Opinião
04 de novembro de 2025- Visualizações: 1151
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O Brasil como lar e caminho
Por uma fé que se encarna em nossa cultura
Por Medson Barreto
O ano era 1962. Recife recebia a Conferência do Nordeste, cujo tema era Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Organizado por Waldo César, da antiga Confederação Evangélica do Brasil (CEB), o encontro reuniu teólogos, pastores e intelectuais de quase vinte estados para refletir sobre o papel da fé cristã diante dos desafios sociais e culturais do país.
Entre os convidados estava Gilberto Freyre, sociólogo e intérprete do Brasil. Durante a conferência, ao visitar uma exposição de arte com obras de Portinari, Carybé, Goeldi, Vitalino e Derly Barroso, reagiu com entusiasmo: “Realmente é encantador o honesto e inteligente empenho que esta reunião revela da parte dos cristãos evangélicos brasileiros de se identificarem com a realidade brasileira, com a cultura, com a própria tradição brasileira [...]. Pois não é certo desta tradição que não se concilie com o modo dos cristãos evangélicos serem ao mesmo tempo cristãos e brasileiros.”1
A fala foi tanto um elogio quanto um diagnóstico. Freyre via uma semente – o desejo dos evangélicos de se reconhecerem como parte viva da cultura –, mas percebia que o enraizamento ainda era raso. Em sua palestra O Artista: Servo dos que Sofrem, lançou o desafio que se tornaria histórico:
“A despeito do crescente número de cristãos evangélicos em nosso país, ainda não apareceu o brasileiro de gênio, que nascido evangélico, criado em meio evangélico, identificado com a interpretação evangélica da vida e da cultura brasileira, se afirmasse no Brasil grande poeta ou grande escritor em língua portuguesa, ou compusesse música brasileira, marcada por esta interpretação ou por esta inspiração, ou o arquiteto também de gênio que desenvolvesse para as igrejas evangélicas do trópico, um tipo de arquitetura que não fosse nem a imitação do tipo católico, nem reprodução do protestante anglo-saxônico ou germânico [...] É tempo de o cristianismo brasileiro evangélico ir além e concorrer para esse enriquecimento com um escritor do porte e da flama revolucionária, eu diria também, de Euclides da Cunha; com um poeta da grandeza de Manoel Bandeira; com um compositor que seja outro Villa-Lobos, que componha baquianas brasileiras que sejam interpretação ao mesmo tempo evangélica e brasileira de Bach.”2
Freyre não falava como teólogo, mas como alguém que buscava compreender o Brasil em sua totalidade. Sua provocação soava quase profética: enquanto o protestantismo não produzisse arte, poesia e pensamento nascidos de sua vivência brasileira, continuaria sendo um estrangeiro em sua própria terra.
Gilberto Freyre faleceu em 1987, pouco mais de um ano antes de Carlos Nejar, poeta gaúcho e hoje pastor pentecostal, ser eleito para a cadeira número quatro da Academia Brasileira de Letras. Nejar seria ainda indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2017, 2018 e 2019. Freyre também não chegou a ouvir Rebanhão, Vencedores por Cristo, Grupo Elo, Jorge Camargo, João Alexandre, Gerson Borges e tantos outros que marcaram a música cristã brasileira nas décadas seguintes, nem conhecer a geração de artistas do Coletivo Candiero, que trouxe novo fôlego à nossa arte. Tampouco viveu para ver a fundação da SIC Bartão – Museu de Arte Cristã Contemporânea, em Cuiabá (2018), ou a Companhia de Teatro Nissi, de São Paulo, receber o Prêmio Bibi Ferreira por Rua Azusa (2019), e, depois, encenar Luther King – O Musical, aclamado dentro e fora do meio evangélico.

São exemplos modestos diante de um movimento que, segundo o Censo de 2022 do IBGE, já reúne 47,4 milhões de evangélicos – um grupo que carrega, cada vez mais, a responsabilidade de responder à antiga provocação de Gilberto Freyre.
