Opinião
13 de outubro de 2025- Visualizações: 1472
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Onicoerência: Um atributo divino integrador – Parte 2
A onicoerência não é apenas atributo divino – é vocação humana. É o convite a deixar de ser fragmento e tornar-se testemunho
Por Wolodymir (Wolô) Boruszewski
Resumo da Parte 1
Preâmbulo
Dois momentos de louvor perfeito se destacam na vida de Jesus Cristo: o primeiro, quando crianças cantam espontaneamente Hosanas ao Filho de Davi, e o segundo, quando Jesus exulta no Espírito e agradece ao Pai por revelar verdades aos pequeninos. A ternura das crianças louvando sem cálculos e a alegria compartilhada da Trindade mostram que a coerência divina é expressa na simplicidade e na alegria. Esses exemplos nos ensinam a evitar a soberba e a valorizar a graça de ter nossos nomes escritos nos céus, proclamando as virtudes de quem nos amou.
I. Introdução: Onicoerência como ponte entre os atributos divinos
Desde os primórdios da teologia cristã, os atributos divinos são classificados em comunicáveis (como amor, justiça e sabedoria) e incomunicáveis (como eternidade, imutabilidade e onipotência). Propõe-se o conceito de onicoerência como um atributo integrador que transita entre essas categorias, revelando a harmonia absoluta entre todos os aspectos do ser de Deus. Diversos pensadores, como Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino e Anselmo de Cantuária, abordaram indiretamente essa ideia, sugerindo uma coerência interna e perfeita em Deus, que integra amor, soberania, justiça, misericórdia, transcendência e imanência.
II. Definindo onicoerência
Onicoerência refere-se à harmonia absoluta entre a essência, a vontade e a ação de Deus, destacando uma unidade ontológica profunda. Etimologicamente, combina o grego "ὄν" (ser) e o latim "cohaerentia" (estar unido), indicando uma conexão lógica e ausência de contradição. Esse conceito enfatiza a unidade perfeita entre os atributos divinos e a coerência interna do ser de Deus, revelando uma expressão da perfeição divina.
III. Fundamentos bíblicos
As Escrituras sugerem a onicoerência de Deus de várias formas, como em Tiago 1:17 e Êxodo 3:14, onde Deus é descrito como imutável e auto consistente. Jesus encarna essa coerência em suas palavras e ações, afirmando sua unidade com o Pai. Textos como Hebreus 13:8 e Salmos 119:160 reforçam a estabilidade ontológica de Jesus e a verdade da Palavra. A coerência entre justiça e misericórdia é um tema recorrente, exemplificado em parábolas como a do filho pródigo.
Os pontos IV. Implicações Filosóficas, V. Relevância teológica e VI. Onicoerência e a Trindade foram tratados no artigo: Onicoerência: um atributo divino integrador – Parte 1.
Parte 2
I. Onicoerência e a ação divina
As ações de Deus na história – criação, alianças, encarnação, ressurreição – não são arbitrárias. Elas fluem de Sua natureza coerente. Não há capricho divino, ira impulsiva, graça acidental. Cada ato é uma expressão de quem Deus é.
A narrativa bíblica, da criação à consumação, é uma expressão viva da Onicoerência. Não se trata de episódios desconexos ou intervenções pontuais, mas de uma história contínua e integrada, onde cada etapa revela a fidelidade de Deus ao seu propósito eterno. A história da salvação é, portanto, uma narrativa não fragmentada, mas profundamente coerente — uma linha que liga o Éden à Nova Jerusalém, o barro ao Espírito, o sacrifício à adoração.
Essa coerência também se manifesta na providência divina. Deus não age de forma reativa, como quem responde aos imprevistos da história. Sua ação é proativa, intencional e perfeitamente alinhada com Seu caráter. Mesmo o que aos olhos humanos parece caos ou silêncio, está inserido num plano maior, onde tudo coopera para o bem daqueles que O amam. A providência é, assim, a Onicoerência em movimento — o Deus que vê, que guia, que sustenta, sem jamais contradizer a si mesmo.
É de sua natureza também produzir nos que o buscam esse anseio pela unidade, pela integridade e essa alegria infantil de render graças, entoar hosanas e sentir-se um como Cristo e o Pai o são. A unidade entre os crentes, conforme é expressa na oração de Jesus em João 17, é mais do que comunhão: é reflexo da própria Onicoerência divina, que nos chama a sermos um como Ele é Um.
