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Opinião

A casa de Davi – A difícil tarefa de adaptar narrativas bíblicas para as telas

Quem a assistir não poderá se esquecer de que se trata de uma adaptação, e, como tal, cheia de licenças poéticas

Por Carlos Caldas

A casa de Davi (House of David no original), disponível pelo canal de streaming Amazon Prime, como o próprio nome indica, é uma tentativa de adaptar para a televisão a narrativa sobre Davi, conforme encontrada nos livros de Samuel (1 e 2) e no início de 1 Reis. Por enquanto, há uma temporada com oito episódios com cerca de cinquenta minutos cada. Anunciou-se que a segunda temporada será disponibilizada nos Estados Unidos no outono de 2025 (algo entre setembro e novembro no Hemisfério Sul), mas, em um primeiro momento, disponível apenas para assinantes do Wonder Project, uma espécie de subplataforma da Amazon, liberada apenas para quem assina os dois canais1. Em um momento posterior, esta temporada migrará para a plataforma principal.

Davi é certamente um dos personagens mais conhecidos de toda a Bíblia. Um pastor de ovelhas e cabras da Idade do Ferro, isto é, cerca de mil anos antes de Jesus nascer (ou seja, há três mil anos) que contra todas as expectativas, viria a se tornar um rei. Sua narrativa tem muitas passagens dignas mesmo de um filme. É muito curioso observar que, no geral, as narrativas bíblicas são extremamente lacônicas. Em contraste, a narrativa de Davi é bastante longa, percorrendo muitos capítulos, pois vai de 1 Samuel 16, passa por todo o segundo livro de Samuel, alcançando os dois primeiros capítulos de 1 Reis. O caso de Davi é único na história bíblica. Ninguém recebeu tanta atenção dos narradores bíblicos como ele. Davi é um personagem complexo, com muitas camadas. Na verdade, o ciclo de Davi na narrativa bíblica é perfeito para adaptações cinematográficas. Quanto a isso, não se pode esquecer do clássico Davi e Betsabá, de 1951, com Gregory Peck e Susan Hayward nos papéis-título2. E a despeito de ser tão conhecido, muitas abordagens a ele são muito ingênuas e desatentas, pois definitivamente não prestam atenção ao que os textos bíblicos dizem a seu respeito. Muitas das descrições de Davi que circulam à farta, especialmente em círculos evangélicos, baseiam-se em leituras superficiais e ingênuas de Atos 13.22, trecho de um sermão de Paulo em Antioquia, no qual o apóstolo se refere a Davi como “homem segundo o coração de Deus”. Esta expressão – “homem segundo o coração de Deus” – não aparece em nenhum lugar da Bíblia Hebraica. O que mais de perto se aproxima é 1 Sm 13.14: “O Senhor buscou para si um homem que lhe agrada”. Paulo no sermão citado em Atos 13 cita o texto da Septuaginta, não da Bíblia Hebraica. A versão dos 70 traz “homem segundo o seu (isto é, de Deus) coração”. A ideia da versão grega citada por Paulo é simplesmente que Deus escolheu Davi, e não que Davi tivesse virtudes e qualidades morais superiores, e por isso foi escolhido.

