigos publicados na seção "Palavra do leitor" em resposta a este texto.
Assuntos em Últimas
- 500AnosReforma
- Aconteceu Comigo
- Aconteceu há...
- Agenda50anos
- Arte e Cultura
- Biografia e História
- Casamento e Família
- Ciência
- Devocionário
- Espiritualidade
- Estudo Bíblico
- Evangelização e Missões
- Ética e Comportamento
- Igreja e Liderança
- Igreja em ação
- Institucional
- Juventude
- Legado e Louvor
- Meio Ambiente
- Política e Sociedade
- Reportagem
- Resenha
- Sessenta +
- Série Ciência e Fé Cristã
- Teologia e Doutrina
- Testemunho
- Vida Cristã
Revista Ultimato
+ lidos
- A relevância do Livro de Jó para psicologia clínica e aconselhamento bíblico do sofrimento ressentido contra Deus
- Marcas bíblicas na psicologia e na psiquiatria — Live de lançamento
- Por uma identidade convicta e apaixonada, mas não triunfalista
- Como a fé sobrevive ao consumo – o Labubu e o pão nosso
- Da tela ao abraço: como proteger nossos filhos na era digital
- A ciência modifica a fé?
- Heróis sem aplauso
- Energia limpa e acessível para todos?
- A igreja é antídoto contra a epidemia das Bets
- O grito da arte