II. Onicoerência e a identidade humana
Os humanos anseiam por coerência. Buscamos integridade, autenticidade, plenitude. O pecado nos fragmenta; a graça nos restaura. Ser feito à imagem de Deus é ser chamado à coerência. A santificação não é apenas melhoria moral – é um processo vinculado a um tocante relacionamento existencial.
Vivemos em tempos de múltiplas identidades: o eu profissional, o virtual, o familiar. Essa fragmentação produz uma profusão de angústias. Mas em Cristo, somos convidados à unidade interior. A santificação é o processo pelo qual o Espírito nos reconstrói, não apenas moralmente, mas ontologicamente – para que sejamos um só em nós mesmos, como o Filho é um com o Pai.
A psicologia existencial de Viktor Frankl ilumina esse anseio por unidade. Para Frankl, o ser humano é movido pela busca de sentido, e a ausência desse sentido gera uma “neurose noogênica” – um adoecimento espiritual que não se resolve com técnicas, mas com transcendência. A coerência interior, nesse contexto, é essencial à saúde espiritual: é o alinhamento entre o que somos, o que cremos e o que vivemos. Sem esse alinhamento, o eu se dispersa, perde direção e mergulha no vazio.
Henri Nouwen, por sua vez, fala da cura interior como um processo de reconciliação entre as partes feridas do eu. Para ele, a espiritualidade não é fuga, mas encontro – um retorno ao centro, onde Deus habita e onde o eu pode ser restaurado. A coerência interior, nesse sentido, é fruto da escuta, da oração, da aceitação da própria vulnerabilidade. É nesse espaço que a onicoerência divina toca o humano, curando a cisão entre o que sentimos e o que professamos.
A prática litúrgica também desempenha papel fundamental na formação de uma identidade coerente. Ao participar dos momentos da oração, da confissão, da escuta da Palavra e da celebração eucarística, o crente é continuamente lembrado de quem é e a quem pertence. A liturgia não é apenas rito – é narrativa encarnada, é pedagogia espiritual. Ela nos forma, nos alinha, nos reintegra. Cada gesto, cada símbolo, cada canto é um convite à unidade interior, à reconexão com o Deus que é Um e que nos chama a sermos um em nós mesmos e em Jesus.
Assim, a onicoerência não é apenas atributo divino – é vocação humana. É o chamado à plenitude, à cura, à verdade vivida. É o convite a deixar de ser fragmento e tornar-se testemunho.
III. Onicoerência e a ética
A ética fundamentada na coerência divina não é meramente baseada em regras, mas relacional. Somos chamados a viver em harmonia com a natureza de Deus. Justiça, misericórdia e verdade não são comandos arbitrários, mas reflexos da coerência divina. Pecar é agir incoerentemente; obedecer é alinhar-se.
Num mundo marcado por dilemas éticos cada vez mais complexos, a onicoerência divina oferece um eixo moral que transcende ideologias e interesses. Questões como a justiça social, que envolve a distribuição equitativa de recursos e oportunidades, desafiam-nos a viver o amor ao próximo de forma concreta. A geopolítica, com seus conflitos e disputas de poder, exige discernimento ético que não se curve à lógica da dominação, mas que busque a paz e a reconciliação.
Na bioética, enfrentamos decisões sobre o início e o fim da vida, manipulação genética e acesso à saúde. A coerência divina nos convida a ver cada ser humano como portador de dignidade, não como objeto de experimentação ou estatística. Já no campo da tecnologia, robótica e inteligência artificial, surgem questões sobre privacidade, autonomia, viés algorítmico e responsabilidade moral. A coerência divina ilumina esses debates ao nos lembrar que o progresso técnico deve estar a serviço da vida, da justiça e da verdade — não da exploração ou da exclusão.
Nesse cenário, as virtudes cristãs tornam-se manifestações vivas da coerência divina em nós. O amor, que busca o bem do outro sem esperar retorno; a paciência, que resiste ao imediatismo e acolhe o tempo do outro; e a fidelidade, que permanece firme mesmo diante da instabilidade — todas essas virtudes revelam o caráter de Deus e nos moldam à sua imagem.
A ética cristã, portanto, não é apenas uma resposta a dilemas, mas uma forma de ser no mundo. Ser ético é ser coerente com o Deus que é amor, verdade e justiça. É permitir que a onicoerência divina nos forme por dentro, para que nossas decisões, mesmo nas zonas cinzentas da vida, sejam reflexo da luz que vem do alto.