Mais de meio século depois, Gerson Borges levantaria inquietações semelhantes em Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro (2016): “Para alguns, entrar na igreja é sair do Brasil... Nossos pastores não conhecem arte e nossos artistas não ligam para teologia. [...] Temos dificuldade de aceitar as manifestações culturais. Ao mesmo tempo, criamos versões ‘cristãs’ de quase tudo e batizamos de ‘gospel’. Para não sermos mundanos, copiamos – e mal – em nossos guetos o mundo. [...] Ser evangélico não é romper com a identidade nacional, mas redescobrir a música, a poesia e a literatura nacional.”3
Borges descreve o que Freyre já afirmava: o protestantismo brasileiro ainda não aprendeu a ser brasileiro. Falta-lhe chão, linguagem e imaginação. Por zelo, o cristão brasileiro acabou se distanciando da própria terra; por medo de parecer “mundano”, trocou a transformação cultural pela fuga. O resultado é uma fé que se define mais pelo que nega do que pelo que afirma. Ele lembra, citando Gedeon Alencar, que “tornamo-nos conhecidos pelo que somos proibidos de praticar” e que “os primeiros convertidos no Brasil passaram a não viver, porque romperam com a sua cultura. Passaram a ser pessoas estranhas.”4 Essa “cultura da negação” produziu uma fé que trocou a graça pelo legalismo e a encarnação pela alienação.
“Quero, portanto, um cristianismo de matriz e identidade nitidamente evangelicais – Cristo/cruz, conversão/novo nascimento, Bíblia/evangelho e engajamento social/missão, uma fé íntegra e inteiramente relevante, que não seja desprezada pela cultura brasileira, pois uma fé assim nunca foi nem nunca será desprezível.”5
Essa fé íntegra e relevante é, em certo sentido, a resposta que Freyre esperava: um cristianismo que não copie, mas crie; que não apenas reaja à cultura, mas participe dela. O evangelho floresce quando o cristão cultiva – quando compõe, ensina, trabalha e constrói. O Brasil não precisa de uma igreja que o negue, mas de uma igreja que o ame até o fim, que veja a cidade como campo de missão, ouça seu povo e se envolva com suas dores.
Se Freyre lamentava não ter visto surgir um artista evangélico de gênio, Borges responde que o gênio pode ser coletivo: uma comunidade inteira redescobrindo o sentido de criar diante de Deus. Essa fé precisa redescobrir o prazer de ser brasileira. Isso não é superficialidade, é obediência ao chamado encarnacional. Cristo não apenas veio ao mundo; veio a uma cultura, a uma língua, a um lugar. A verdadeira espiritualidade, portanto, não nega o chão, mas o santifica.
Essa visão também encontra eco na obra Arte e Espiritualidade – O Cristão e a Cultura Brasileira (2022), de Rodolfo Amorim, Marcos Almeida e Davi Lago. Os autores apresentam um olhar histórico, sociológico e teológico sobre o país, a partir de uma fé que não se limita ao culto e de uma cultura que reconhece o transcendente.
“Consideraremos o Brasil na presente obra simultaneamente como lar e caminho. O Brasil é lar, pois ser brasileiro é admitir que parte significativa de nossa formação identitária e ‘habitação’ cultural se dá a partir dos desdobramentos históricos específicos daquela entidade que se convencionou chamar Brasil. [...] Todo cristão deve reconhecer que sua identidade nacional, ou étnica, é parte substancial do que somos como humanos diante do Criador.”6
A imagem do “lar e caminho” ajuda a corrigir dois extremos: o da rejeição e o da idolatria cultural. O Brasil é lar, porque nele se enraízam nossas memórias, nossa língua e nossa imaginação. É nesse espaço concreto que aprendemos a viver a fé de forma encarnada, entre tensões e belezas. Mas o Brasil também é caminho, porque nenhuma identidade cultural é definitiva. “Reconhecer nossa identidade e contexto nacional como lar deve ser sopesado pelo elemento de prioridade do reino eterno e universal de Cristo. [...] O Brasil é caminho, pois consideramos que o elemento de brasilidade presente em cada um de nós, brasileiros, não é fundante de nossas identidades. E o Brasil, enquanto entidade sociocultural, não coincide com o ideal cultural postulado por Deus discernível em seus atos redentivos revelados.”7
Essa visão protege a fé tanto do isolamento quanto da diluição. Ela nos permite amar o país sem absolutizá-lo e reconhecer sua riqueza sem negar suas feridas. Escutar o Brasil é, em si, um ato de obediência cristã. A cultura não é obstáculo à fé, mas o campo onde Deus nos chama a servir. Se, como afirmou Abraham Kuyper, “não há um único centímetro quadrado em todo o domínio da nossa existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’”, então o Brasil também pertence a Ele — com suas contradições, mas também com sua graça, sua arte e seu povo.
