Opinião
- 05 de outubro de 2017
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O Espírito contestatório dos reformados
Por Ricardo Bitun
Há uma grande expectativa e movimentação no cenário religioso mundial especialmente no universo chamado protestante. A razão desta movimentação se dá em virtude da comemoração dos 500 anos da Reforma. Ao afixar suas 95 teses, em 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Martinho Lutero faz com que a rachadura no interior da igreja católica romana, que se arrastava há décadas, seja finalmente rompida.
A Reforma não acontece de uma hora para outra, a Europa já vivia um momento bastante delicado, em um contexto social extremamente conturbado. O movimento reformista cristão irrompe com os reformadores no século XVI, porém, encontramos as marcas da Reforma dentro da história da própria igreja.
Uma destas marcas é a inquietação que movia o coração tanto dos chamados reformados, como também dos pré-reformados¹. Diante desta inquietação cabe-nos uma pergunta inquietante: “Comemoraremos 500 anos de reforma da Igreja Cristã, ou 500 anos do início da Reforma Cristã? Explico. Estamos celebrando agora em 2017 quinhentos anos de uma Igreja que está em constante reforma, dinâmica e, como organismo vivo, transformando-se dia após dia à imagem e semelhança do Filho no E(e)spírito da Reforma, ou apenas celebraremos cinco centenas de anos de um evento histórico ocorrido no século XVI?
Caso a resposta seja 500 anos de Reforma, a pergunta que se impõe logo em seguida é: Nós, como igreja brasileira reformada evangélica, pensando em igreja não como o lugar para onde vamos e sim o que somos, temos sido uma igreja não se conforma com a situação de nossos dias? Temos nos inquietado com os problemas que afligem nosso próximo, sejam eles de longe ou próximos de perto?
Temos sido, como igreja reformada, uma geração, assim como os reformadores de sua época, cristãos inconformados com as notícias que circulam diariamente pela mídia? Caso entendamos que somos esta igreja inconformada e inquieta com a situação atual que vivemos, urge outra pergunta: faríamos uma reforma levantando qual bandeira? Por onde começaríamos “nossa reforma?”. Entendendo que o espírito da Reforma, é um espírito de contracultura, que vai de encontro com o status quo iníquo e dominante de sua época, por qual ponto exatamente começaríamos?
Um movimento de continuidade da voz profética
Aprofundando um pouco mais nossa reflexão, constatamos que tanto Lutero, como os pré-reformadores dão continuidade a esta igreja que se auto-examina, que está em constante reforma. A reforma não é um movimento de ruptura e sim de continuidade da voz profética que sempre permeou a igreja e o povo de Deus. A ruptura acontece quando a voz profética não é ouvida e a desobediência é estabelecida. E, por conseguinte, surge o perigo do ramo² ser arrancado da oliveira, a qual continua sempre viva e frondosa dando continuidade àquilo que foi iniciado desde pentecostes.
Assim, tanto a Reforma como os movimentos pré-reformadores reivindicavam despertar a Igreja para voltar à proclamação do evangelho e sua promessa frente à catastrófica e calamitosa existência humana. Em outras palavras, estes movimentos levantavam duas bandeiras principais: o retorno à simplicidade do evangelho (entenda-se como simplicidade a desburocratização da Igreja, a diminuição de sua excessiva mediação nas situações da vida e o retorno à virtuosa pobreza) e o acesso às Sagradas Escrituras. Em suma, o endireitamento de suas veredas³.
O princípio reformado, ou para alguns pós-reformados, de uma “igreja reformada, sempre reformando” (Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est) deve permear e transformar nosso cotidiano. Ao falarmos da e de reforma é certo que devemos lembrar seus princípios e fundamentos, ensinados e sobretudo vividos. Porém, deve existir em nós, protestantes, esta voz profética de inconformidade e resistência à institucionalização, ao engessamento estrutural de uma experiência, sejam pentecostais ou históricos. Uma resistência ao aprisionamento a certas interpretações, dogmas, valores que não se sustentam, simplesmente pelo fato de que um dia foram bons para a igreja.