IV. Onicoerência e o culto
O culto é a resposta humana à coerência divina. No culto, buscamos alinhar nossos eus fragmentados com a plenitude de Deus. O verdadeiro culto não é teatral, mas integrado — espírito e verdade, coração e mente, corpo e alma.
Mais do que um rito periódico, o culto cristão é um ensaio da eternidade, uma antecipação da coerência plena que viveremos na presença de Deus. Cada gesto litúrgico, cada oração, cada cântico é uma tentativa de harmonizar o caos interior com a ordem divina. No culto, somos reeducados espiritualmente para viver em unidade — com Deus, com os outros e conosco mesmos. É como se, por um breve momento, o céu tocasse a terra e nos revelasse o que significa ser inteiro.
A beleza do culto — seja na música, na arquitetura, na poesia das orações ou na reverência dos gestos — não é mero ornamento. Ela aponta para a beleza de Deus, cuja coerência é perfeita e cuja glória é harmônica. A harmonia entre os elementos do culto, entre os participantes, entre o tempo e o espaço, reflete a unidade trinitária: Pai, Filho e Espírito em perfeita comunhão. Quando o culto é vivido com profundidade, ele se torna um espelho da onicoerência divina — uma expressão visível daquilo que é invisível.
Além disso, o culto é um lugar de crescimento espiritual. Ao ouvir a Palavra, ao participar dos sacramentos, ao viver a comunhão dos santos, somos transformados. A coerência divina não apenas nos atrai — ela nos forma. O culto nos educa na paciência, no amor, na fidelidade. Ele nos ensina a esperar, a confiar, a permanecer. Cada encontro é uma aula de coerência, onde aprendemos a ser menos fragmentados e mais inteiros.
Assim, o culto não é apenas resposta — é também formação. Ele nos prepara para o dia em que veremos Deus face a face, e toda incoerência será dissolvida na luz da Verdade. Até lá, cultuar é ensaiar a eternidade.
V. Onicoerência e os atributos clássicos
Atributos divinos tradicionais como onipotência, onipresença e onisciência de há muito servem para descrever o poder, o alcance e o conhecimento de Deus. No entanto, esses atributos frequentemente enfatizam expressões externas — ações, energia ou abrangência de Deus — em vez de Sua natureza mais íntima. Em tempos de superproduções cinematográficas e que tais, esses atributos poderiam ser confundidos com os superpoderes dos super-heróis. Em contraste, a onicoerência aborda a integridade interna do ser de Deus. Não é apenas o que Deus faz, mas o que Deus é.
Essa distinção ecoa a autorrevelação de Êxodo 3:14: “EU SOU O QUE SOU.”, corroborada pela afirmação de Cristo: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou.” Enquanto a onipotência fala do que Deus pode fazer, a onicoerência fala de quem Deus é — uma autodescrição que ressoa mais intimamente com categorias humanas de identidade, consistência e autenticidade.
A onicoerência pode ser vista como o fio condutor que entrelaça todos os atributos divinos, revelando que eles não operam isoladamente, mas em perfeita harmonia. Deus não é onipotente de um modo que contradiga sua justiça, nem onisciente de um modo que viole sua misericórdia. Cada atributo é expressão de um mesmo ser — indivisível, íntegro, coerente. A onicoerência é o princípio que garante que o amor de Deus não se opõe à sua santidade, que sua ira não contradiz sua bondade, que sua soberania não anula sua compaixão.
Nos atributos clássicos, essa coerência se revela com clareza:
• Na onisciência, Deus conhece todas as coisas não apenas como dados, mas como verdades vivas que se alinham perfeitamente com sua vontade. Seu saber é puro, sem sombra de contradição.
• Na onipotência, Deus age com poder absoluto, mas nunca de forma arbitrária. Ele não pode mentir, não pode negar a si mesmo — seu poder é sempre coerente com sua santidade e bondade.
• Na onipresença, Deus está em todos os lugares, mas não como uma força impessoal. Sua presença é relacional, justa, amorosa — sempre em consonância com quem Ele é.
A onicoerência, portanto, não é um atributo entre outros, mas uma chave hermenêutica que nos permite compreender a totalidade do ser divino. Ela revela que Deus não é uma soma de perfeições, mas uma perfeição indivisa. E ao reconhecer isso, somos convidados não apenas a admirar Sua grandeza, mas a confiar em Sua integridade — pois do Deus que é coerente consigo mesmo podemos sempre proclamar: - Grande é a Tua fidelidade!
