Opinião
03 de setembro de 2025- Visualizações: 4981
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Gafanhotos despidos
Para um viver, outro deve morrer. Para um continuar, outro deve ficar. Para um crescer, outro deve doar
Por Julia Gomes
Dia claro, sol nada tímido, calor fumegante no campus de uma universidade do interior paulista. Como uma boa bióloga, eu estava a caçar gafanhotos para meu insetário para a disciplina de invertebrados. Enquanto caminhava vasculhando cantos entre touceiras de matos, o Espírito Santo falava comigo e me trouxe à memória um diálogo que tive com a professora Maria Virgínia.
Metamorfose. A maioria dos insetos passa por este processo para chegar à vida adulta, para tornar-se maduro. Alguns, mais de uma vez. São trocas e trocas de mudas (como chamamos o tecido que o inseto troca) para que ele possa crescer. A cada vez que seu corpo pede para crescer, o inseto se despe a fim de revestir-se do novo. Mas quando, enfim, o inseto torna-se maduro, reveste-se de sua última muda e pode ser chamado de indivíduo adulto, ele morre, pois é efêmero. Ora, insetos adultos duram, em geral, semanas. Alguns, apenas dias.
Soou-me cruel essa perspectiva de vida. Qual o propósito destes seres de três pares de pernas? Questionei minha professora: “Qual, então, o papel maior destes animais no ecossistema e por que morrerem no auge não causa danos ao ambiente?”. Virgínia refletiu como quem recobra os anos de experiência acadêmica, sorriu e disse: “Julia, eles servem de comida para outros seres vivos”.
Agachada, abrindo o mato com as mãos, pensei: estou buscando um animal cujo propósito final, após todo o processo de metamorfose, é ser entregue para que outro possa sobreviver. Ironicamente eu, mamífera que sou, primata ostentando cérebro desenvolvido com a capacidade de abstrair, estava tendo aulas com os pequeninos gafanhotos que procurava.
A verdade é que por detrás de todo o equilíbrio que tece a história natural da vida na Terra existe uma lei para a qual pouco atentamos, mas que nos mantém vivos e cuja delicada harmonia depende e reside: para um sobreviver, outro precisa ser entregue e morrer. C. S Lewis, grande pensador do século 20 nos explica que a realidade natural expõe o que ele chamou de Princípio da Vicariedade:
“A autossuficiência, que é viver com os próprios recursos, é algo impossível em seu reino. Todas as coisas estão em dívida com todas as outras, são sacrificadas a todas as outras, são dependentes de todas as outras. E também aquidevemos reconhecer que o princípio em si mesmo não é nem bom nem ruim. O gato vive com o rato de uma maneira que acho ruim; as abelhas com as flores convivem de uma maneira mais agradável. O parasita vive em seu hospedeiro, mas também o feto em sua mãe”. 1

Irei além. Isso é expresso nas estações do ano, na morte do inverno ao renascimento da primavera, na juventude inebriante do verão aos frutos maduros de outono, nas relações de teias alimentares, toda vez que estamos a mesa com pratos fartos. Animais precisam comer, mesmo que sejam plantas (ora, plantas são seres vivos!). Para um viver, outro deve morrer. Para um continuar, outro deve ficar. Para um crescer, outro deve doar.
Aqueles gafanhotos que passei o dia procurando estavam entregando suas vidas. Não a mim, pois eu sofri para os encontrar. Mas talvez a outro animal mais sortudo e que estivesse precisando daquelas criaturas. Pergunto-me: estamos vivendo para doar ou para receber? Para nutrir ou consumir outros? Aprendemos que devemos amadurecer e, segundo estes insetos, nos despir para colocar vestes que nos servem a fim de crescer.
Contudo, a diferença da finalidade do amadurecimento de um ser humano e de inseto é marcada pelo benefício próprio. Nossa espécie quer crescer a qualquer custo, não para doar, mas para sugar ainda mais. Não para ser entregue, mas para receber. Não para morrer, mas para sobreviver. Quando foi que, como células cancerígenas, esquecemos de morrer?