Entendo que o mote Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est (de autoria do reformado holandês Gisbertus Voetius, 1589-1676), parafraseando as Escrituras, deve ser vivo e eficaz em nossos dias. Há quem afirme, e concordamos com isso, que não foi a intenção de Voetius a “ecclesia reformans”, Igreja se reforma a si mesma, mas “ecclesia reformanda”, indicando que o agente da reforma não é ela própria, mas sim o Espírito de Deus. “E este certamente promove o crescimento e a compreensão das Escrituras a cada nova geração, sem com isso admitir que a verdade muda”4.
Não estou com isso usando este mote da Reforma aqui para legitimar um vale tudo eclesiológico/litúrgico, muito menos legitimar uma rebeldia juvenil. Como Voetius, creio também que a Igreja deve estar permanentemente sensível para diferentes iluminações advindas do Espírito, à Luz das Escrituras. Experiências novas de vida no caminhar com o Senhor, onde conviveremos com transformações, dúvidas e questionamentos. Enfim, olhar para a realidade oferecendo respostas às questões da sociedade, assim como os reformadores o fizeram, oferecendo respostas que ecoam até nossos dias.
Reformar é lembrar o que outros esquecem
Pensando um pouco em nossos dias, surge outra pergunta: até onde há continuidade na conexão com o espírito profético reformado? Ou seja, existe uma geração engajada em encarnar esta voz profética da igreja, dando continuidade às reformas necessárias em seu tempo?
Podemos conectar esta pergunta a uma afirmação feita pelo historiador inglês Eric Hobsbawn:
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca [...]5
Como os reformadores “lembraram” de sua história, do legado deixado por várias gerações de mártires ao longo da caminhada cristã, e avançaram nas questões concernentes ao seu tempo, nós também, não podemos correr o risco de sermos um povo sem memória. Constantemente o Senhor Deus lembrava o seu povo de onde tinham saído e a razão de lhes ter gerado como nação: “lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito.” (Dt. 15:15); “Lembra-te destas coisas, ó Jacó, e Israel, porquanto és meu servo; eu te formei, meu servo és, ó Israel, não me esquecerei de ti.” (Is. 44:21).
Cabe então a pergunta: Estaríamos assim também crescendo sem conexão com o nosso passado, com os ideais que os reformadores nos deixaram como legado? Comemoraríamos apenas e tão somente um evento histórico ocorrido em 1517? Estamos ano a ano apenas e tão somente lembrando de alguma coisa que aconteceu um dia, mas hoje são apenas lembranças remotas de um passado distante?
A Reforma e a produção da riqueza
À guisa de considerações finais, percebemos que estas inquietações trazidas pela Reforma nos fazem refletir cada vez mais sobre a voz profética ouvida ao longo de toda a história da igreja pelos profetas de Deus e nossa geração.
Tanto a vida econômica como as reformas sociais propostas por Lutero, Calvino e demais reformadores desafiavam a atuação da Igreja em uma reforma integral da sociedade. Essa atuação implicava, por exemplo, no estabelecimento de regras para a produção da riqueza, no atendimento dos pobres, na distribuição equitativa dos bens entre ricos e pobres.
Calvino insistia que a propriedade deveria ser defendida do furto, cabendo ao Estado uma função reguladora da economia, da ordem jurídica, do comércio, da propriedade e da escravidão. Por isso mesmo, a atividade dos banqueiros, dos mercadores, dos que emprestavam dinheiro a juros, e as relações entre devedores e credores recebiam uma atenção especial nas ordenanças e na reflexão teológica de Calvino (CAMPOS, 2010)6.
Estaríamos também, como igreja intermediando, ou ao menos denunciando estas relações assimétricas entre devedores e credores? Entre países pobres, endividados, doentes e famintos e países com fortunas incalculáveis esbanjando seus recursos em ilhas sociais paradisíacas?
A revista norte americana Forbes fez uma pesquisa com empresas de 63 países, apresentando as vinte maiores corporações de capital aberto do planeta no ano de 2016. Resultado: das vinte maiores empresas do mundo em 2016, nove são bancos.
Como de costume, depois da crise de 2008, a China e não os EUA domina as primeiras posições do levantamento, tendo o ICBC, em primeiro lugar, pelo quarto ano consecutivo, o China Construction Bank em segundo lugar, e o Agricultural Bank of China em terceiro. Os EUA, no entanto, representam ainda a maior quantidade de empresas do ranking, com 586 companhias. A China tem 249 empresas, o Japão 219, o Reino Unido 92 e a Coréia do Sul 67 (Forbes, 2000)7.
