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Opinião

Além de sangue e lágrimas, o Holocausto arrancou a fé de muitos

Por Elben César

A sofrida Polônia

Ao descer do avião no aeroporto de Cracóvia, o Mineiro com Cara de Matuto não beijou o chão como costuma fazer João Paulo II, o primeiro papa eslavo da história, nascido em Wadowice, pertinho dali, e que acaba de completar 83 anos. Mas fez questão de imprimir um tom solene ao pôr os pés na sofrida Polônia, localizada no centro geográfico da Europa, um país um pouco menor que o Maranhão, mas com uma população sete vezes e meia maior do que a desse estado brasileiro. Naquele mês, setembro de 2002, estava fazendo 63 anos que a Alemanha nazista invadira a Polônia (1o de setembro de 1939), dando início à Segunda Grande Guerra, que fez 55 milhões de mortos. Por que logo a Polônia, que já havia experimentado três partilhas na segunda metade do século 18 e havia deixado de existir como nação independente por longos 23 anos, de 1795 a 1918? Com a invasão de Hitler, a metade do país foi anexada à Alemanha e a outra, à antiga União Soviética, desaparecendo pela segunda vez do mapa europeu. Dois anos depois (maio de 1941), a Alemanha atacou a URSS e ocupou toda a Polônia, infligindo ao país, especialmente à população judaica, sofrimentos que marcaram a história do mundo. No curto período de seis anos, entre 1939 e 1946, morreram mais de 6 milhões de poloneses — 1 milhão por ano ou mais de 2.700 a cada dia. Antes da guerra havia 3,3 milhões de judeus, espalhados em 2.000 cidades e povoados da Polônia. No censo de 1945, restavam menos de 74 mil em apenas 224 localidades.

Aquele solo sobre o qual o Mineiro pisou é a pátria do astrônomo que teve a coragem de contestar a tese de Ptolomeu, que considerava a Terra como o centro do universo. Nicolau Copérnico (1473-1543) foi contemporâneo da Reforma. Poloneses eram também os extraordinários músicos Frederic Chopin (1810-1849) e Inace Paderewski (1860-1941), o Nobel de química de 1919 Marie Sckdolowska Curie (1867-1934), casada com o francês Pierre Curie, e o Nobel de literatura de 1903 Henry Sienkiewcz (1846-1916). Foi esse último que escreveu, aos 49 anos, o mais conhecido romance que retrata os cristãos na época de Nero, o famoso Quo Vadis? Dessas mentes especiais nasceram o polônio (o elemento radioativo encontrado no urânio pelo casal Curie) e as polonaises (composições de Chopin com o ritmo das danças rítmicas da Polônia).

Eram dez pessoas num apartamento de 52 metros quadrados, fora as malas do Mineiro e as malas da família Schreimer. Fora também os móveis da casa. Belarmino, o hospedeiro, se lembrou da recomendação de Paulo de que “o encarregado da obra de Deus” deve ser hospitaleiro e deve ter domínio próprio (Tt 1.8). Ana Maria, a esposa, calada e com um sorriso nos lábios, começou a recitar mentalmente a passagem bíblica talvez confortante para aquele momento: “Não deixem de receber bem aqueles que vêm à casa de vocês; pois alguns que foram hospedeiros receberam anjos, sem saber” (Hb 13.2, NTLH). O casal esperava apenas o Mineiro, mas, na última hora, chegaram também os Schreimer.

O apartamento fica num conjunto habitacional de Zawiercie, uma cidade de 55 mil habitantes, a 75 quilômetros de Cracóvia, no sul da Polônia. O Mineiro sentia-se envaidecido ao lado de missionários brasileiros no leste europeu. Belarmino e Ana Maria Gonçalves foram enviados pela Missão Antioquia e estão na Polônia há quase 5 anos. O casal organizou e dirige uma casa de recuperação para alcoólatras e mendigos. Fundaram também uma creche para crianças pobres, agora provisoriamente fechada por falta de pessoal crente e capacitado (uma porta aberta para um casal brasileiro verdadeiramente vocacionado para esse tipo de ministério). Belarmino pastoreia a única igreja evangélica da cidade. O gaúcho Paulo Eduardo Schreimer e a esposa são missionários na Ucrânia, enviados pela Assembléia de Deus de Belo Horizonte. Antes de ser missionário, Paulo Eduardo, de ascendência alemã, era representante de várias fábricas de sapatos do Rio Grande do Sul. A família encontrava-se na Polônia para renovar seus vistos de permanência na Embaixada da Ucrânia, em Cracóvia. Os Gonçalves têm dois filhos e os Schreimer, três.