“O Brasil, sob a ótica cristã, reflete não somente a vontade criacional de Deus, de povoar toda a terra com sua imagem em expressões ricas de diversidade e criatividade, mas também sua vontade redentiva de povoar a eternidade com pessoas de todas as nações, tribos, povos e línguas.”8
Nessa perspectiva, ser brasileiro deixa de ser um mero acaso histórico e se torna vocação. O cristão é chamado a viver com responsabilidade em sua nação, buscando o bem comum e ajudando a reordenar os amores que moldam nossa sociedade.
Agostinho definia um povo como “o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados.”9 Quando esses amores se desordenam, a sociedade se corrompe; quando são guiados pela justiça, floresce. “Somente pessoas virtuosas, com amores reordenados [...] podem cooperar para que a comunidade nacional desfrute do bem comum em uma reorientação orgânica de seus amores.”10
Obras de arte que expressam verdade e beleza, leis justas, tecnologias e ciências que sirvam à vida e igrejas que formem cristãos maduros fazem parte de uma espiritualidade que se manifesta no dia a dia.
A semente que Freyre viu ainda cresce: a de um cristianismo capaz de florescer no solo brasileiro. Nossa esperança não está em importar modelos, mas em cultivar, nesta terra, uma fé viva – capaz de rir e chorar com o país, de acolher sua beleza e confrontar sua corrupção, de ver no samba e no silêncio, na feira e no templo, na arte e na compaixão, reflexos do Deus que habita entre nós.
Ser cristão no Brasil é habitar o presente com fidelidade e caminhar com esperança, amando o lar que recebemos e mantendo os olhos no Reino que virá. Pois “em Cristo Jesus recebemos nossa nação como parte do que somos e recebemos, simultaneamente, o ideal a que almejamos e em direção ao qual caminhamos. Temos a nação brasileira como lar e caminho.”11
Notas
1. FREYRE, Gilberto. In: CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL. Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Vol. II. p. 59.
2. FREYRE, Gilberto. O artista: servo dos que sofrem. In: CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL. Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Vol. II. p. 62.
3. BORGES, Gerson. Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro. Viçosa: Ultimato, 2016. (Citação da sinopse).
4. ALENCAR, Gedeon. Protestantismo tupiniquim. São Paulo: Arte Editorial, 2005. p. 70–71. Apud: BORGES, Gerson. Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro. Viçosa: Ultimato, 2016. Nota 114.
5. BORGES, Gerson. Op. cit. Nota 181.
6. AMORIM, Rodolfo; ALMEIDA, Marcos; LAGO, Davi. Arte e espiritualidade: o cristão e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. p. 12–13.
7. Ibid., p. 14.
8. Ibid., p. 13.
9. AGOSTINHO. A cidade de Deus contra os pagãos. Parte II (Livros XI a XXII). Petrópolis: Vozes, 2017. Livro XIX, cap. XXIV.
10. AMORIM; ALMEIDA; LAGO. Op. cit. p. 547.
11. Ibid., p. 543–544.
A fé cristã no contexto brasileiro é um tema recorrente no Vitral Podcast. Para conhecer mais sobre o assunto, recomendamos a palestra “O Cristão e a Cultura Brasileira”, ministrada por Rodolfo Amorim no Vitral na Cidade, em março de 2024. Acesse aqui.
Imagem: Quermesse, Anita Malfatti. CMMECPC.
REVISTA ULTIMATO - A IGREJA EM MISSÃO
Ultimato celebra a igreja em missão, a missão da igreja e o movimento missionário brasileiro, cuja história é quase tão longeva quanto a do Brasil.
Ao longo de mais de 10 páginas, o leitor vai encontrar parte das palestras do 10ª edição do Congresso Brasileiro de Missões (CBM 2025), que aconteceu em outubro, em Águas de Lindóia, SP, e lerá, no "Especial", um painel com uma avaliação ampla e crítica do movimento missionário brasileiro.
