Opinião
17 de dezembro de 2025- Visualizações: 104
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A falta de consenso na COP30 e na missão da igreja
Se nem a Bíblia, os teólogos e os cientistas foram capazes de fazer os cristãos chegarem a um consenso quanto ao cuidado da criação, quem será?
Por Phelipe M. Reis
O que a COP30 tem a ver com o cuidado da criação e a missão da igreja? Neste texto, apresento algumas reflexões sobre o consenso, ou falta dele, nas negociações da COP e na compreensão dos evangélicos a respeito do escopo da missão da Igreja. Aponto também os desafios reais que a crise climática impõe a quem deseja participar da missão de Deus no mundo.
O desafio do consenso climático e o impasse dos combustíveis fósseis
Frustração e decepção foram os sentimentos de cientistas, ambientalistas e representantes de organizações da sociedade civil quando o presidente da COP30, o embaixador brasileiro André Corrêa do Lago, leu o texto final na tarde de 22 de novembro1. A conferência, realizada entre 10 e 21 de novembro em Belém, PA, precisou ser estendida por mais um dia e acabou não sendo a COP da implementação, como muitos esperavam.
Foram 47.459 inscritos de 194 países, incluindo delegados, funcionários, voluntários e equipes de segurança. Como previsto, houve forte presença da sociedade civil, especialmente de povos indígenas, ainda que sua participação tenha sido limitada nas áreas oficiais. Vale mencionar a presença significativa de diversas iniciativas e grupos evangélicos, tanto nos espaços oficias quanto em atividades paralelas.
Na Zona Azul, as negociações avançaram noite adentro por doze dias, enquanto delegados debatiam caminhos para enfrentar a crise do clima, sob o olhar atento da imprensa, de especialistas e de centenas de observadores. Uma delegação de quase cinquenta evangélicos, mobilizadas pelo movimento Renovar Nosso Mundo, acompanhou as negociações, fizeram ações de advocacy e participaram de painéis e debates sobre diversos temas, como justiça climática, povos originários e as contribuições das comunidades de fé2.
Se até alguns anos atrás o desafio da comunidade científica nas COPs era provar que a mudança climática é real e não uma ficção ou teoria conspiratória, dessa vez o desafio focava nos combustíveis fósseis. O clamor dos cientistas era que o documento final apresentasse passos concretos para a eliminação gradual dessa matriz energética, responsável por 73% das emissões globais de gases de efeito estufa.
Antes e durante o evento, o governo brasileiro e a presidência da COP defenderam a construção de um roadmap, um mapa do caminho para abandonar os fósseis e alcançar o desmatamento zero3. O tema, porém, não constava na agenda oficial, definida previamente na Conferência de Bonn, na Alemanha4.
Um dos desafios das negociações consiste no processo de aprovação dos textos, que não se dá por meio de votação, mas de consenso. Se um dos países não concordar com algo, o texto não é aprovado. E quando o tema é a eliminação da exploração e do uso de combustível fóssil, chegar ao consenso é quase impossível, considerando o contexto geopolítico global sensível em que vivemos especialmente e por causa da dependência econômica que muitos países têm do petróleo.
Embora mais de oitenta países, tenham manifestado apoio ao mapa do caminho, houve grande resistência de um bloco de nações do Oriente Médio, liderados por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Sem conseguir o consenso necessário, a alternativa apresentada pela presidência da COP foi assumir a responsabilidade e buscar construir esse caminho de forma “independente”, posteriormente.
Em entrevista à Amazônia Real, o cientista Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos vencedores do Nobel da Paz de 2007, avalia que a COP30 terminou marcada por uma falta generalizada de coragem política para enfrentar os motores centrais da crise climática5.
Afinal, se a conferência do clima não encarou o principal problema, então é tudo uma perda de tempo? São muitos aspectos que precisam ser avaliados.
Há quem aponte “pequenos grandes avanços”, como o apoio de mais de oitenta países à proposta do roadmap, cujo primeiro passo concreto será uma conferência convocada por Colômbia e Holanda prevista para abril de 2026. Especialistas também sinalizaram progressos nos textos de mitigação, no programa de transição justa e no reconhecimento de direitos de indígenas e povos tradicionais. Quem quiser se debruçar sobre essas questões mais técnicas, indico algumas fontes ao final do artigo.