Outro aspecto a ser observado é que pouquíssimas vezes a Bíblia traz a descrição física de algum dos seus personagens. Exemplo clássico é Jesus – não há uma única palavra em todo o Novo Testamento que apresente alguma de suas características físicas. E assim é com praticamente todos os demais personagens, nos dois Testamentos. Curiosamente, na narrativa de 1 Samuel encontramos duas descrições físicas, uma, de Saul, outra, de Davi: de Saul é dito que ele era “moço e tão belo, que entre os filhos de Israel não havia outro mais belo do que ele; desde os ombros para cima, sobressaía a todo o povo” (1Sm 9.2). Davi é descrito como sendo “ruivo, de belos olhos e boa aparência” (1Sm 16.12) e “moço ruivo e de boa aparência” (1Sm 17.42). Nossa tendência é entender o “ruivo” como se referindo à cor do cabelo de Davi. No entanto, há um debate entre os biblistas quanto ao sentido exato da palavra hebraica אַדְמֹנִ֖י (admoni), que aparece apenas três vezes na Bíblia: Gn 25.25 (referindo-se a Esaú, irmão gêmeo de Jacó) e as duas já citadas passagens de 1 Samuel, que, como visto, referem-se a Davi. A palavra pode sim ser entendida como cabelo “vermelho”, mas pode ter a ver também com a cor da pele, no sentido de “corado”. Se é este o sentido empregado pelo autor da narrativa de Samuel, é de se supor que Davi tinha pele clara, pois é mais fácil perceber que uma pessoa é “corada” se ela for branca. Talvez os produtores não se atentaram para este detalhe, pois Michael Iskander, o ator egípcio escolhido para interpretar Davi, é moreno, de cabelo preto e olhos castanhos (poderia sem dificuldade passar por brasileiro). Mas o que mais me incomodou na série não é nem tanto a característica física de Iskander, mas sua atuação e o roteiro que lhe foi entregue para interpretar: ele atua de maneira muito inexpressiva, o que pode ser perdoado, se levar-se em conta que ele é ainda iniciante na arte da interpretação. Mas, para piorar, o roteiro não ajuda, pois o Davi que ele interpreta é um adolescente ingênuo e “sem noção”.



Mas há outros elementos na série que incomodam: o roteiro insere algumas situações que não existem no texto bíblico. Isto em si não chega a ser exatamente problemático, pois as narrativas bíblicas são muito lacônicas, econômicas em detalhes3. Por conta desta “laconicidade”, para fazer qualquer adaptação de passagem bíblica, para teatro, cinema ou TV, os roteiristas obrigatoriamente precisam enxertar diálogos e situações que não constam do texto bíblico4. Em A casa de Davi não é diferente, e nem poderia ser. Um exemplo: o roteiro da série apresenta as intrigas e armações de Ahinoam, a esposa de Saul, que faz de tudo para que seu marido permaneça no poder (Ahinoam é interpretada pela bela e talentosa atriz israelense Ayelet Zurer). Porém a “licença poética” mais ousada do roteiro está em sua apresentação de Golias: há muito tempo, na arte religiosa e no imaginário popular, o representante do exército filisteu é visto como tendo sido um gigante no sentido literal da palavra. O texto de 1 Samuel 17.4 na Bíblia Hebraica diz que sua estatura era de “seis côvados e um palmo”, o que equivale a cerca de três metros. Na versão grega, a Septuaginta (LXX), Golias não é tão alto assim, pois sua descrição o apresenta como tendo “quatro côvados e um palmo”, isto é, pouco mais de dois metros. Esta descrição parece ser a mais certa. Por que? Alguns indícios na narrativa apontam para esta direção. O texto havia dito que Saul era mais alto que todos em Israel do ombro para cima (a já mencionada passagem de 1 Samuel 9.2). Talvez Saul tivesse cerca de 1,90 m. Com a sutileza que lhe é peculiar, a narrativa bíblica está dizendo que, se havia alguém com a obrigação de enfrentar Golias em combate singular, este alguém tinha que ser Saul. No entanto, ele se acovardou, e não o fez. Mais tarde, o texto bíblico dirá que depois de Golias já derrubado pela pedrada que levou na testa, Davi pega a espada que pertencera ao filisteu, e com ela o decapitou (1Sm 17.51). Seria muito difícil levantar uma espada feita para um homem de três metros de altura, mas não tão difícil assim se ele não fosse tão alto.