É disso que trata a edição 416 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro, Gerson Borges
» Fé Cristã e Cultura Contemporânea - Cosmovisão cristã, igreja local e transformação integral, Leonardo Ramos, Marcel Camargo e Rodolfo Amorim (org.)
» Carlos Nejar, o servo da Palavra, por Davi Lago
Por Medson Barreto
O ano era 1962. Recife recebia a Conferência do Nordeste, cujo tema era Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Organizado por Waldo César, da antiga Confederação Evangélica do Brasil (CEB), o encontro reuniu teólogos, pastores e intelectuais de quase vinte estados para refletir sobre o papel da fé cristã diante dos desafios sociais e culturais do país.Entre os convidados estava Gilberto Freyre, sociólogo e intérprete do Brasil. Durante a conferência, ao visitar uma exposição de arte com obras de Portinari, Carybé, Goeldi, Vitalino e Derly Barroso, reagiu com entusiasmo: “Realmente é encantador o honesto e inteligente empenho que esta reunião revela da parte dos cristãos evangélicos brasileiros de se identificarem com a realidade brasileira, com a cultura, com a própria tradição brasileira [...]. Pois não é certo desta tradição que não se concilie com o modo dos cristãos evangélicos serem ao mesmo tempo cristãos e brasileiros.”1
A fala foi tanto um elogio quanto um diagnóstico. Freyre via uma semente – o desejo dos evangélicos de se reconhecerem como parte viva da cultura –, mas percebia que o enraizamento ainda era raso. Em sua palestra O Artista: Servo dos que Sofrem, lançou o desafio que se tornaria histórico:
“A despeito do crescente número de cristãos evangélicos em nosso país, ainda não apareceu o brasileiro de gênio, que nascido evangélico, criado em meio evangélico, identificado com a interpretação evangélica da vida e da cultura brasileira, se afirmasse no Brasil grande poeta ou grande escritor em língua portuguesa, ou compusesse música brasileira, marcada por esta interpretação ou por esta inspiração, ou o arquiteto também de gênio que desenvolvesse para as igrejas evangélicas do trópico, um tipo de arquitetura que não fosse nem a imitação do tipo católico, nem reprodução do protestante anglo-saxônico ou germânico [...] É tempo de o cristianismo brasileiro evangélico ir além e concorrer para esse enriquecimento com um escritor do porte e da flama revolucionária, eu diria também, de Euclides da Cunha; com um poeta da grandeza de Manoel Bandeira; com um compositor que seja outro Villa-Lobos, que componha baquianas brasileiras que sejam interpretação ao mesmo tempo evangélica e brasileira de Bach.”2
Freyre não falava como teólogo, mas como alguém que buscava compreender o Brasil em sua totalidade. Sua provocação soava quase profética: enquanto o protestantismo não produzisse arte, poesia e pensamento nascidos de sua vivência brasileira, continuaria sendo um estrangeiro em sua própria terra.
Gilberto Freyre faleceu em 1987, pouco mais de um ano antes de Carlos Nejar, poeta gaúcho e hoje pastor pentecostal, ser eleito para a cadeira número quatro da Academia Brasileira de Letras. Nejar seria ainda indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 2017, 2018 e 2019. Freyre também não chegou a ouvir Rebanhão, Vencedores por Cristo, Grupo Elo, Jorge Camargo, João Alexandre, Gerson Borges e tantos outros que marcaram a música cristã brasileira nas décadas seguintes, nem conhecer a geração de artistas do Coletivo Candiero, que trouxe novo fôlego à nossa arte. Tampouco viveu para ver a fundação da SIC Bartão – Museu de Arte Cristã Contemporânea, em Cuiabá (2018), ou a Companhia de Teatro Nissi, de São Paulo, receber o Prêmio Bibi Ferreira por Rua Azusa (2019), e, depois, encenar Luther King – O Musical, aclamado dentro e fora do meio evangélico.

São exemplos modestos diante de um movimento que, segundo o Censo de 2022 do IBGE, já reúne 47,4 milhões de evangélicos – um grupo que carrega, cada vez mais, a responsabilidade de responder à antiga provocação de Gilberto Freyre.