Falta consenso entre os evangélicos sobre o escopo da missão da Igreja?
A falta de consenso não é privilégio ou exclusividade do processo multilateral adotado pela ONU. A dificuldade está em todos os espaços, inclusive em nossas igrejas e conferências missionárias.
Há alguns anos, fui convidado para auxiliar na coordenação de um seminário que se dedica a treinar obreiros de comunidades ribeirinhas e indígenas no interior da Amazônia. Passados alguns meses de observação, senti a necessidade e convoquei algumas pessoas estratégicas para uma reunião de avaliação. Queria ouvir os demais para identificarmos os avanços, os pontos que precisávamos melhorar, analisar a situação das cerca de cinquenta congregações e, principalmente, tentar estipular alvos mais claros para o trabalho. Éramos umas dez pessoas. Conversamos, discutimos e debatemos por cerca de duas horas. Ao final da reunião, saímos de lá sem clareza alguma quanto aos avanços, desafios e metas.
A Declaração de Seul (2024), documento oficial do Quarto Congresso de Evangelização Mundial de Lausanne6, recebeu muitas críticas. Excesso de foco em questões de sexualidade, pouca ou quase nenhuma menção a aspectos sociais inerentes ao evangelho e a redução da missão de Deus ao discipulado e à igreja local foram alguns dos pontos criticados por um grupo de teólogos e líderes sul-coreanos7.
A reclamação do grupo toca em um tema que o movimento evangélico global parece ter dificuldade em superar: a velha dualidade entre evangelismo e ação social, que, por sua vez, exclui da missão da igreja, ou coloca em segundo plano, tudo o que não esteja relacionado à evangelização, proclamação ou discipulado.
O caminho que Lausanne vinha trilhando, influenciado por teólogos como John Stott, René Padilla e Samuel Escobar, propunha que evangelismo e ação social caminhassem de mãos dadas. Tendência que pode ser observada tanto no Pacto de Lausanne (1974) como no Compromisso da Cidade do Cabo (2010). Já a Declaração de Seul reforça antagonismos e enfraquece a perspectiva holística da missão.
Falta consenso, entendimento ou conhecimento?
Se a visão evangélica majoritária global contemporânea alimenta a dificuldade em conciliar evangelização e ação social, nem precisa ir longe para receber críticas quando a intenção é integrar o cuidado ambiental à missão cristã.
De Gênesis a Apocalipse, a Bíblia está repleta de referências à natureza, à responsabilidade humana ecológica e ao lugar da criação na história da redenção. Então, por que ignorar o conceito de “cultivar e guardar” (Gn 1.19; 2.15), a primeira aliança de Deus com toda a sua criação (Gn 9), e a ética ambiental estabelecida no ano sabático e no Ano do Jubileu (Lv 25)? Por que diminuir os Salmos 19, 24, 33 e 104 a meros apetrechos decorativos, reduzir a missão de Deus à conversão de almas, quando o plano de Deus é a reconciliação de todas as coisas, em Cristo Jesus (Cl 1.20; Rm 12.18), e transferir para um céu abstrato o destino dos salvos, quando João fala de renovação da ordem criada e estabelecimento de “novos céus e nova terra” (Ap 21–22)?
Por que não resgatar para o mundo missionário contemporâneo o compromisso que William Carey – o pai das missões modernas e botânico, vale destacar – tinha com a transformação social e a paixão que ele nutria pela natureza desde a infância?8
Por que relegar ao esquecimento, como se fosse de menor importância, a defesa de Lutero de que o mundo criado é um poema de Deus, em que cada elemento manifesta a presença e a obra do Criador, e que os seres humanos estão intrinsecamente ligados à natureza?9
Por que os pregadores não abordam com mais frequência a criação de Deus, como John Wesley em seu sermão nº 64, em que ele defende que “a ressurreição corporal será acompanhada por uma renovação cósmica de toda a criação” e especula que “Deus poderia até mesmo conceder aos animais, na ordem redimida, a capacidade de amar a Deus”?10
Obviamente, é importante dizer que a realidade de Carey, Lutero e Wesley era totalmente diferente do que vivenciamos hoje. Portanto, é difícil fazer uma relação direta com a preservação, conservação e cuidado socioambiental nos termos que conhecemos atualmente. No entanto, a ética cristã ambiental que a vida e os ensinos deles evidenciam mostram que a responsabilidade cristã com o meio ambiente não é um assunto estranho ao evangelho, heresia e muito menos uma pauta ideológica que está se infiltrando nas igrejas.