“Só para orar”
Em Cracóvia, que foi capital da Polônia por quase três séculos (1308-1596), o Mineiro, em companhia de Belarmino e Paulo Eduardo, gastou um tempão visitando o castelo real e o museu da Catedral de Wawel. Ali, o Mineiro comprou os três volumes de Wawel 1000-2000 – The Treasures of Archdiocese of Cracow. No volume 3 há 694 fotografias da melhor qualidade de peças e quadros religiosos de grande beleza, inclusive uma grande variedade de cruzes. Um dos quadros data de 1780 e mostra Maria, e não Jesus, pisando a cabeça da serpente (Gn 3.15).

Enquanto tomavam um pequeno lanche no pátio interno entre o museu e a histórica catedral, uma das muitas pombas que havia por ali pousou sobre a cabeça do Mineiro. Os dois missionários brasileiros, ambos pentecostais, aproveitaram a oportunidade para mexer com o Mineiro.

Na Praça da Feira, no centrão de Cracóvia, um quinteto (violino, violoncelo, acordeão, trompete e clarineta) tocava músicas típicas da Polônia. O mais velho, de vez em quando, encostava o violino e dançava com as mulheres que paravam para ouvir a música. Pouco além, um trompetista executava a Ave Maria, de Charles Gounod, acompanhado por um teclado. Ao redor da praça ficam a Igreja de Maria e outros templos católicos. Na entrada da primeira havia um cartaz com o seguinte aviso: “Só para orar”. Padres de batina e freiras de hábito circulavam em grande número pela praça.

Foi ali que o Mineiro conheceu o ex-padre polonês Tomasz Pieczko, que se desgostou da Igreja Católica e tornou-se reformado. Trata-se de um jovem muito culto, poliglota e casado (a esposa é católica carismática), que não abandonou o ideal do ministério. Tomasz está cursando a Faculdade Teológica Reformada em Aix-en Provence, na França. Durante algum tempo trabalhou para o governo na reabilitação de dependentes de drogas e álcool. A conversa previamente marcada durou mais de uma hora. Para encerrar o bate-papo, Tomasz pediu ao Mineiro que fizesse uma oração.

O Novo Testamento oferecido pelo papa
Embora esteja num continente que vive há muito tempo um processo de descristianização, a Polônia é muito católica e tem fama de ser a igreja mais leal ao papa. É o único país europeu em que o número de padres não está declinando. Da última metade da década de 1970 à primeira metade da década seguinte, houve um aumento de um terço de ordenações sacerdotais. A tradição missionária da Igreja Católica polonesa é famosa. Atualmente há 1993 missionários poloneses ao redor do mundo, quase a metade na África (43,8%). Curiosamente, há mais missionários poloneses do sexo masculino (70,7%) do que do sexo feminino (29,3%). Só no Brasil há 243 padres e 11 irmãos poloneses como missionários. A porcentagem de protestantes na Polônia é muito pequena. Na primeira metade do século 16, o movimento da Reforma alcançou a Polônia, mas foi logo sufocado pela Companhia de Jesus.

Naquela mesma manhã, o Mineiro recebeu a visita de Marek Handrysik, de 37 anos, fundador e presidente da Associação para a Divulgação do Pensamento da Reforma. Ele e a esposa são membros de uma igreja evangélica em Palowice, nas redondezas de Cracóvia. A organização que ele dirige já publicou uma das obras de Lutero e pretende publicar as Institutas, de Calvino. Filho de uma família católica não praticante, Marek tornou-se quase ateu aos 17 anos. Influenciado pelo filme Guerra nas Estrelas, resolveu aderir ao bem e rejeitar o mal, mas, na prática, pendia mais para o mal do que para o bem. As coisas começaram a mudar quando Marek recebeu da professora um Novo Testamento com a dedicatória do papa. A conversão aconteceu no dia de Pentecostes de 1984 numa igreja católica de Gliwice, durante uma vigília noturna do grupo carismático. O padre o ajudou a entender o sacrifício vicário de Jesus. Mais tarde, Marek saiu do movimento carismático católico e ingressou numa igreja pentecostal protestante e daí para uma igreja reformada não pentecostal. Ele quer muito servir a Deus na Polônia.