VI. Incoerência como crise espiritual: a repreensão de Jesus e a relevância contemporânea
Nos Evangelhos, um dos temas mais persistentes no ministério de Jesus é sua crítica à incoerência, especialmente entre os líderes religiosos. Ele denuncia a hipocrisia, os padrões duplos e a piedade teatral — formas de fragmentação espiritual que traem o descompasso entre crença e comportamento.
“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro estão cheios de ganância e autocomplacência.” (Mateus 23:25)
Essa repreensão não é meramente moral — é ontológica. Jesus confronta a desintegração da identidade, o fracasso em viver harmonicamente com a verdade professada.
À luz disso, a onicoerência torna-se não apenas um atributo divino, mas uma aspiração espiritual. A crise da incoerência persiste hoje, dentro e fora da Igreja. Muitos sofrem com a dissonância entre fé e vida, doutrina e prática, imagem pública e realidade privada.
Ao recuperar a visão da coerência divina, a teologia pode oferecer uma contracultura curadora — uma que chama indivíduos e comunidades à integridade, transparência e plenitude. A onicoerência torna-se, assim, um farol pastoral, iluminando o caminho para o discipulado autêntico.
A incoerência espiritual não é apenas um problema ético — é uma ferida na alma. Quando líderes religiosos proclamam santidade mas vivem em duplicidade ou mornidão, o corpo de Cristo sofre. Jesus não tolerou essa dissonância: ‘Vocês são como sepulcros caiados’ (Mateus 23:27). Hoje, a Igreja precisa recuperar a beleza da coerência, onde fé e vida se entrelaçam com louvor e verdade.
Conclusão
A onicoerência não é um atributo novo embora o termo o seja. Sempre esteve presente na natureza divina, articulado ternamente a todos os outros. Refletir a seu respeito conduz a uma visão de Deus como pleno, verdadeiro e confiável. E fazer parte dessa coerência é tornar-se mais plenamente humano em Cristo.
1 Coríntios 14:15 exorta os fiéis a aliarem mente e espírito no cantar e no orar. Que seja também nossa atitude ao refletir sobre a divina unidade:
De espírito muito atento
Do centro do pensamento
Orarei ao meu Senhor
De espírito muito calmo
Um claro e alegre salmo
Cantarei em seu louvor.
Em nome de Jesus, Amém
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Da Onipotência à Onicoerência: Reflexões antigas, palavra nova.
O tema é fascinante e edificante. Talvez não seja uma novidade, mas, sem dúvida, representa um renovo. É interessante relembrar como tudo começou: em 1970, durante os dias do meu trote no ITA, um veterano me perguntou:
– Bixo, se Deus é todo-poderoso, ele pode fazer uma pedra tão pesada que não consiga levantar?
Eu não tinha a menor ideia da resposta. Mas, ao abrir a boca, surgiu este misto de fé e verdade:
– Eu não sei a resposta para a sua pergunta, mas o meu Deus certamente me revelará.
Cerca de trinta anos depois, compreendi que havia um pequeno problema na minha concepção de todo-poderoso ou onipotente. Não era simplesmente que Deus podia fazer tudo, mas sim que Ele podia realizar tudo aquilo que desejasse fazer. E, certamente, não desejaria produzir tal absurdo.
De tempos em tempos, o assunto voltava à minha mente e eu continuava a pensar. Talvez uma palavra como "onicoerente" fosse mais adequada como atributo divino. Cogitei também a versão "omnicoerente", isto é, "todo coerente", o que já me parecia excelente.
No momento em que percebi que “onicoerente” poderia qualificar o Ser Coerente por excelência, comecei a maturar esse conceito. Enquanto “omni” mantinha a linha dos atributos tipo superpoderes, a expressão “onicoerente” trazia ao tema a dimensão do Deus Vivo. E, porque Ele vive, continuei a meditar e a fazer anotações pertinentes.
Por fim, ao descobrir que essas duas palavras não apareciam na literatura, nem em português nem em inglês, considerei apropriado publicar um artigo benigno sobre o tema.
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Imagem: Unsplash.
REVISTA ULTIMATO – JESUS, A LUZ DO MUNDO
Jesus, o clímax da narrativa da redenção, é a luz do mundo. Não há luz que se compare a ele. Sua luz alcança todo o mundo.
Além de anunciar-se como Luz, Jesus declara que os seus seguidores são a luz do mundo. “Pois Deus que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nosso coração para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo” (2Co 4.6).