Se quisermos olhar o tema com a ajuda de renomados autores cristãos contemporâneos, podemos mencionar Francis Schaeffer, John Stott, Christopher J. H. Wright, James Jones, Norman Wirzba, Juan Stam, Tim Carriker, Werner Fuchs, entre outros.
O próprio movimento Lausanne possui documentos importantes sobre o tema, como “O Chamado à Ação da Jamaica” (2012) e, o mais recente, “Boas Novas para Toda a Terra” (2024). Vale mencionar ainda a “Declaração evangélica sobre o cuidado com a criação” (2005), de Anthony Whitten, disponibilizado pela A Rocha.
Uma carta que uniu evangélicos de direita e esquerda na COP30?
Na segunda semana da conferência, foi publicada uma carta aberta, assinada por dezenas de pastores e líderes evangélicos. O documento, endereçado ao governo brasileiro, à presidência e à delegação brasileira na COP, fala da preocupação da igreja evangélica com o sofrimento do povo brasileiro diante da crise climática, da responsabilidade dos cristãos diante de Deus quanto ao cuidado com o meio ambiente, e afirma que cuidar da criação não é uma pauta ideológica, mas um princípio bíblico11.
Uma matéria do UOL afirmou que a carta conseguiu unir líderes evangélicos da esquerda e da direita, mas a verdade é que esse tema está longe de receber apoio ou simpatia da maioria dos evangélicos, ainda mais se tratando de um grupo hiper-heterogêneo e fragmentado, em que os muros das grandes denominações tradicionais e dos pequenos impérios neopentecostais se tornam cada vez mais altos, dificultando a aceitação de qualquer tema que não esteja alinhado às suas agendas, objetivos ou formas de trabalho.
Eu poderia, agora, invocar renomados cientistas climáticos cristãos, listar mais versículos bíblicos, artigos e autores internacionais e nacionais para argumentar que o cuidado da criação faz parte da missão da igreja. Mas enquanto eu refletia para escrever este texto, vi notícias do ciclone que deixou mais de 1.700 mortos no sudeste da Ásia12, as chuvas de granizo que danificaram casas, carros e plantações em municípios do sul do Brasil, e alagamentos em Tabatinga e em Manaus, AM.
Além disso, a Aliança Evangélica Brasileira continua prestando socorro aos moradores de Rio Bonito do Iguaçú, município paranaense que teve 90% de sua estrutura destruída por um tornado de nível F4, com ventos de até 418 km/h.
Quem poderá convencer os cristãos?
Diante da falta de consenso, de conhecimento ou entendimento (para não entrar na questão do negacionismo e da desinformação, que para isso precisaríamos de outro texto), creio que não poderia haver melhor professora que a própria criação de Deus:
“Pergunte, porém, aos animais, e eles o ensinarão; ou às aves dos céus, e elas lhe dirão; ou fale à terra, e ela o instruirá; e os peixes do mar o informarão” (Jó 12.7-8).
Portanto, aos cristãos que negam as mudanças climáticas, rejeitam o cuidado socioambiental como parte da missão da igreja e consideram inútil participar de espaços como a COP30, a própria realidade dará a devida resposta, justamente em territórios onde vivem os principais grupos que movimentos missionários visam alcançar com o evangelho. Secas severas, ondas de calor, inundações e outros eventos extremos serão, infelizmente, os juízes implacáveis dessa postura, mostrando que ignorar a crise não a faz desaparecer.
