Opinião
29 de julho de 2025- Visualizações: 5378
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1700 anos do Concílio de Niceia
O que aconteceu em Niceia que sobreviveu ao teste do tempo?
Por Carlos Caldas
O ano de 2025 marca 1700 anos da realização do Concílio de Niceia, que teve como um de seus principais resultados a formulação do Credo de Niceia. Este documento importante da fé cristã já tem então 17 séculos. Há algo a aprender de um texto formulado há tanto tempo? Afinal, vivemos no tempo do efêmero, que tem como seu principal símbolo um story de trinta segundos do Instagram, que se apaga após 24 horas. O simples fato de saber que há um documento que escapa ao domínio da efemeridade que impera em nosso tempo é suficiente para nos fazer parar para pensar. O que aconteceu em Niceia que sobreviveu ao teste do tempo? Veremos.
No primeiro quarto do quarto século da era cristã – para ser mais preciso, no ano 325 – o Império Romano não mais perseguia os cristãos. Estes encontravam-se divididos por uma controvérsia teológica: de um lado, os arianos, isto é, os seguidores de Ário, um cristão egípcio que acreditava em uma cristologia fraca, desidratada, por assim dizer, pois negava a divindade de Jesus. Para Ário, Jesus foi importante, mas não divino. Consequentemente, Ário negava a fé cristã na Trindade.1 Do outro lado estavam os cristãos que, negando o arianismo, confessaram a fé em Jesus como divino, e, a partir daí, sua fé na Trindade. O Imperador Constantino, provavelmente seguindo uma sugestão de Hósio de Córdoba, seu conselheiro em assuntos religiosos, convocou um concílio para estudar a questão e dirimir de vez qualquer dúvida. Não se sabe se Constantino convocou a reunião de moto próprio ou se o fez com algum tipo de autorização do papa da época, Silvestre I. Por razões de logística e estratégia, o concílio se reuniu na cidade de Niceia, na Ásia Menor, que corresponde à Turquia atual. Os registros históricos informam que compareceram bispos orientais (falantes de grego) e ocidentais (falantes de latim), provenientes de lugares tão distantes e até improváveis, como a Pérsia (atual Irã), a Índia, a Trácia (atual Bulgária) e ainda regiões do norte da África (como Cartago, na atual Tunísia, e o Egito), da Grécia, da Itália, do Oriente Médio (Jerusalém), da Espanha, da Gália (a França atual) e da Panônia (um território que corresponde a partes das atuais Áustria, Eslovênia, Sérvia e Croácia).2 Quantos foram os conciliares? Não há certeza entre os historiadores a respeito desta questão. Eusébio de Cesareia falou em 250 participantes. Atanásio de Alexandria, que participou do evento, afirmou que eram 318.3 O que se sabe com certeza é que o citado Hósio de Córdoba presidiu as sessões do concílio, auxiliado por Victor e Vicencius (“Vicente”), legados, isto é, representantes oficiais do Papa Silvestre.4
Mas, afinal, o que o concílio decidiu? Vejamos a formulação do Credo de Niceia propriamente:
Cremos em Deus Pai Todo Poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E (cremos) em um Senhor, Jesus Cristo, o unigênito do Pai, que é da essência [ek tes ousias] do Pai, Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, da mesma substância com o Pai [homoousion to patri], por intermédio de quem todas as coisas foram criadas no céu e na terra; para nós humanos e para nossa salvação desceu, encarnou-se e se tornou homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos. E (cremos) no Espírito Santo. Aqueles que dizem: houve um tempo em que Ele (Cristo) não era, e que Ele não existia antes de ser gerado e que Ele foi feito do nada [ex ouk onton], ou os que defendem que Ele é de outra substância [hypostasis] diferente (da do Pai) ou que o Filho de Deus foi criado, é mutável ou sujeito à mudança, a Igreja Católica anatematiza.5
Cristãos que não têm treinamento teológico terão dificuldade para entender os termos técnicos gregos da discussão cristológica realizada em Niceia. E na liturgia da maioria das igrejas evangélicas no Brasil não se realiza a recitação de nenhuma afirmação de fé na forma dos credos, seja o Apostólico ou o Niceno, o que é lastimável. Tal ausência empobrece a vida das comunidades de fé. Por isso, é importante resgatar o Credo Niceno que, para quase todas as igrejas brasileiras, especialmente as evangélicas, pentecostais ou não, é um ilustre desconhecido.