É disso que trata a edição 415 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» O Caminho do Coração – Meditações diárias, Ricardo Barbosa
» Série "Filosofia e Fé Cristã"
» Ciência, poesia e fé: herança e legado, por Wolodymir (Wolô) Boruszewski
Por Wolodymir (Wolô) Boruszewski
Resumo da Parte 1
Preâmbulo
Dois momentos de louvor perfeito se destacam na vida de Jesus Cristo: o primeiro, quando crianças cantam espontaneamente Hosanas ao Filho de Davi, e o segundo, quando Jesus exulta no Espírito e agradece ao Pai por revelar verdades aos pequeninos. A ternura das crianças louvando sem cálculos e a alegria compartilhada da Trindade mostram que a coerência divina é expressa na simplicidade e na alegria. Esses exemplos nos ensinam a evitar a soberba e a valorizar a graça de ter nossos nomes escritos nos céus, proclamando as virtudes de quem nos amou.
I. Introdução: Onicoerência como ponte entre os atributos divinos
Desde os primórdios da teologia cristã, os atributos divinos são classificados em comunicáveis (como amor, justiça e sabedoria) e incomunicáveis (como eternidade, imutabilidade e onipotência). Propõe-se o conceito de onicoerência como um atributo integrador que transita entre essas categorias, revelando a harmonia absoluta entre todos os aspectos do ser de Deus. Diversos pensadores, como Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino e Anselmo de Cantuária, abordaram indiretamente essa ideia, sugerindo uma coerência interna e perfeita em Deus, que integra amor, soberania, justiça, misericórdia, transcendência e imanência.
II. Definindo onicoerência
Onicoerência refere-se à harmonia absoluta entre a essência, a vontade e a ação de Deus, destacando uma unidade ontológica profunda. Etimologicamente, combina o grego "ὄν" (ser) e o latim "cohaerentia" (estar unido), indicando uma conexão lógica e ausência de contradição. Esse conceito enfatiza a unidade perfeita entre os atributos divinos e a coerência interna do ser de Deus, revelando uma expressão da perfeição divina.
III. Fundamentos bíblicos
As Escrituras sugerem a onicoerência de Deus de várias formas, como em Tiago 1:17 e Êxodo 3:14, onde Deus é descrito como imutável e auto consistente. Jesus encarna essa coerência em suas palavras e ações, afirmando sua unidade com o Pai. Textos como Hebreus 13:8 e Salmos 119:160 reforçam a estabilidade ontológica de Jesus e a verdade da Palavra. A coerência entre justiça e misericórdia é um tema recorrente, exemplificado em parábolas como a do filho pródigo.
Os pontos IV. Implicações Filosóficas, V. Relevância teológica e VI. Onicoerência e a Trindade foram tratados no artigo: Onicoerência: um atributo divino integrador – Parte 1.
Parte 2
I. Onicoerência e a ação divinaAs ações de Deus na história – criação, alianças, encarnação, ressurreição – não são arbitrárias. Elas fluem de Sua natureza coerente. Não há capricho divino, ira impulsiva, graça acidental. Cada ato é uma expressão de quem Deus é.
A narrativa bíblica, da criação à consumação, é uma expressão viva da Onicoerência. Não se trata de episódios desconexos ou intervenções pontuais, mas de uma história contínua e integrada, onde cada etapa revela a fidelidade de Deus ao seu propósito eterno. A história da salvação é, portanto, uma narrativa não fragmentada, mas profundamente coerente — uma linha que liga o Éden à Nova Jerusalém, o barro ao Espírito, o sacrifício à adoração.
Essa coerência também se manifesta na providência divina. Deus não age de forma reativa, como quem responde aos imprevistos da história. Sua ação é proativa, intencional e perfeitamente alinhada com Seu caráter. Mesmo o que aos olhos humanos parece caos ou silêncio, está inserido num plano maior, onde tudo coopera para o bem daqueles que O amam. A providência é, assim, a Onicoerência em movimento — o Deus que vê, que guia, que sustenta, sem jamais contradizer a si mesmo.
É de sua natureza também produzir nos que o buscam esse anseio pela unidade, pela integridade e essa alegria infantil de render graças, entoar hosanas e sentir-se um como Cristo e o Pai o são. A unidade entre os crentes, conforme é expressa na oração de Jesus em João 17, é mais do que comunhão: é reflexo da própria Onicoerência divina, que nos chama a sermos um como Ele é Um.