Notas
1. Texto final da COP30 (em inglês), denominado “Mutirão Global: unindo a humanidade em uma mobilização global contra a mudança climática”.
2. Quem são e o que querem os evangélicos na COP30.
3. “Mapa do caminho” ou roadmap (em inglês) é o termo usado em negociações internacionais para designar planos de ação que estabelecem etapas, prazos e metas concretas rumo a um objetivo comum. Na prática, trata-se de um roteiro político e técnico que define “quem faz o quê, até quando e com quais recursos”.
4. Conferência Pré-COP em Bonn: é uma reunião preparatória técnica realizada antes da Conferência das Partes (COP) anual, que reúne diplomatas para avançar nas negociações climáticas, alinhar pontos pendentes e preparar textos para a COP principal.
5. “Falta coragem política, não dinheiro”, diz Fearnside sobre COP30. Amazônia Real.
6. Declaração de Seul (Movimento Lausanne, 2024).
7. O conteúdo da carta com críticas à Declaração de Seul não está disponibilizado em algum link. Quem se interessar, solicitar via e-mail: p.marque.reis@gmail.com.
8. William Carey: o pai das missões modernas. Revista Batista Pioneira.
9. Lutero responde à crise ambiental. Unus Mundus.
10. John Wesley about “the Brute Creation”. The Batcave.
11. Carta aberta de lideranças evangélicas à delegação brasileira na COP30.
12. Mortes por inundações na Ásia passam de 1.700.
Resumos técnicos sobre os acordos da COP30
Resumão da COP. LACLIMA.
Entre choques geopolíticos e isolamento dos EUA, países salvam consensos mínimos para a transição. Climainfo.
Pacote de Belém: qual é o saldo do acordo final da COP30. Nexo.
REVISTA ULTIMATO – LEMBREM-SE: ‘DEIXO COM VOCÊS A PAZ, A MINHA PAZ LHES DOU”
Durante a última ceia com os discípulos, Jesus se despede com palavras de paz: “Deixo-vos a paz; a minha paz vos dou. Não a dou como o mundo a dá. Não vos perturbeis, nem vos atemorizeis”.
Por meio dos artigos de capa desta edição, Ultimato quer ajudar o leitor a se lembrar dessa verdade. Para fazer frente aos dias difíceis em que vivemos.
É disso que trata a edição 417. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Jesus e a Terra - A ética ambiental nos evangelhos, James Jones
» Entre negociações, críticas e desesperança: o que eu vi na COP30, por Phelipe Reis
» Quem são e o que querem os evangélicos na COP30, Notícia
Por Phelipe M. Reis
O que a COP30 tem a ver com o cuidado da criação e a missão da igreja? Neste texto, apresento algumas reflexões sobre o consenso, ou falta dele, nas negociações da COP e na compreensão dos evangélicos a respeito do escopo da missão da Igreja. Aponto também os desafios reais que a crise climática impõe a quem deseja participar da missão de Deus no mundo.
O desafio do consenso climático e o impasse dos combustíveis fósseisFrustração e decepção foram os sentimentos de cientistas, ambientalistas e representantes de organizações da sociedade civil quando o presidente da COP30, o embaixador brasileiro André Corrêa do Lago, leu o texto final na tarde de 22 de novembro1. A conferência, realizada entre 10 e 21 de novembro em Belém, PA, precisou ser estendida por mais um dia e acabou não sendo a COP da implementação, como muitos esperavam.
Foram 47.459 inscritos de 194 países, incluindo delegados, funcionários, voluntários e equipes de segurança. Como previsto, houve forte presença da sociedade civil, especialmente de povos indígenas, ainda que sua participação tenha sido limitada nas áreas oficiais. Vale mencionar a presença significativa de diversas iniciativas e grupos evangélicos, tanto nos espaços oficias quanto em atividades paralelas.
Na Zona Azul, as negociações avançaram noite adentro por doze dias, enquanto delegados debatiam caminhos para enfrentar a crise do clima, sob o olhar atento da imprensa, de especialistas e de centenas de observadores. Uma delegação de quase cinquenta evangélicos, mobilizadas pelo movimento Renovar Nosso Mundo, acompanhou as negociações, fizeram ações de advocacy e participaram de painéis e debates sobre diversos temas, como justiça climática, povos originários e as contribuições das comunidades de fé2.