Zygmunt Bauman, em sua obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” (2013), apresenta em sua perspectiva, do quanto as misérias e as mazelas do mundo chamado pós-moderno são fomentadas pela busca exacerbada do acumulo de capital: “Se há fartura sem medidas na mesa de poucos, há fome voraz no prato de milhões”.
Segundo Bauman, a desigualdade humana é hoje, mais do que em eras passadas, estarrecedora, mesmo que se produza um volume muito maior que antes na agricultura e na pecuária. Porque então, a fome ainda mata milhões de pessoas ao redor do Mundo?
Em relação à enorme desigualdade social, Bauman argumenta que “o padrão de vida em qualquer lugar da terra nunca era mais que duas vezes superior àquela em vigor na região mais pobre (referindo-se ao período pré-moderno)”. Em países como o Qatar, sua renda per capta atinge 428 vezes mais que aquela encontrada em países como o Zimbábue. Abismo “crescente que separa os pobres e os sem perspectiva abastados” (Bauman 2013).
O número de bilionários nos EUA aumentou quarenta vezes nos últimos 25 anos, até 2007, enquanto o total de riqueza dos quatrocentos americanos mais ricos aumentou de US$ 169 bilhões para US$ 1,5 trilhão. Depois de 2007, durante os anos de colapso de crédito, seguido por depressão econômica e desemprego crescente, a tendência adquiriu ritmo verdadeiramente exponencial: em vez de atingir a todos em igual medida, como era amplamente esperado e retratado, o flagelo se mostrou severo e tenazmente seletivo na distribuição de seus golpes. Em 2011, o numero de bilionários nos EUA alcançou seu recorde histórico até a data chegando a 1.2109, ao passo que sua riqueza combinada cresceu de US$ 3,5 trilhões em 2007 para US$ 4,5 trilhões em 2010 (Bauman, 2013).
O “Center for American Progress” (Centro para o Progresso Americano) com sede em Washington, D.C., apresentou uma pesquisa revelando que ‘durante três décadas, a renda média dos 50% na base da escala cresceu 6% enquanto a renda do 1% no topo cresceu 229%.
Diante destes dados creio que a voz profética da igreja, ouvida durante a Reforma Protestante de 1531, ressoaria como musica de esperança aos ouvidos dos necessitados, enquanto trovoaria na consciência daqueles que a enfrentam. Faríamos ressoar mais uma vez a voz da Reforma: “Ninguém quer olhar para baixo. Lá tem pobreza, desonra, miséria, desgraça e angústia. Todo mundo desvia o olhar disso. Todos se afastam de pessoas dessa espécie. Evitam, rejeitam e abandonam essa gente, e ninguém se lembra de lhes ajudar e de trabalhar para que também sejam alguém. (Martinho Lutero)
Pensamos que estas relações de desigualdade crescem e se aprofundam na mesma proporção que a igreja se distancia da Reforma, ou melhor, dos ecos proféticos que um dia lhe foram outorgados pelo Senhor da Igreja. Os poucos dados apresentados acima certamente deveriam trazer comoção àquela (a noiva) que é sensível as mazelas humanas. E com a mesma coragem que Lutero enfrentou seus inquisidores repetiríamos: "A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado, eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra a minha consciência não é correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém."
Igreja contestante ou contestada?
Os reformadores estavam sensíveis às atrocidades espirituais assim como às sociais. Não lhes passa desapercebidos o sofrimento do povo. Daí a voz da contestação subir-lhes à garganta. Como disse o historiador: “O verdadeiro escândalo seria se a igreja pudesse perder a liberdade de contestação do mundo e de si mesma; ela recebeu essa liberdade do Espírito Santo como um dom e um dever. A Igreja nasceu confessante e contestante; ela testemunha a boa-nova da salvação e se choca com as resistências suscitadas pela mensagem das bem-aventuranças. É, portanto, sobre esse ponto que se faz necessário, incessantemente, verificar sua fidelidade, e contestá-la, se for o caso: “Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens” (Mt 5.13).