Há que se lembrar também que o Concílio de Niceia tem sido atacado por quem não entende nada de teologia e nem conhece a história da igreja cristã. Há cerca de vinte anos o romancista norte-americano Dan Brown, autor de O código Da Vinci, que se tornou um mega sucesso de vendas, popularizou teses bizarras sobre Niceia, por exemplo, que a declaração da divindade de Cristo foi uma jogada política de Constantino e do Vaticano, e que o imperador decidiu que livros fariam parte do Novo Testamento. Desnecessário dizer que são afirmações absurdas e sem base, mas até hoje há quem as aceite.
Outro fator importante a ser considerado é o aspecto ecumênico do Concílio de Niceia. A fórmula nicena é adotada por cristãos romanos, ortodoxos (bizantinos e orientais) e protestantes (a Reforma não rejeitou o Credo Niceno, antes, adotou-o). Logo, o Credo Niceno é uma expressão bela da fé comum dos cristãos, um terreno no qual um católico romano, um ortodoxo e um protestante pisam. O cristianismo desde muito cedo tem sido manchado por divisionismos, muitos destes motivados por questiúnculas, e não por pontos essenciais à fé. Com estas divisões a tendência é que cada grupo pense que é o único certo, e que todos os demais estão errados. A lembrança dos 1700 anos do Concílio de Niceia é um apelo a que os cristãos do mundo inteiro valorizem o que têm em comum uns com os outros, e que assim possam dar um testemunho ao mundo da sua fé no mistério de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Notas
1. As Testemunhas de Jeová adotam uma cristologia ariana, pois negam a divindade de Jesus. O mesmo se aplica ao islamismo: Jesus está presente na fé islâmica, mas é entendido apenas como um “servo de Deus” (abdullah em árabe), não como divino.
2. As informações históricas referentes ao Concílio de Niceia foram extraídas de New Advent. The First Council of Nicea. Disponível aqui. Acesso em 25 de julho de 2025.
3. O número 318 traz à memória o texto de Gn 14.14, que fala que eram justamente 318 homens sob o comando de Abraão que lutaram contra o exército que havia sequestrado seu sobrinho Ló. Ao afirmar que o número dos conciliares em Niceia era o mesmo dos liderados de Abraão estaria Atanásio sugerindo (sutil ou explicitamente) que os formuladores do Credo de Niceia eram “campões de Deus” na luta contra a heresia ariana?
4. Curioso observar os significados dos nomes dos legados papais: Victor, o vitorioso, e Vicente, o que vence: nomes simbólicos da vitória da ortodoxia acontecida em Niceia.
5. Extraído do já citado verbete da New Advent, a anteriormente mencionada enciclopédia de termos teológicos cristãos (tradução nossa). Os termos entre parênteses estão subentendidos e os entre colchetes são os termos gregos usados pelos conciliares em Niceia. A palavra “Católica” na última sentença deve ser entendida em seu sentido literal de universal, geral, e não como uma referência à igreja romana.
Imagem: Wikimedia commons.
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Muito já se falou da adolescência como uma fase crítica da vida, em que as dificuldades próprias da idade inspiram cuidados especiais – o que é ainda mais importante hoje.
Os adolescentes desta geração são o grupo mais impactado pelo ritmo acelerado das mudanças. A matéria dessa edição oferece subsídio para melhor conhecer e atuar com esse grupo. Nos depoimentos dos 12 adolescentes que participam eles pedem: “Acreditem em nós!”.