Se até alguns anos atrás o desafio da comunidade científica nas COPs era provar que a mudança climática é real e não uma ficção ou teoria conspiratória, dessa vez o desafio focava nos combustíveis fósseis. O clamor dos cientistas era que o documento final apresentasse passos concretos para a eliminação gradual dessa matriz energética, responsável por 73% das emissões globais de gases de efeito estufa.
Antes e durante o evento, o governo brasileiro e a presidência da COP defenderam a construção de um roadmap, um mapa do caminho para abandonar os fósseis e alcançar o desmatamento zero3. O tema, porém, não constava na agenda oficial, definida previamente na Conferência de Bonn, na Alemanha4.
Um dos desafios das negociações consiste no processo de aprovação dos textos, que não se dá por meio de votação, mas de consenso. Se um dos países não concordar com algo, o texto não é aprovado. E quando o tema é a eliminação da exploração e do uso de combustível fóssil, chegar ao consenso é quase impossível, considerando o contexto geopolítico global sensível em que vivemos especialmente e por causa da dependência econômica que muitos países têm do petróleo.
Embora mais de oitenta países, tenham manifestado apoio ao mapa do caminho, houve grande resistência de um bloco de nações do Oriente Médio, liderados por Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Sem conseguir o consenso necessário, a alternativa apresentada pela presidência da COP foi assumir a responsabilidade e buscar construir esse caminho de forma “independente”, posteriormente.
Em entrevista à Amazônia Real, o cientista Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos vencedores do Nobel da Paz de 2007, avalia que a COP30 terminou marcada por uma falta generalizada de coragem política para enfrentar os motores centrais da crise climática5.
Afinal, se a conferência do clima não encarou o principal problema, então é tudo uma perda de tempo? São muitos aspectos que precisam ser avaliados.
Há quem aponte “pequenos grandes avanços”, como o apoio de mais de oitenta países à proposta do roadmap, cujo primeiro passo concreto será uma conferência convocada por Colômbia e Holanda prevista para abril de 2026. Especialistas também sinalizaram progressos nos textos de mitigação, no programa de transição justa e no reconhecimento de direitos de indígenas e povos tradicionais. Quem quiser se debruçar sobre essas questões mais técnicas, indico algumas fontes ao final do artigo.

Falta consenso entre os evangélicos sobre o escopo da missão da Igreja?
A falta de consenso não é privilégio ou exclusividade do processo multilateral adotado pela ONU. A dificuldade está em todos os espaços, inclusive em nossas igrejas e conferências missionárias.
Há alguns anos, fui convidado para auxiliar na coordenação de um seminário que se dedica a treinar obreiros de comunidades ribeirinhas e indígenas no interior da Amazônia. Passados alguns meses de observação, senti a necessidade e convoquei algumas pessoas estratégicas para uma reunião de avaliação. Queria ouvir os demais para identificarmos os avanços, os pontos que precisávamos melhorar, analisar a situação das cerca de cinquenta congregações e, principalmente, tentar estipular alvos mais claros para o trabalho. Éramos umas dez pessoas. Conversamos, discutimos e debatemos por cerca de duas horas. Ao final da reunião, saímos de lá sem clareza alguma quanto aos avanços, desafios e metas.
A Declaração de Seul (2024), documento oficial do Quarto Congresso de Evangelização Mundial de Lausanne6, recebeu muitas críticas. Excesso de foco em questões de sexualidade, pouca ou quase nenhuma menção a aspectos sociais inerentes ao evangelho e a redução da missão de Deus ao discipulado e à igreja local foram alguns dos pontos criticados por um grupo de teólogos e líderes sul-coreanos7.
A reclamação do grupo toca em um tema que o movimento evangélico global parece ter dificuldade em superar: a velha dualidade entre evangelismo e ação social, que, por sua vez, exclui da missão da igreja, ou coloca em segundo plano, tudo o que não esteja relacionado à evangelização, proclamação ou discipulado.