II. Onicoerência e a identidade humana
Os humanos anseiam por coerência. Buscamos integridade, autenticidade, plenitude. O pecado nos fragmenta; a graça nos restaura. Ser feito à imagem de Deus é ser chamado à coerência. A santificação não é apenas melhoria moral – é um processo vinculado a um tocante relacionamento existencial.
Vivemos em tempos de múltiplas identidades: o eu profissional, o virtual, o familiar. Essa fragmentação produz uma profusão de angústias. Mas em Cristo, somos convidados à unidade interior. A santificação é o processo pelo qual o Espírito nos reconstrói, não apenas moralmente, mas ontologicamente – para que sejamos um só em nós mesmos, como o Filho é um com o Pai.
A psicologia existencial de Viktor Frankl ilumina esse anseio por unidade. Para Frankl, o ser humano é movido pela busca de sentido, e a ausência desse sentido gera uma “neurose noogênica” – um adoecimento espiritual que não se resolve com técnicas, mas com transcendência. A coerência interior, nesse contexto, é essencial à saúde espiritual: é o alinhamento entre o que somos, o que cremos e o que vivemos. Sem esse alinhamento, o eu se dispersa, perde direção e mergulha no vazio.
Henri Nouwen, por sua vez, fala da cura interior como um processo de reconciliação entre as partes feridas do eu. Para ele, a espiritualidade não é fuga, mas encontro – um retorno ao centro, onde Deus habita e onde o eu pode ser restaurado. A coerência interior, nesse sentido, é fruto da escuta, da oração, da aceitação da própria vulnerabilidade. É nesse espaço que a onicoerência divina toca o humano, curando a cisão entre o que sentimos e o que professamos.
A prática litúrgica também desempenha papel fundamental na formação de uma identidade coerente. Ao participar dos momentos da oração, da confissão, da escuta da Palavra e da celebração eucarística, o crente é continuamente lembrado de quem é e a quem pertence. A liturgia não é apenas rito – é narrativa encarnada, é pedagogia espiritual. Ela nos forma, nos alinha, nos reintegra. Cada gesto, cada símbolo, cada canto é um convite à unidade interior, à reconexão com o Deus que é Um e que nos chama a sermos um em nós mesmos e em Jesus.
Assim, a onicoerência não é apenas atributo divino – é vocação humana. É o chamado à plenitude, à cura, à verdade vivida. É o convite a deixar de ser fragmento e tornar-se testemunho.
III. Onicoerência e a ética
A ética fundamentada na coerência divina não é meramente baseada em regras, mas relacional. Somos chamados a viver em harmonia com a natureza de Deus. Justiça, misericórdia e verdade não são comandos arbitrários, mas reflexos da coerência divina. Pecar é agir incoerentemente; obedecer é alinhar-se.
Num mundo marcado por dilemas éticos cada vez mais complexos, a onicoerência divina oferece um eixo moral que transcende ideologias e interesses. Questões como a justiça social, que envolve a distribuição equitativa de recursos e oportunidades, desafiam-nos a viver o amor ao próximo de forma concreta. A geopolítica, com seus conflitos e disputas de poder, exige discernimento ético que não se curve à lógica da dominação, mas que busque a paz e a reconciliação.
Na bioética, enfrentamos decisões sobre o início e o fim da vida, manipulação genética e acesso à saúde. A coerência divina nos convida a ver cada ser humano como portador de dignidade, não como objeto de experimentação ou estatística. Já no campo da tecnologia, robótica e inteligência artificial, surgem questões sobre privacidade, autonomia, viés algorítmico e responsabilidade moral. A coerência divina ilumina esses debates ao nos lembrar que o progresso técnico deve estar a serviço da vida, da justiça e da verdade — não da exploração ou da exclusão.
Nesse cenário, as virtudes cristãs tornam-se manifestações vivas da coerência divina em nós. O amor, que busca o bem do outro sem esperar retorno; a paciência, que resiste ao imediatismo e acolhe o tempo do outro; e a fidelidade, que permanece firme mesmo diante da instabilidade — todas essas virtudes revelam o caráter de Deus e nos moldam à sua imagem.
A ética cristã, portanto, não é apenas uma resposta a dilemas, mas uma forma de ser no mundo. Ser ético é ser coerente com o Deus que é amor, verdade e justiça. É permitir que a onicoerência divina nos forme por dentro, para que nossas decisões, mesmo nas zonas cinzentas da vida, sejam reflexo da luz que vem do alto.