Entenda, não quero comparar nosso Cristo Vicário de igual para igual com um gafanhoto. Mas permita-me esta abstração. O Princípio da Vicariedade na natureza conta a narrativa divina. Nosso Criador se esvaziou ao tornar-se criatura; porém, ao crescer num corpo de criança, nosso Deus tornou-se homem maduro não como esperavam, o vingador hebreu, o rei político-militar dos judeus. Não. Ele foi despido de sua muda divina, estando mortalmente vulnerável e cravado no madeiro para sua última metamorfose, a morte para o benefício de muitos.
Cristo, na última ceia com os seus discípulos, expressou a Vicariedade como um memorial: “Enquanto comiam, Jesus pegou o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: ‘Peguem e comam; isto é o meu corpo’” (Mt 26.26). Peguemos e comamos. Maturidade não é autossuficiência, dependemos daqueles que nos nutrem até aqui e certamente dependeremos uns dos outros para viver até o fim. Todavia, não podemos cair no outro erro de pensar que, porque Ele se esvaziou e encarou a morte, nós não teremos de fazê-lo. Ele preparou o caminho. Ele nos chama a carregar um madeiro e a morrermos (Lc 9.23). Somos chamados a nos despir, nos vulnerabilizarmos, passar pela metamorfose, porque somente quem morre experimenta ressurreição e será revestido de vestes novas (2Co 5.2).
A vicariedade estampada em gafanhotos despidos que serão devorados logo após sua maturidade se aplica a nós, exortando-nos à entrega total. Ensina que nenhuma vida é tão pequena que não possa ser útil e nutritiva. Assim, nossa vida deve ser nutriente para o próximo; e a maturidade não deve ser um fim em si mesma, mas um meio para estar pronto para doar-se em benefício de outrem, para saciar. Pois aquele que se doa imaturo ainda não tem muito a oferecer, muito custa entregar quem muito tem a dar. Esse é o exemplo do Criador, que no ápice de seu terreno viver, tudo entregou.
Nota
1 LEWIS, C. S. Milagres. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. p. 175.
Versão ampliada do artigo Gafanhotos despidos, publicado na edição 415 de Ultimato.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDO
Jesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Expiação – Culpa, Perdão e o Sacrifício de Cristo, Eleonore Stump
Por Julia Gomes
Dia claro, sol nada tímido, calor fumegante no campus de uma universidade do interior paulista. Como uma boa bióloga, eu estava a caçar gafanhotos para meu insetário para a disciplina de invertebrados. Enquanto caminhava vasculhando cantos entre touceiras de matos, o Espírito Santo falava comigo e me trouxe à memória um diálogo que tive com a professora Maria Virgínia.Metamorfose. A maioria dos insetos passa por este processo para chegar à vida adulta, para tornar-se maduro. Alguns, mais de uma vez. São trocas e trocas de mudas (como chamamos o tecido que o inseto troca) para que ele possa crescer. A cada vez que seu corpo pede para crescer, o inseto se despe a fim de revestir-se do novo. Mas quando, enfim, o inseto torna-se maduro, reveste-se de sua última muda e pode ser chamado de indivíduo adulto, ele morre, pois é efêmero. Ora, insetos adultos duram, em geral, semanas. Alguns, apenas dias.
Soou-me cruel essa perspectiva de vida. Qual o propósito destes seres de três pares de pernas? Questionei minha professora: “Qual, então, o papel maior destes animais no ecossistema e por que morrerem no auge não causa danos ao ambiente?”. Virgínia refletiu como quem recobra os anos de experiência acadêmica, sorriu e disse: “Julia, eles servem de comida para outros seres vivos”.
Agachada, abrindo o mato com as mãos, pensei: estou buscando um animal cujo propósito final, após todo o processo de metamorfose, é ser entregue para que outro possa sobreviver. Ironicamente eu, mamífera que sou, primata ostentando cérebro desenvolvido com a capacidade de abstrair, estava tendo aulas com os pequeninos gafanhotos que procurava.