O caminho que Lausanne vinha trilhando, influenciado por teólogos como John Stott, René Padilla e Samuel Escobar, propunha que evangelismo e ação social caminhassem de mãos dadas. Tendência que pode ser observada tanto no Pacto de Lausanne (1974) como no Compromisso da Cidade do Cabo (2010). Já a Declaração de Seul reforça antagonismos e enfraquece a perspectiva holística da missão.
Falta consenso, entendimento ou conhecimento?
Se a visão evangélica majoritária global contemporânea alimenta a dificuldade em conciliar evangelização e ação social, nem precisa ir longe para receber críticas quando a intenção é integrar o cuidado ambiental à missão cristã.
De Gênesis a Apocalipse, a Bíblia está repleta de referências à natureza, à responsabilidade humana ecológica e ao lugar da criação na história da redenção. Então, por que ignorar o conceito de “cultivar e guardar” (Gn 1.19; 2.15), a primeira aliança de Deus com toda a sua criação (Gn 9), e a ética ambiental estabelecida no ano sabático e no Ano do Jubileu (Lv 25)? Por que diminuir os Salmos 19, 24, 33 e 104 a meros apetrechos decorativos, reduzir a missão de Deus à conversão de almas, quando o plano de Deus é a reconciliação de todas as coisas, em Cristo Jesus (Cl 1.20; Rm 12.18), e transferir para um céu abstrato o destino dos salvos, quando João fala de renovação da ordem criada e estabelecimento de “novos céus e nova terra” (Ap 21–22)?
Por que não resgatar para o mundo missionário contemporâneo o compromisso que William Carey – o pai das missões modernas e botânico, vale destacar – tinha com a transformação social e a paixão que ele nutria pela natureza desde a infância?8
Por que relegar ao esquecimento, como se fosse de menor importância, a defesa de Lutero de que o mundo criado é um poema de Deus, em que cada elemento manifesta a presença e a obra do Criador, e que os seres humanos estão intrinsecamente ligados à natureza?9
Por que os pregadores não abordam com mais frequência a criação de Deus, como John Wesley em seu sermão nº 64, em que ele defende que “a ressurreição corporal será acompanhada por uma renovação cósmica de toda a criação” e especula que “Deus poderia até mesmo conceder aos animais, na ordem redimida, a capacidade de amar a Deus”?10
Obviamente, é importante dizer que a realidade de Carey, Lutero e Wesley era totalmente diferente do que vivenciamos hoje. Portanto, é difícil fazer uma relação direta com a preservação, conservação e cuidado socioambiental nos termos que conhecemos atualmente. No entanto, a ética cristã ambiental que a vida e os ensinos deles evidenciam mostram que a responsabilidade cristã com o meio ambiente não é um assunto estranho ao evangelho, heresia e muito menos uma pauta ideológica que está se infiltrando nas igrejas.
Se quisermos olhar o tema com a ajuda de renomados autores cristãos contemporâneos, podemos mencionar Francis Schaeffer, John Stott, Christopher J. H. Wright, James Jones, Norman Wirzba, Juan Stam, Tim Carriker, Werner Fuchs, entre outros.
O próprio movimento Lausanne possui documentos importantes sobre o tema, como “O Chamado à Ação da Jamaica” (2012) e, o mais recente, “Boas Novas para Toda a Terra” (2024). Vale mencionar ainda a “Declaração evangélica sobre o cuidado com a criação” (2005), de Anthony Whitten, disponibilizado pela A Rocha.
Uma carta que uniu evangélicos de direita e esquerda na COP30?
Na segunda semana da conferência, foi publicada uma carta aberta, assinada por dezenas de pastores e líderes evangélicos. O documento, endereçado ao governo brasileiro, à presidência e à delegação brasileira na COP, fala da preocupação da igreja evangélica com o sofrimento do povo brasileiro diante da crise climática, da responsabilidade dos cristãos diante de Deus quanto ao cuidado com o meio ambiente, e afirma que cuidar da criação não é uma pauta ideológica, mas um princípio bíblico11.