Esta reflexão se faz necessária nos dias de hoje. Não só em relação ao mundo político, econômico e social, como também uma contestação no seio da igreja, banhada de religiosidade mágica, utilitária e pueril, como bem nos mostra a igreja eletrônica no Brasil. Caso contrário, a Igreja que se via como contestante, passará rapidamente a mais uma vez ser contestada. E, novamente, o Espírito se levantará e tomará o profeta a fim de que seu remanescente seja mais uma vez preservado.
Termino deixando as palavras de Patrick Jacquemont:
“Igreja contestadora, onde estás? Os homens de hoje, em suas buscas e em suas recusas, precisam de tua contestação. Não te deixes intimidar pelas críticas que eles te fazem, porque elas exprimem uma questão que eles te apresentam. Não despreza tua esperança, seja por uma demagogia que o evita. Permite-nos também, teus filhos, te interpelar. Porque, se nós ousamos te contestar, nós que te amamos, é porque, vivendo entre os homens, participando de seus problemas, nós desejaríamos poder ser contigo, Igreja de Jesus Cristo, aqueles que, confessando e contestando, os convidam a avançar em direção ao futuro que é a Porta de Deus, em direção ao Homem que é Filho de Deus”8.
Notas:
Texto extraído do capítulo 3 - Breves considerações sobre a Reforma Protestante e seu caráter profético nos dias de hoje, do livro: A Reforma Protestante: História, Teologia e Desafios. Ed Hagnos. Ricardo Bitun (org).
1 John Wycliffe (1328 - 1384); John Huss (1373-1415); Jerônimo Savonarola (1452-1498); Os Valdenses; Os Lolardos; Os Albigenses; William Tyndale (1484-1536);
2 Se alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira, não se glorie contra esses ramos. Se o fizer, saiba que não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você. Então você dirá: "Os ramos foram cortados, para que eu fosse enxertado". Está certo. Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema. Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você. Romanos 11:17-21 (NVI)
3 Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, Endireitai as suas veredas. Mc 1.3 (Almeida Corrigida e Revisada Fiel)
4 Augustus Nicodemus Lopes. Tempora mores. http://tempora-mores.blogspot.com.br/2006/04/sempre-reformando-ou-sempr_114616276237762560.html
5 Hobsbawn, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX,1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p.13
6 Entrevista concedida pelo Prof. Dr. Leonildo Campos ao site amai-vos em 12 de Abril de 2010. http://amaivos.uol.com.br/amaivos2015/?pg=noticias&cod_canal=41&cod_noticia=14589
7 Exame.abril.com
8 Jacquemont, Patrick. A Igreja do Futuro. Ed Vozes.
• Ricardo Bitun possui graduação em Teologia pelo Seminário Bíblico de São Paulo (1987), graduação em Ciências Sociais pela Universidade São Marcos (1993), mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (1996) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Atualmente é adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do curso de pós-graduação do Programa de Ciências da Religião da Universidade Presbiterana Mackenzie. Pastor da Igreja Evangélica Manaim.
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Há uma grande expectativa e movimentação no cenário religioso mundial especialmente no universo chamado protestante. A razão desta movimentação se dá em virtude da comemoração dos 500 anos da Reforma. Ao afixar suas 95 teses, em 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Martinho Lutero faz com que a rachadura no interior da igreja católica romana, que se arrastava há décadas, seja finalmente rompida.
A Reforma não acontece de uma hora para outra, a Europa já vivia um momento bastante delicado, em um contexto social extremamente conturbado. O movimento reformista cristão irrompe com os reformadores no século XVI, porém, encontramos as marcas da Reforma dentro da história da própria igreja.
Uma destas marcas é a inquietação que movia o coração tanto dos chamados reformados, como também dos pré-reformados¹. Diante desta inquietação cabe-nos uma pergunta inquietante: “Comemoraremos 500 anos de reforma da Igreja Cristã, ou 500 anos do início da Reforma Cristã? Explico. Estamos celebrando agora em 2017 quinhentos anos de uma Igreja que está em constante reforma, dinâmica e, como organismo vivo, transformando-se dia após dia à imagem e semelhança do Filho no E(e)spírito da Reforma, ou apenas celebraremos cinco centenas de anos de um evento histórico ocorrido no século XVI?