IV. Onicoerência e o culto
O culto é a resposta humana à coerência divina. No culto, buscamos alinhar nossos eus fragmentados com a plenitude de Deus. O verdadeiro culto não é teatral, mas integrado — espírito e verdade, coração e mente, corpo e alma.
Mais do que um rito periódico, o culto cristão é um ensaio da eternidade, uma antecipação da coerência plena que viveremos na presença de Deus. Cada gesto litúrgico, cada oração, cada cântico é uma tentativa de harmonizar o caos interior com a ordem divina. No culto, somos reeducados espiritualmente para viver em unidade — com Deus, com os outros e conosco mesmos. É como se, por um breve momento, o céu tocasse a terra e nos revelasse o que significa ser inteiro.
A beleza do culto — seja na música, na arquitetura, na poesia das orações ou na reverência dos gestos — não é mero ornamento. Ela aponta para a beleza de Deus, cuja coerência é perfeita e cuja glória é harmônica. A harmonia entre os elementos do culto, entre os participantes, entre o tempo e o espaço, reflete a unidade trinitária: Pai, Filho e Espírito em perfeita comunhão. Quando o culto é vivido com profundidade, ele se torna um espelho da onicoerência divina — uma expressão visível daquilo que é invisível.
Além disso, o culto é um lugar de crescimento espiritual. Ao ouvir a Palavra, ao participar dos sacramentos, ao viver a comunhão dos santos, somos transformados. A coerência divina não apenas nos atrai — ela nos forma. O culto nos educa na paciência, no amor, na fidelidade. Ele nos ensina a esperar, a confiar, a permanecer. Cada encontro é uma aula de coerência, onde aprendemos a ser menos fragmentados e mais inteiros.
Assim, o culto não é apenas resposta — é também formação. Ele nos prepara para o dia em que veremos Deus face a face, e toda incoerência será dissolvida na luz da Verdade. Até lá, cultuar é ensaiar a eternidade.
V. Onicoerência e os atributos clássicos
Atributos divinos tradicionais como onipotência, onipresença e onisciência de há muito servem para descrever o poder, o alcance e o conhecimento de Deus. No entanto, esses atributos frequentemente enfatizam expressões externas — ações, energia ou abrangência de Deus — em vez de Sua natureza mais íntima. Em tempos de superproduções cinematográficas e que tais, esses atributos poderiam ser confundidos com os superpoderes dos super-heróis. Em contraste, a onicoerência aborda a integridade interna do ser de Deus. Não é apenas o que Deus faz, mas o que Deus é.
Essa distinção ecoa a autorrevelação de Êxodo 3:14: “EU SOU O QUE SOU.”, corroborada pela afirmação de Cristo: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou.” Enquanto a onipotência fala do que Deus pode fazer, a onicoerência fala de quem Deus é — uma autodescrição que ressoa mais intimamente com categorias humanas de identidade, consistência e autenticidade.
A onicoerência pode ser vista como o fio condutor que entrelaça todos os atributos divinos, revelando que eles não operam isoladamente, mas em perfeita harmonia. Deus não é onipotente de um modo que contradiga sua justiça, nem onisciente de um modo que viole sua misericórdia. Cada atributo é expressão de um mesmo ser — indivisível, íntegro, coerente. A onicoerência é o princípio que garante que o amor de Deus não se opõe à sua santidade, que sua ira não contradiz sua bondade, que sua soberania não anula sua compaixão.
Nos atributos clássicos, essa coerência se revela com clareza:
• Na onisciência, Deus conhece todas as coisas não apenas como dados, mas como verdades vivas que se alinham perfeitamente com sua vontade. Seu saber é puro, sem sombra de contradição.
• Na onipotência, Deus age com poder absoluto, mas nunca de forma arbitrária. Ele não pode mentir, não pode negar a si mesmo — seu poder é sempre coerente com sua santidade e bondade.
• Na onipresença, Deus está em todos os lugares, mas não como uma força impessoal. Sua presença é relacional, justa, amorosa — sempre em consonância com quem Ele é.
A onicoerência, portanto, não é um atributo entre outros, mas uma chave hermenêutica que nos permite compreender a totalidade do ser divino. Ela revela que Deus não é uma soma de perfeições, mas uma perfeição indivisa. E ao reconhecer isso, somos convidados não apenas a admirar Sua grandeza, mas a confiar em Sua integridade — pois do Deus que é coerente consigo mesmo podemos sempre proclamar: - Grande é a Tua fidelidade!