Uma matéria do UOL afirmou que a carta conseguiu unir líderes evangélicos da esquerda e da direita, mas a verdade é que esse tema está longe de receber apoio ou simpatia da maioria dos evangélicos, ainda mais se tratando de um grupo hiper-heterogêneo e fragmentado, em que os muros das grandes denominações tradicionais e dos pequenos impérios neopentecostais se tornam cada vez mais altos, dificultando a aceitação de qualquer tema que não esteja alinhado às suas agendas, objetivos ou formas de trabalho.
Eu poderia, agora, invocar renomados cientistas climáticos cristãos, listar mais versículos bíblicos, artigos e autores internacionais e nacionais para argumentar que o cuidado da criação faz parte da missão da igreja. Mas enquanto eu refletia para escrever este texto, vi notícias do ciclone que deixou mais de 1.700 mortos no sudeste da Ásia12, as chuvas de granizo que danificaram casas, carros e plantações em municípios do sul do Brasil, e alagamentos em Tabatinga e em Manaus, AM.
Além disso, a Aliança Evangélica Brasileira continua prestando socorro aos moradores de Rio Bonito do Iguaçú, município paranaense que teve 90% de sua estrutura destruída por um tornado de nível F4, com ventos de até 418 km/h.
Quem poderá convencer os cristãos?
Diante da falta de consenso, de conhecimento ou entendimento (para não entrar na questão do negacionismo e da desinformação, que para isso precisaríamos de outro texto), creio que não poderia haver melhor professora que a própria criação de Deus:
“Pergunte, porém, aos animais, e eles o ensinarão; ou às aves dos céus, e elas lhe dirão; ou fale à terra, e ela o instruirá; e os peixes do mar o informarão” (Jó 12.7-8).
Portanto, aos cristãos que negam as mudanças climáticas, rejeitam o cuidado socioambiental como parte da missão da igreja e consideram inútil participar de espaços como a COP30, a própria realidade dará a devida resposta, justamente em territórios onde vivem os principais grupos que movimentos missionários visam alcançar com o evangelho. Secas severas, ondas de calor, inundações e outros eventos extremos serão, infelizmente, os juízes implacáveis dessa postura, mostrando que ignorar a crise não a faz desaparecer.
Notas
1. Texto final da COP30 (em inglês), denominado “Mutirão Global: unindo a humanidade em uma mobilização global contra a mudança climática”.
2. Quem são e o que querem os evangélicos na COP30.
3. “Mapa do caminho” ou roadmap (em inglês) é o termo usado em negociações internacionais para designar planos de ação que estabelecem etapas, prazos e metas concretas rumo a um objetivo comum. Na prática, trata-se de um roteiro político e técnico que define “quem faz o quê, até quando e com quais recursos”.
4. Conferência Pré-COP em Bonn: é uma reunião preparatória técnica realizada antes da Conferência das Partes (COP) anual, que reúne diplomatas para avançar nas negociações climáticas, alinhar pontos pendentes e preparar textos para a COP principal.
5. “Falta coragem política, não dinheiro”, diz Fearnside sobre COP30. Amazônia Real.
6. Declaração de Seul (Movimento Lausanne, 2024).
7. O conteúdo da carta com críticas à Declaração de Seul não está disponibilizado em algum link. Quem se interessar, solicitar via e-mail: p.marque.reis@gmail.com.
8. William Carey: o pai das missões modernas. Revista Batista Pioneira.
9. Lutero responde à crise ambiental. Unus Mundus.
10. John Wesley about “the Brute Creation”. The Batcave.
11. Carta aberta de lideranças evangélicas à delegação brasileira na COP30.
12. Mortes por inundações na Ásia passam de 1.700.
Resumos técnicos sobre os acordos da COP30
Resumão da COP. LACLIMA.
Entre choques geopolíticos e isolamento dos EUA, países salvam consensos mínimos para a transição. Climainfo.
Pacote de Belém: qual é o saldo do acordo final da COP30. Nexo.
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Saiba mais:
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É natural do Amazonas, casado com Luíze e pai da Elis e do Joaquim. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e mestre em Missiologia no Centro Evangélico de Missões (CEM). É missionário e colaborador do Portal Ultimato.
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