Mais de meio século depois, Gerson Borges levantaria inquietações semelhantes em Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro (2016): “Para alguns, entrar na igreja é sair do Brasil... Nossos pastores não conhecem arte e nossos artistas não ligam para teologia. [...] Temos dificuldade de aceitar as manifestações culturais. Ao mesmo tempo, criamos versões ‘cristãs’ de quase tudo e batizamos de ‘gospel’. Para não sermos mundanos, copiamos – e mal – em nossos guetos o mundo. [...] Ser evangélico não é romper com a identidade nacional, mas redescobrir a música, a poesia e a literatura nacional.”3
Borges descreve o que Freyre já afirmava: o protestantismo brasileiro ainda não aprendeu a ser brasileiro. Falta-lhe chão, linguagem e imaginação. Por zelo, o cristão brasileiro acabou se distanciando da própria terra; por medo de parecer “mundano”, trocou a transformação cultural pela fuga. O resultado é uma fé que se define mais pelo que nega do que pelo que afirma. Ele lembra, citando Gedeon Alencar, que “tornamo-nos conhecidos pelo que somos proibidos de praticar” e que “os primeiros convertidos no Brasil passaram a não viver, porque romperam com a sua cultura. Passaram a ser pessoas estranhas.”4 Essa “cultura da negação” produziu uma fé que trocou a graça pelo legalismo e a encarnação pela alienação.
“Quero, portanto, um cristianismo de matriz e identidade nitidamente evangelicais – Cristo/cruz, conversão/novo nascimento, Bíblia/evangelho e engajamento social/missão, uma fé íntegra e inteiramente relevante, que não seja desprezada pela cultura brasileira, pois uma fé assim nunca foi nem nunca será desprezível.”5
Essa fé íntegra e relevante é, em certo sentido, a resposta que Freyre esperava: um cristianismo que não copie, mas crie; que não apenas reaja à cultura, mas participe dela. O evangelho floresce quando o cristão cultiva – quando compõe, ensina, trabalha e constrói. O Brasil não precisa de uma igreja que o negue, mas de uma igreja que o ame até o fim, que veja a cidade como campo de missão, ouça seu povo e se envolva com suas dores.
Se Freyre lamentava não ter visto surgir um artista evangélico de gênio, Borges responde que o gênio pode ser coletivo: uma comunidade inteira redescobrindo o sentido de criar diante de Deus. Essa fé precisa redescobrir o prazer de ser brasileira. Isso não é superficialidade, é obediência ao chamado encarnacional. Cristo não apenas veio ao mundo; veio a uma cultura, a uma língua, a um lugar. A verdadeira espiritualidade, portanto, não nega o chão, mas o santifica.
Essa visão também encontra eco na obra Arte e Espiritualidade – O Cristão e a Cultura Brasileira (2022), de Rodolfo Amorim, Marcos Almeida e Davi Lago. Os autores apresentam um olhar histórico, sociológico e teológico sobre o país, a partir de uma fé que não se limita ao culto e de uma cultura que reconhece o transcendente.
“Consideraremos o Brasil na presente obra simultaneamente como lar e caminho. O Brasil é lar, pois ser brasileiro é admitir que parte significativa de nossa formação identitária e ‘habitação’ cultural se dá a partir dos desdobramentos históricos específicos daquela entidade que se convencionou chamar Brasil. [...] Todo cristão deve reconhecer que sua identidade nacional, ou étnica, é parte substancial do que somos como humanos diante do Criador.”6
A imagem do “lar e caminho” ajuda a corrigir dois extremos: o da rejeição e o da idolatria cultural. O Brasil é lar, porque nele se enraízam nossas memórias, nossa língua e nossa imaginação. É nesse espaço concreto que aprendemos a viver a fé de forma encarnada, entre tensões e belezas. Mas o Brasil também é caminho, porque nenhuma identidade cultural é definitiva. “Reconhecer nossa identidade e contexto nacional como lar deve ser sopesado pelo elemento de prioridade do reino eterno e universal de Cristo. [...] O Brasil é caminho, pois consideramos que o elemento de brasilidade presente em cada um de nós, brasileiros, não é fundante de nossas identidades. E o Brasil, enquanto entidade sociocultural, não coincide com o ideal cultural postulado por Deus discernível em seus atos redentivos revelados.”7
Essa visão protege a fé tanto do isolamento quanto da diluição. Ela nos permite amar o país sem absolutizá-lo e reconhecer sua riqueza sem negar suas feridas. Escutar o Brasil é, em si, um ato de obediência cristã. A cultura não é obstáculo à fé, mas o campo onde Deus nos chama a servir. Se, como afirmou Abraham Kuyper, “não há um único centímetro quadrado em todo o domínio da nossa existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’”, então o Brasil também pertence a Ele — com suas contradições, mas também com sua graça, sua arte e seu povo.