Caso a resposta seja 500 anos de Reforma, a pergunta que se impõe logo em seguida é: Nós, como igreja brasileira reformada evangélica, pensando em igreja não como o lugar para onde vamos e sim o que somos, temos sido uma igreja não se conforma com a situação de nossos dias? Temos nos inquietado com os problemas que afligem nosso próximo, sejam eles de longe ou próximos de perto?
Temos sido, como igreja reformada, uma geração, assim como os reformadores de sua época, cristãos inconformados com as notícias que circulam diariamente pela mídia? Caso entendamos que somos esta igreja inconformada e inquieta com a situação atual que vivemos, urge outra pergunta: faríamos uma reforma levantando qual bandeira? Por onde começaríamos “nossa reforma?”. Entendendo que o espírito da Reforma, é um espírito de contracultura, que vai de encontro com o status quo iníquo e dominante de sua época, por qual ponto exatamente começaríamos?
Um movimento de continuidade da voz profética
Aprofundando um pouco mais nossa reflexão, constatamos que tanto Lutero, como os pré-reformadores dão continuidade a esta igreja que se auto-examina, que está em constante reforma. A reforma não é um movimento de ruptura e sim de continuidade da voz profética que sempre permeou a igreja e o povo de Deus. A ruptura acontece quando a voz profética não é ouvida e a desobediência é estabelecida. E, por conseguinte, surge o perigo do ramo² ser arrancado da oliveira, a qual continua sempre viva e frondosa dando continuidade àquilo que foi iniciado desde pentecostes.
Assim, tanto a Reforma como os movimentos pré-reformadores reivindicavam despertar a Igreja para voltar à proclamação do evangelho e sua promessa frente à catastrófica e calamitosa existência humana. Em outras palavras, estes movimentos levantavam duas bandeiras principais: o retorno à simplicidade do evangelho (entenda-se como simplicidade a desburocratização da Igreja, a diminuição de sua excessiva mediação nas situações da vida e o retorno à virtuosa pobreza) e o acesso às Sagradas Escrituras. Em suma, o endireitamento de suas veredas³.
O princípio reformado, ou para alguns pós-reformados, de uma “igreja reformada, sempre reformando” (Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est) deve permear e transformar nosso cotidiano. Ao falarmos da e de reforma é certo que devemos lembrar seus princípios e fundamentos, ensinados e sobretudo vividos. Porém, deve existir em nós, protestantes, esta voz profética de inconformidade e resistência à institucionalização, ao engessamento estrutural de uma experiência, sejam pentecostais ou históricos. Uma resistência ao aprisionamento a certas interpretações, dogmas, valores que não se sustentam, simplesmente pelo fato de que um dia foram bons para a igreja.
Entendo que o mote Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est (de autoria do reformado holandês Gisbertus Voetius, 1589-1676), parafraseando as Escrituras, deve ser vivo e eficaz em nossos dias. Há quem afirme, e concordamos com isso, que não foi a intenção de Voetius a “ecclesia reformans”, Igreja se reforma a si mesma, mas “ecclesia reformanda”, indicando que o agente da reforma não é ela própria, mas sim o Espírito de Deus. “E este certamente promove o crescimento e a compreensão das Escrituras a cada nova geração, sem com isso admitir que a verdade muda”4.
Não estou com isso usando este mote da Reforma aqui para legitimar um vale tudo eclesiológico/litúrgico, muito menos legitimar uma rebeldia juvenil. Como Voetius, creio também que a Igreja deve estar permanentemente sensível para diferentes iluminações advindas do Espírito, à Luz das Escrituras. Experiências novas de vida no caminhar com o Senhor, onde conviveremos com transformações, dúvidas e questionamentos. Enfim, olhar para a realidade oferecendo respostas às questões da sociedade, assim como os reformadores o fizeram, oferecendo respostas que ecoam até nossos dias.
Reformar é lembrar o que outros esquecem
Pensando um pouco em nossos dias, surge outra pergunta: até onde há continuidade na conexão com o espírito profético reformado? Ou seja, existe uma geração engajada em encarnar esta voz profética da igreja, dando continuidade às reformas necessárias em seu tempo?