E é por causa da altura de Golias que a série introduz um elemento bastante problemático: o roteiro leva ao pé da letra a interpretação que livro apócrifo de 1 Enoque (ou Enoque Etíope), de Gn 6.4: “naquele tempo havia נְּפִלִ֞ים – nefilim – na terra”. Quem foram estes seres enigmáticos? A Mensagem, Almeida Revista e Atualizada no Brasil, Tradução da CNBB, Tradução Ecumênica da Bíblia, Edição Pastoral e Bíblia do Peregrino traduzem “gigantes”. A Bíblia de Jerusalém e a NVI optaram por transliterar (nefilim na BJ e nefilins na NVI5). O texto do Gênesis não se preocupa em identificar ou descrever estes personagens. O 1 Enoque, escrito provavelmente no terceiro século antes de Cristo, interpreta “gigantes” no sentido literal, apresentando-os como seres híbridos, filhos de mães humanas com anjos que desobedeceram ao Criador. Esta é a linha seguida em A casa de Davi. É uma interpretação que tem apelo popular, mas que é bastante problemática, que tem mais a ver com a mitologia grega que com o pensamento bíblico. Maimônides, um sábio judeu do século 12, interpretou de maneira mais “pé no chão”: para o Rambam6, o texto critica e condena homens ricos e poderosos que abusaram de seu poder político e financeiro, e forçavam mulheres bonitas, mas pobres, a satisfazer seus desejos sexuais.

Em A casa de Davi há uma estranha família de gigantes, todos com uns 5 metros de altura (ou mais), filhos de uma senhora humana. Eles vivem isolados, e Doegue, o idumeu (ou edomita), a assassinou, para forçar Golias a lutar contra Israel. A propósito, Doegue na série é uma espécie de feiticeiro, algo que o texto bíblico não apresenta.

Outro problema da série: Saul e sua família são apresentados vivendo em um palácio, o que simplesmente não existe nos textos bíblicos. A narrativa de Samuel chama Saul de “rei”, mas ele na verdade foi mais um caudilho militar que um rei propriamente. Só a partir de Salomão o texto bíblico falará de palácios7.

Resumindo: a série é bom entretenimento. Quem a assistir não poderá se esquecer de que se trata de uma adaptação, e, como tal, cheia de licenças poéticas, algumas muito grandes. Nada poderá substituir a leitura e a meditação nas Escrituras. Afinal, “tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).

Notas
1. Anúncio publicado no Instagram oficial da House of David Brasil. Acesso: 09/09/25.
2. O filme está disponível em versão dublada em português no YouTube
3. O crítico literário alemão Erich Auerbach escreveu um ensaio que se tornou famoso, “A cicatriz de Ulisses”, no qual comparou as diferenças entre duas maneiras antigas de narrar, mais ou menos contemporâneas uma da outra, a saber, a hebraica e a grega. Como exemplo de narrativa hebraica, usou a passagem de Gn 22 (o “quase” sacrifício de Isaque), e da grega, o canto da Odisseia de Homero que apresenta a chegada de Ulisses em Ítaca, 20 anos depois de lá ter partido para a guerra de Troia: A cicatriz de Ulisses in Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. 6ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 1-20. Um dos elementos destacados por Auerbach nas narrativas bíblicas é justamente sua economia de detalhes.
4. Um exemplo: no já mencionado filme Davi e Betsabá, de 1951, há uma cena de um diálogo muito curioso e judicioso, no qual Betsabá pergunta ao rei: “É verdade que Golias era tão alto quanto dizem?” e Davi responde: “Confesso que ele fica maior a cada ano que passa”.
5. Em hebraico, o sufixo im é designativo do plural de substantivos masculinos. Logo, a forma correta do plural da palavra é nefilim, como está na Bíblia de Jerusalém, e não nefilins, como está na Nova Versão Internacional.
6. No judaísmo, Maimônides é conhecido pelo acrônimo Rambam – Rabino Mosheh ben Maimon (daí, Maimônides em português).
7. Devo esta observação ao biblista batista estadunidense Jorge Pixley, em seu livro História de Israel a partir dos pobres. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996.

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» Um Ano Com os Salmos – Meditações diárias, Elben César
» Salvos da Perfeição – Mais humanos e mais perto de Deus, Elienai Cabral Junior
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» O cartaz de Davi nas Escrituras, por Elben César
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 91 [ver]

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