É disso que trata a edição 414 de Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Raízes de um Evangelho Integral – Missão em perspectiva histórica, Valdir Steuernagel, René Padilla (editor)
» Conversas Com Lutero – história e pensamento, Elben César
» Concílio de Niceia – 1.700 anos, Alderi Souza de Matos
Por Carlos Caldas
O ano de 2025 marca 1700 anos da realização do Concílio de Niceia, que teve como um de seus principais resultados a formulação do Credo de Niceia. Este documento importante da fé cristã já tem então 17 séculos. Há algo a aprender de um texto formulado há tanto tempo? Afinal, vivemos no tempo do efêmero, que tem como seu principal símbolo um story de trinta segundos do Instagram, que se apaga após 24 horas. O simples fato de saber que há um documento que escapa ao domínio da efemeridade que impera em nosso tempo é suficiente para nos fazer parar para pensar. O que aconteceu em Niceia que sobreviveu ao teste do tempo? Veremos. No primeiro quarto do quarto século da era cristã – para ser mais preciso, no ano 325 – o Império Romano não mais perseguia os cristãos. Estes encontravam-se divididos por uma controvérsia teológica: de um lado, os arianos, isto é, os seguidores de Ário, um cristão egípcio que acreditava em uma cristologia fraca, desidratada, por assim dizer, pois negava a divindade de Jesus. Para Ário, Jesus foi importante, mas não divino. Consequentemente, Ário negava a fé cristã na Trindade.1 Do outro lado estavam os cristãos que, negando o arianismo, confessaram a fé em Jesus como divino, e, a partir daí, sua fé na Trindade. O Imperador Constantino, provavelmente seguindo uma sugestão de Hósio de Córdoba, seu conselheiro em assuntos religiosos, convocou um concílio para estudar a questão e dirimir de vez qualquer dúvida. Não se sabe se Constantino convocou a reunião de moto próprio ou se o fez com algum tipo de autorização do papa da época, Silvestre I. Por razões de logística e estratégia, o concílio se reuniu na cidade de Niceia, na Ásia Menor, que corresponde à Turquia atual. Os registros históricos informam que compareceram bispos orientais (falantes de grego) e ocidentais (falantes de latim), provenientes de lugares tão distantes e até improváveis, como a Pérsia (atual Irã), a Índia, a Trácia (atual Bulgária) e ainda regiões do norte da África (como Cartago, na atual Tunísia, e o Egito), da Grécia, da Itália, do Oriente Médio (Jerusalém), da Espanha, da Gália (a França atual) e da Panônia (um território que corresponde a partes das atuais Áustria, Eslovênia, Sérvia e Croácia).2 Quantos foram os conciliares? Não há certeza entre os historiadores a respeito desta questão. Eusébio de Cesareia falou em 250 participantes. Atanásio de Alexandria, que participou do evento, afirmou que eram 318.3 O que se sabe com certeza é que o citado Hósio de Córdoba presidiu as sessões do concílio, auxiliado por Victor e Vicencius (“Vicente”), legados, isto é, representantes oficiais do Papa Silvestre.4
Mas, afinal, o que o concílio decidiu? Vejamos a formulação do Credo de Niceia propriamente:
Cremos em Deus Pai Todo Poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E (cremos) em um Senhor, Jesus Cristo, o unigênito do Pai, que é da essência [ek tes ousias] do Pai, Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, da mesma substância com o Pai [homoousion to patri], por intermédio de quem todas as coisas foram criadas no céu e na terra; para nós humanos e para nossa salvação desceu, encarnou-se e se tornou homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos. E (cremos) no Espírito Santo. Aqueles que dizem: houve um tempo em que Ele (Cristo) não era, e que Ele não existia antes de ser gerado e que Ele foi feito do nada [ex ouk onton], ou os que defendem que Ele é de outra substância [hypostasis] diferente (da do Pai) ou que o Filho de Deus foi criado, é mutável ou sujeito à mudança, a Igreja Católica anatematiza.5
Cristãos que não têm treinamento teológico terão dificuldade para entender os termos técnicos gregos da discussão cristológica realizada em Niceia. E na liturgia da maioria das igrejas evangélicas no Brasil não se realiza a recitação de nenhuma afirmação de fé na forma dos credos, seja o Apostólico ou o Niceno, o que é lastimável. Tal ausência empobrece a vida das comunidades de fé. Por isso, é importante resgatar o Credo Niceno que, para quase todas as igrejas brasileiras, especialmente as evangélicas, pentecostais ou não, é um ilustre desconhecido.