Podemos conectar esta pergunta a uma afirmação feita pelo historiador inglês Eric Hobsbawn:
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca [...]5
Como os reformadores “lembraram” de sua história, do legado deixado por várias gerações de mártires ao longo da caminhada cristã, e avançaram nas questões concernentes ao seu tempo, nós também, não podemos correr o risco de sermos um povo sem memória. Constantemente o Senhor Deus lembrava o seu povo de onde tinham saído e a razão de lhes ter gerado como nação: “lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito.” (Dt. 15:15); “Lembra-te destas coisas, ó Jacó, e Israel, porquanto és meu servo; eu te formei, meu servo és, ó Israel, não me esquecerei de ti.” (Is. 44:21).
Cabe então a pergunta: Estaríamos assim também crescendo sem conexão com o nosso passado, com os ideais que os reformadores nos deixaram como legado? Comemoraríamos apenas e tão somente um evento histórico ocorrido em 1517? Estamos ano a ano apenas e tão somente lembrando de alguma coisa que aconteceu um dia, mas hoje são apenas lembranças remotas de um passado distante?
A Reforma e a produção da riqueza
À guisa de considerações finais, percebemos que estas inquietações trazidas pela Reforma nos fazem refletir cada vez mais sobre a voz profética ouvida ao longo de toda a história da igreja pelos profetas de Deus e nossa geração.
Tanto a vida econômica como as reformas sociais propostas por Lutero, Calvino e demais reformadores desafiavam a atuação da Igreja em uma reforma integral da sociedade. Essa atuação implicava, por exemplo, no estabelecimento de regras para a produção da riqueza, no atendimento dos pobres, na distribuição equitativa dos bens entre ricos e pobres.
Calvino insistia que a propriedade deveria ser defendida do furto, cabendo ao Estado uma função reguladora da economia, da ordem jurídica, do comércio, da propriedade e da escravidão. Por isso mesmo, a atividade dos banqueiros, dos mercadores, dos que emprestavam dinheiro a juros, e as relações entre devedores e credores recebiam uma atenção especial nas ordenanças e na reflexão teológica de Calvino (CAMPOS, 2010)6.
Estaríamos também, como igreja intermediando, ou ao menos denunciando estas relações assimétricas entre devedores e credores? Entre países pobres, endividados, doentes e famintos e países com fortunas incalculáveis esbanjando seus recursos em ilhas sociais paradisíacas?
A revista norte americana Forbes fez uma pesquisa com empresas de 63 países, apresentando as vinte maiores corporações de capital aberto do planeta no ano de 2016. Resultado: das vinte maiores empresas do mundo em 2016, nove são bancos.
Como de costume, depois da crise de 2008, a China e não os EUA domina as primeiras posições do levantamento, tendo o ICBC, em primeiro lugar, pelo quarto ano consecutivo, o China Construction Bank em segundo lugar, e o Agricultural Bank of China em terceiro. Os EUA, no entanto, representam ainda a maior quantidade de empresas do ranking, com 586 companhias. A China tem 249 empresas, o Japão 219, o Reino Unido 92 e a Coréia do Sul 67 (Forbes, 2000)7.
Zygmunt Bauman, em sua obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” (2013), apresenta em sua perspectiva, do quanto as misérias e as mazelas do mundo chamado pós-moderno são fomentadas pela busca exacerbada do acumulo de capital: “Se há fartura sem medidas na mesa de poucos, há fome voraz no prato de milhões”.
Segundo Bauman, a desigualdade humana é hoje, mais do que em eras passadas, estarrecedora, mesmo que se produza um volume muito maior que antes na agricultura e na pecuária. Porque então, a fome ainda mata milhões de pessoas ao redor do Mundo?
Em relação à enorme desigualdade social, Bauman argumenta que “o padrão de vida em qualquer lugar da terra nunca era mais que duas vezes superior àquela em vigor na região mais pobre (referindo-se ao período pré-moderno)”. Em países como o Qatar, sua renda per capta atinge 428 vezes mais que aquela encontrada em países como o Zimbábue. Abismo “crescente que separa os pobres e os sem perspectiva abastados” (Bauman 2013).