A verdade é que por detrás de todo o equilíbrio que tece a história natural da vida na Terra existe uma lei para a qual pouco atentamos, mas que nos mantém vivos e cuja delicada harmonia depende e reside: para um sobreviver, outro precisa ser entregue e morrer. C. S Lewis, grande pensador do século 20 nos explica que a realidade natural expõe o que ele chamou de Princípio da Vicariedade:
“A autossuficiência, que é viver com os próprios recursos, é algo impossível em seu reino. Todas as coisas estão em dívida com todas as outras, são sacrificadas a todas as outras, são dependentes de todas as outras. E também aquidevemos reconhecer que o princípio em si mesmo não é nem bom nem ruim. O gato vive com o rato de uma maneira que acho ruim; as abelhas com as flores convivem de uma maneira mais agradável. O parasita vive em seu hospedeiro, mas também o feto em sua mãe”. 1

Irei além. Isso é expresso nas estações do ano, na morte do inverno ao renascimento da primavera, na juventude inebriante do verão aos frutos maduros de outono, nas relações de teias alimentares, toda vez que estamos a mesa com pratos fartos. Animais precisam comer, mesmo que sejam plantas (ora, plantas são seres vivos!). Para um viver, outro deve morrer. Para um continuar, outro deve ficar. Para um crescer, outro deve doar.
Aqueles gafanhotos que passei o dia procurando estavam entregando suas vidas. Não a mim, pois eu sofri para os encontrar. Mas talvez a outro animal mais sortudo e que estivesse precisando daquelas criaturas. Pergunto-me: estamos vivendo para doar ou para receber? Para nutrir ou consumir outros? Aprendemos que devemos amadurecer e, segundo estes insetos, nos despir para colocar vestes que nos servem a fim de crescer.
Contudo, a diferença da finalidade do amadurecimento de um ser humano e de inseto é marcada pelo benefício próprio. Nossa espécie quer crescer a qualquer custo, não para doar, mas para sugar ainda mais. Não para ser entregue, mas para receber. Não para morrer, mas para sobreviver. Quando foi que, como células cancerígenas, esquecemos de morrer?
Entenda, não quero comparar nosso Cristo Vicário de igual para igual com um gafanhoto. Mas permita-me esta abstração. O Princípio da Vicariedade na natureza conta a narrativa divina. Nosso Criador se esvaziou ao tornar-se criatura; porém, ao crescer num corpo de criança, nosso Deus tornou-se homem maduro não como esperavam, o vingador hebreu, o rei político-militar dos judeus. Não. Ele foi despido de sua muda divina, estando mortalmente vulnerável e cravado no madeiro para sua última metamorfose, a morte para o benefício de muitos.
Cristo, na última ceia com os seus discípulos, expressou a Vicariedade como um memorial: “Enquanto comiam, Jesus pegou o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: ‘Peguem e comam; isto é o meu corpo’” (Mt 26.26). Peguemos e comamos. Maturidade não é autossuficiência, dependemos daqueles que nos nutrem até aqui e certamente dependeremos uns dos outros para viver até o fim. Todavia, não podemos cair no outro erro de pensar que, porque Ele se esvaziou e encarou a morte, nós não teremos de fazê-lo. Ele preparou o caminho. Ele nos chama a carregar um madeiro e a morrermos (Lc 9.23). Somos chamados a nos despir, nos vulnerabilizarmos, passar pela metamorfose, porque somente quem morre experimenta ressurreição e será revestido de vestes novas (2Co 5.2).
A vicariedade estampada em gafanhotos despidos que serão devorados logo após sua maturidade se aplica a nós, exortando-nos à entrega total. Ensina que nenhuma vida é tão pequena que não possa ser útil e nutritiva. Assim, nossa vida deve ser nutriente para o próximo; e a maturidade não deve ser um fim em si mesma, mas um meio para estar pronto para doar-se em benefício de outrem, para saciar. Pois aquele que se doa imaturo ainda não tem muito a oferecer, muito custa entregar quem muito tem a dar. Esse é o exemplo do Criador, que no ápice de seu terreno viver, tudo entregou.
Nota
1 LEWIS, C. S. Milagres. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. p. 175.
- Julia Gomes, 22 anos, é graduanda em ciências biológicas pela UFSCar. Ama C. S. Lewis, café e a criação. @prosasprosaicas
Versão ampliada do artigo Gafanhotos despidos, publicado na edição 415 de Ultimato.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDOJesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
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