Auschwitz
Não se pode ir à Polônia sem visitar Auschwitz — “o lugar mais notório de genocídio da história e a maior sepultura coletiva do mundo”. O Mineiro passou a tarde inteira de 18 de setembro no mais famoso campo de concentração da Segunda Guerra.

As lembranças estão ali, em salas enormes e envidraçadas. Numa delas havia uma montanha de cabelos. Em outras, vários objetos de uso pessoal, como pentes, escovas, sapatos, roupas, panelas e outros utensílios de cozinha. Havia também próteses dentárias e muletas. A maior parte das roupas era de crianças. Diante da sala onde só havia malas, o Mineiro fez questão de anotar o nome e a procedência de alguns de seus proprietários: Klara e Sara Fochtmann (de Viena), Herman Pasternak e Irene Bermann (de Hamburgo) e Marie Kafka (de Praga). Esta última era irmã do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Ela e mais duas irmãs morreram em Auschwitz.

Nos enormes corredores, havia centenas e centenas de fotos daqueles que foram levados para esse campo de extermínio. Embaixo estavam o nome e as datas do nascimento, do confinamento e da morte de cada um. Numa busca não muito cuidadosa, o Mineiro encontrou o nome das duas vítimas mais jovens. Zbignien Jedrszazyk nasceu em 15 de janeiro de 1922, foi levado para o campo em 25 de abril de 1942 (aos 20 anos) e para a câmara de gás em 27 de maio de 1942 (no mês seguinte). O caso de Seweryn Cluszeaki é mais trágico: ele foi morto um dia depois de completar 17 anos (20 de junho de 1942). A detenta nº 22.166 (Katarzyna Filipin) morreu aos 22 anos, um mês e 13 dias depois de internada.

A mesma sorte teve a mãe do cardeal Jean-Marie Lustiger, atual arcebispo de Paris e um dos possíveis sucessores de João Paulo II. Ela era judia e polonesa. Vinte anos depois de tornar-se cristã e oito anos depois de tomar o hábito, a freira alemã de origem judia Edith Stein (1891-1942) morreu na câmara de gás aos 51 anos. A religiosa era doutora em filosofia. O que aconteceu com o franciscano Maximiliano Kolbe (1894-1941) em Auschwitz ilustra o sacrifício vicário de Jesus: ele se ofereceu para morrer em lugar de outro condenado, porque este era casado e tinha oito filhos. Para compensar a fuga de um preso, os nazistas suspenderam a comida e a água de dez homens que viviam na mesma barraca. Após dez dias de sofrimento, todos morreram, exceto Kolbe. Então lhe aplicaram uma injeção de veneno. Esse padre era professor do Seminário de Cracóvia e homem de vasta cultura e visão missionária.

Entre os sobreviventes de Auschwitz estão a mãe e a avó do cosmonauta israelense Ilan Ramon, morto no dia 1º de fevereiro deste ano, na explosão do Columbia, e o escritor húngaro Imre Kertész, que ganhou no ano passado o Nobel de Literatura. Um dos mais notáveis sobreviventes é o escritor e psiquiatra Viktor E. Frankl, de Viena, fundador da logoterapia, também chamada de “a terceira escola vienense de psicoterapia”. Embora ele mesmo e uma irmã tenham sobrevivido, Frankl perdeu quase toda a família em campos de concentração e crematórios: o pai, a mãe, o irmão e a esposa.

Enquanto percorria aqueles prédios de dois andares (fora o sótão) monotonamente iguais e as ruas de Auschwitz, o Mineiro se lembrou de Bella Herson, a judia polonesa que veio para o Brasil em 1949 e que ele visitou e entrevistou em São Paulo no final de 1998. Bella é doutora em história pela USP e autora de Cristãos Novos e Seus Descendentes na Medicina Brasileira (1500-1850). No dia 6 de maio de 2003, em São Paulo, ela lançou Tamara Conta a sua História, que narra a história de sobrevivência da própria autora em meio aos perigos e dificuldades de guerra na Polônia. Até hoje, quase 60 anos depois de ter sido levada do gueto de Litzmanntadt para Auschwitz, Bella acorda à noite com pesadelos, vendo-se num trem de carga com dois pequenos netos a caminho do campo de concentração.