“O Brasil, sob a ótica cristã, reflete não somente a vontade criacional de Deus, de povoar toda a terra com sua imagem em expressões ricas de diversidade e criatividade, mas também sua vontade redentiva de povoar a eternidade com pessoas de todas as nações, tribos, povos e línguas.”8
Nessa perspectiva, ser brasileiro deixa de ser um mero acaso histórico e se torna vocação. O cristão é chamado a viver com responsabilidade em sua nação, buscando o bem comum e ajudando a reordenar os amores que moldam nossa sociedade.
Agostinho definia um povo como “o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados.”9 Quando esses amores se desordenam, a sociedade se corrompe; quando são guiados pela justiça, floresce. “Somente pessoas virtuosas, com amores reordenados [...] podem cooperar para que a comunidade nacional desfrute do bem comum em uma reorientação orgânica de seus amores.”10
Obras de arte que expressam verdade e beleza, leis justas, tecnologias e ciências que sirvam à vida e igrejas que formem cristãos maduros fazem parte de uma espiritualidade que se manifesta no dia a dia.
A semente que Freyre viu ainda cresce: a de um cristianismo capaz de florescer no solo brasileiro. Nossa esperança não está em importar modelos, mas em cultivar, nesta terra, uma fé viva – capaz de rir e chorar com o país, de acolher sua beleza e confrontar sua corrupção, de ver no samba e no silêncio, na feira e no templo, na arte e na compaixão, reflexos do Deus que habita entre nós.
Ser cristão no Brasil é habitar o presente com fidelidade e caminhar com esperança, amando o lar que recebemos e mantendo os olhos no Reino que virá. Pois “em Cristo Jesus recebemos nossa nação como parte do que somos e recebemos, simultaneamente, o ideal a que almejamos e em direção ao qual caminhamos. Temos a nação brasileira como lar e caminho.”11
Notas
1. FREYRE, Gilberto. In: CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL. Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Vol. II. p. 59.
2. FREYRE, Gilberto. O artista: servo dos que sofrem. In: CONFEDERAÇÃO EVANGÉLICA DO BRASIL. Cristo e o processo revolucionário brasileiro. Vol. II. p. 62.
3. BORGES, Gerson. Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro. Viçosa: Ultimato, 2016. (Citação da sinopse).
4. ALENCAR, Gedeon. Protestantismo tupiniquim. São Paulo: Arte Editorial, 2005. p. 70–71. Apud: BORGES, Gerson. Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro. Viçosa: Ultimato, 2016. Nota 114.
5. BORGES, Gerson. Op. cit. Nota 181.
6. AMORIM, Rodolfo; ALMEIDA, Marcos; LAGO, Davi. Arte e espiritualidade: o cristão e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. p. 12–13.
7. Ibid., p. 14.
8. Ibid., p. 13.
9. AGOSTINHO. A cidade de Deus contra os pagãos. Parte II (Livros XI a XXII). Petrópolis: Vozes, 2017. Livro XIX, cap. XXIV.
10. AMORIM; ALMEIDA; LAGO. Op. cit. p. 547.
11. Ibid., p. 543–544.
- Medson Barreto, escritor, ator, palestrante e cofundador do Vitral Podcast.
A fé cristã no contexto brasileiro é um tema recorrente no Vitral Podcast. Para conhecer mais sobre o assunto, recomendamos a palestra “O Cristão e a Cultura Brasileira”, ministrada por Rodolfo Amorim no Vitral na Cidade, em março de 2024. Acesse aqui.
Imagem: Quermesse, Anita Malfatti. CMMECPC.
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Ao longo de mais de 10 páginas, o leitor vai encontrar parte das palestras do 10ª edição do Congresso Brasileiro de Missões (CBM 2025), que aconteceu em outubro, em Águas de Lindóia, SP, e lerá, no "Especial", um painel com uma avaliação ampla e crítica do movimento missionário brasileiro.
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