VI. Incoerência como crise espiritual: a repreensão de Jesus e a relevância contemporânea
Nos Evangelhos, um dos temas mais persistentes no ministério de Jesus é sua crítica à incoerência, especialmente entre os líderes religiosos. Ele denuncia a hipocrisia, os padrões duplos e a piedade teatral — formas de fragmentação espiritual que traem o descompasso entre crença e comportamento.
“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro estão cheios de ganância e autocomplacência.” (Mateus 23:25)
Essa repreensão não é meramente moral — é ontológica. Jesus confronta a desintegração da identidade, o fracasso em viver harmonicamente com a verdade professada.
À luz disso, a onicoerência torna-se não apenas um atributo divino, mas uma aspiração espiritual. A crise da incoerência persiste hoje, dentro e fora da Igreja. Muitos sofrem com a dissonância entre fé e vida, doutrina e prática, imagem pública e realidade privada.
Ao recuperar a visão da coerência divina, a teologia pode oferecer uma contracultura curadora — uma que chama indivíduos e comunidades à integridade, transparência e plenitude. A onicoerência torna-se, assim, um farol pastoral, iluminando o caminho para o discipulado autêntico.
A incoerência espiritual não é apenas um problema ético — é uma ferida na alma. Quando líderes religiosos proclamam santidade mas vivem em duplicidade ou mornidão, o corpo de Cristo sofre. Jesus não tolerou essa dissonância: ‘Vocês são como sepulcros caiados’ (Mateus 23:27). Hoje, a Igreja precisa recuperar a beleza da coerência, onde fé e vida se entrelaçam com louvor e verdade.
Conclusão
A onicoerência não é um atributo novo embora o termo o seja. Sempre esteve presente na natureza divina, articulado ternamente a todos os outros. Refletir a seu respeito conduz a uma visão de Deus como pleno, verdadeiro e confiável. E fazer parte dessa coerência é tornar-se mais plenamente humano em Cristo.
1 Coríntios 14:15 exorta os fiéis a aliarem mente e espírito no cantar e no orar. Que seja também nossa atitude ao refletir sobre a divina unidade:
De espírito muito atento
Do centro do pensamento
Orarei ao meu Senhor
De espírito muito calmo
Um claro e alegre salmo
Cantarei em seu louvor.
Em nome de Jesus, Amém
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Da Onipotência à Onicoerência: Reflexões antigas, palavra nova.
O tema é fascinante e edificante. Talvez não seja uma novidade, mas, sem dúvida, representa um renovo. É interessante relembrar como tudo começou: em 1970, durante os dias do meu trote no ITA, um veterano me perguntou:
– Bixo, se Deus é todo-poderoso, ele pode fazer uma pedra tão pesada que não consiga levantar?
Eu não tinha a menor ideia da resposta. Mas, ao abrir a boca, surgiu este misto de fé e verdade:
– Eu não sei a resposta para a sua pergunta, mas o meu Deus certamente me revelará.
Cerca de trinta anos depois, compreendi que havia um pequeno problema na minha concepção de todo-poderoso ou onipotente. Não era simplesmente que Deus podia fazer tudo, mas sim que Ele podia realizar tudo aquilo que desejasse fazer. E, certamente, não desejaria produzir tal absurdo.
De tempos em tempos, o assunto voltava à minha mente e eu continuava a pensar. Talvez uma palavra como "onicoerente" fosse mais adequada como atributo divino. Cogitei também a versão "omnicoerente", isto é, "todo coerente", o que já me parecia excelente.
No momento em que percebi que “onicoerente” poderia qualificar o Ser Coerente por excelência, comecei a maturar esse conceito. Enquanto “omni” mantinha a linha dos atributos tipo superpoderes, a expressão “onicoerente” trazia ao tema a dimensão do Deus Vivo. E, porque Ele vive, continuei a meditar e a fazer anotações pertinentes.
Por fim, ao descobrir que essas duas palavras não apareciam na literatura, nem em português nem em inglês, considerei apropriado publicar um artigo benigno sobre o tema.
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- Wolodymir Boruszewski, mais conhecido como Wolô, nasceu em 15 de junho de 1951 em São Paulo, SP. Wolô é de origem ucraniana, poeta e compositor de música cristã desde 1964. Congrega na Comunidade Jesus, São Paulo, SP.
Imagem: Unsplash.
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13 de outubro de 2025- Visualizações: 1472
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