Há que se lembrar também que o Concílio de Niceia tem sido atacado por quem não entende nada de teologia e nem conhece a história da igreja cristã. Há cerca de vinte anos o romancista norte-americano Dan Brown, autor de O código Da Vinci, que se tornou um mega sucesso de vendas, popularizou teses bizarras sobre Niceia, por exemplo, que a declaração da divindade de Cristo foi uma jogada política de Constantino e do Vaticano, e que o imperador decidiu que livros fariam parte do Novo Testamento. Desnecessário dizer que são afirmações absurdas e sem base, mas até hoje há quem as aceite.
Outro fator importante a ser considerado é o aspecto ecumênico do Concílio de Niceia. A fórmula nicena é adotada por cristãos romanos, ortodoxos (bizantinos e orientais) e protestantes (a Reforma não rejeitou o Credo Niceno, antes, adotou-o). Logo, o Credo Niceno é uma expressão bela da fé comum dos cristãos, um terreno no qual um católico romano, um ortodoxo e um protestante pisam. O cristianismo desde muito cedo tem sido manchado por divisionismos, muitos destes motivados por questiúnculas, e não por pontos essenciais à fé. Com estas divisões a tendência é que cada grupo pense que é o único certo, e que todos os demais estão errados. A lembrança dos 1700 anos do Concílio de Niceia é um apelo a que os cristãos do mundo inteiro valorizem o que têm em comum uns com os outros, e que assim possam dar um testemunho ao mundo da sua fé no mistério de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Notas
1. As Testemunhas de Jeová adotam uma cristologia ariana, pois negam a divindade de Jesus. O mesmo se aplica ao islamismo: Jesus está presente na fé islâmica, mas é entendido apenas como um “servo de Deus” (abdullah em árabe), não como divino.
2. As informações históricas referentes ao Concílio de Niceia foram extraídas de New Advent. The First Council of Nicea. Disponível aqui. Acesso em 25 de julho de 2025.
3. O número 318 traz à memória o texto de Gn 14.14, que fala que eram justamente 318 homens sob o comando de Abraão que lutaram contra o exército que havia sequestrado seu sobrinho Ló. Ao afirmar que o número dos conciliares em Niceia era o mesmo dos liderados de Abraão estaria Atanásio sugerindo (sutil ou explicitamente) que os formuladores do Credo de Niceia eram “campões de Deus” na luta contra a heresia ariana?
4. Curioso observar os significados dos nomes dos legados papais: Victor, o vitorioso, e Vicente, o que vence: nomes simbólicos da vitória da ortodoxia acontecida em Niceia.
5. Extraído do já citado verbete da New Advent, a anteriormente mencionada enciclopédia de termos teológicos cristãos (tradução nossa). Os termos entre parênteses estão subentendidos e os entre colchetes são os termos gregos usados pelos conciliares em Niceia. A palavra “Católica” na última sentença deve ser entendida em seu sentido literal de universal, geral, e não como uma referência à igreja romana.
Imagem: Wikimedia commons.
REVISTA ULTIMATO – ADOLESCÊNCIA – ONLINE E OFFLINEMuito já se falou da adolescência como uma fase crítica da vida, em que as dificuldades próprias da idade inspiram cuidados especiais – o que é ainda mais importante hoje.
Os adolescentes desta geração são o grupo mais impactado pelo ritmo acelerado das mudanças. A matéria dessa edição oferece subsídio para melhor conhecer e atuar com esse grupo. Nos depoimentos dos 12 adolescentes que participam eles pedem: “Acreditem em nós!”.
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» Raízes de um Evangelho Integral – Missão em perspectiva histórica, Valdir Steuernagel, René Padilla (editor)
» Conversas Com Lutero – história e pensamento, Elben César
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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