O Mineiro viu coisas mais sinistras ainda naquela tarde sem sol. Por exemplo, documentos mostrando as experiências médicas realizadas pelo jovem médico Josef Mengele, o “médico selecionador”, aquele que esperava a chegada de cada trem e ali mesmo separava os que deveriam ir diretamente para as câmaras de gás. Formado em medicina em 1938, Mengele tornou-se médico-chefe de Auschwitz em 1943, aos 32 anos. Foi um dos muitos criminosos nazistas que conseguiu fugir. Veio para a Argentina com documentos falsos e teria morrido afogado aqui no Brasil em 1979. Na saída daquele sítio que retrata o ápice da maldade humana, o Mineiro viu os crematórios e a forca onde Rudolf Höss, chefe do campo de Auschwitz desde 1940, morreu 17 anos depois. Criado na Igreja Católica, Höss perdeu a fé com a idade de 16 anos e mais tarde tornou-se membro do partido nazista.

Embora as principais vítimas tenham sido os judeus — dois terços da população judaica européia e um terço dos judeus do mundo inteiro — o Holocausto eliminou também ciganos, deficientes físicos e mentais, homossexuais, testemunhas de Jeová (por serem pacifistas) e adversários políticos (especialmente comunistas).

O Mineiro não consegue entender por que o arcebispo de Porto Alegre, Dom Dadeus Grings, em artigo recente, chocou a comunidade judaica brasileira ao afirmar que o Holocausto teria deixado 1 milhão de judeus mortos, quando todos afirmam que foram 6 milhões, inclusive o historiador americano Roderich Stackelberg, em seu livro A Alemanha de Hitler (p. 318), publicado no ano passado no Brasil pela Imago. Em carta à Folha de São Paulo (20/3/03), Ben Abraham, vice-presidente da Associação Mundial das Vítimas do Nazismo e presidente da Associação Brasileira dos Sobreviventes do Nazismo, residente em São Paulo, contestou Grings, lembrando que, no processo de Nuremberg (1945), os principais promotores mencionaram 5,979 milhões de judeus assassinados pelos nazistas. (Em 1970, Ultimato publicou um artigo do atual arcebispo de Porto Alegre sobre a volta de Jesus.)

Além do sangue e das lágrimas derramadas, o Holocausto arrancou a fé de muita gente. A já citada Bella Herson confessou abertamente à revista Ultimato que “enterrou Deus em Auschwitz”. (A entrevista “O maior cemitério judaico do mundo” foi publicada na edição de nov./dez. de 1998). Outro sobrevivente do Holocausto teria dito: “Deus me deve uma explicação”.

De 1940 a 1945, o nazismo assassinou mais de 1 milhão de pessoas em Auschwitz, 90% das quais eram judias. O acampamento foi transformado em um enorme museu, que cobre quase 200 hectares, 150 edifícios e ruínas de outros 300. Até a linha de trem que transportava os judeus de toda a Europa conquistada pelos alemães a Auschwitz está preservada. É o seu mais triste cartão de visita!

• Artigo publicado originalmente na edição 282 da revista Ultimato.

Elben Magalhães Lenz César foi o fundador da Editora Ultimato e redator da revista Ultimato até a sua morte, em outubro de 2016. Fundador do Centro Evangélico de Missões e pastor emérito da Igreja Presbiteriana de Viçosa (IPV), é autor de, entre outros, Por Que (Sempre) Faço o Que Não Quero?, Refeições Diárias com Jesus, Mochila nas Costas e Diário na Mão, Para (Melhor) Enfrentar o Sofrimento, Conversas com Lutero, Refeições Diárias com os Profetas Menores, A Pessoa Mais Importante do Mundo, História da Evangelização do Brasil e Práticas Devocionais. Foi casado por sessenta anos com Djanira Momesso César, com quem teve cinco filhas, dez netos e quatro bisnetos.
  • Textos publicados: 115 [ver]

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