O número de bilionários nos EUA aumentou quarenta vezes nos últimos 25 anos, até 2007, enquanto o total de riqueza dos quatrocentos americanos mais ricos aumentou de US$ 169 bilhões para US$ 1,5 trilhão. Depois de 2007, durante os anos de colapso de crédito, seguido por depressão econômica e desemprego crescente, a tendência adquiriu ritmo verdadeiramente exponencial: em vez de atingir a todos em igual medida, como era amplamente esperado e retratado, o flagelo se mostrou severo e tenazmente seletivo na distribuição de seus golpes. Em 2011, o numero de bilionários nos EUA alcançou seu recorde histórico até a data chegando a 1.2109, ao passo que sua riqueza combinada cresceu de US$ 3,5 trilhões em 2007 para US$ 4,5 trilhões em 2010 (Bauman, 2013).
O “Center for American Progress” (Centro para o Progresso Americano) com sede em Washington, D.C., apresentou uma pesquisa revelando que ‘durante três décadas, a renda média dos 50% na base da escala cresceu 6% enquanto a renda do 1% no topo cresceu 229%.
Diante destes dados creio que a voz profética da igreja, ouvida durante a Reforma Protestante de 1531, ressoaria como musica de esperança aos ouvidos dos necessitados, enquanto trovoaria na consciência daqueles que a enfrentam. Faríamos ressoar mais uma vez a voz da Reforma: “Ninguém quer olhar para baixo. Lá tem pobreza, desonra, miséria, desgraça e angústia. Todo mundo desvia o olhar disso. Todos se afastam de pessoas dessa espécie. Evitam, rejeitam e abandonam essa gente, e ninguém se lembra de lhes ajudar e de trabalhar para que também sejam alguém. (Martinho Lutero)
Pensamos que estas relações de desigualdade crescem e se aprofundam na mesma proporção que a igreja se distancia da Reforma, ou melhor, dos ecos proféticos que um dia lhe foram outorgados pelo Senhor da Igreja. Os poucos dados apresentados acima certamente deveriam trazer comoção àquela (a noiva) que é sensível as mazelas humanas. E com a mesma coragem que Lutero enfrentou seus inquisidores repetiríamos: "A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado, eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra a minha consciência não é correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém."
Igreja contestante ou contestada?
Os reformadores estavam sensíveis às atrocidades espirituais assim como às sociais. Não lhes passa desapercebidos o sofrimento do povo. Daí a voz da contestação subir-lhes à garganta. Como disse o historiador: “O verdadeiro escândalo seria se a igreja pudesse perder a liberdade de contestação do mundo e de si mesma; ela recebeu essa liberdade do Espírito Santo como um dom e um dever. A Igreja nasceu confessante e contestante; ela testemunha a boa-nova da salvação e se choca com as resistências suscitadas pela mensagem das bem-aventuranças. É, portanto, sobre esse ponto que se faz necessário, incessantemente, verificar sua fidelidade, e contestá-la, se for o caso: “Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens” (Mt 5.13).
Esta reflexão se faz necessária nos dias de hoje. Não só em relação ao mundo político, econômico e social, como também uma contestação no seio da igreja, banhada de religiosidade mágica, utilitária e pueril, como bem nos mostra a igreja eletrônica no Brasil. Caso contrário, a Igreja que se via como contestante, passará rapidamente a mais uma vez ser contestada. E, novamente, o Espírito se levantará e tomará o profeta a fim de que seu remanescente seja mais uma vez preservado.
Termino deixando as palavras de Patrick Jacquemont:
“Igreja contestadora, onde estás? Os homens de hoje, em suas buscas e em suas recusas, precisam de tua contestação. Não te deixes intimidar pelas críticas que eles te fazem, porque elas exprimem uma questão que eles te apresentam. Não despreza tua esperança, seja por uma demagogia que o evita. Permite-nos também, teus filhos, te interpelar. Porque, se nós ousamos te contestar, nós que te amamos, é porque, vivendo entre os homens, participando de seus problemas, nós desejaríamos poder ser contigo, Igreja de Jesus Cristo, aqueles que, confessando e contestando, os convidam a avançar em direção ao futuro que é a Porta de Deus, em direção ao Homem que é Filho de Deus”8.
Notas:
Texto extraído do capítulo 3 - Breves considerações sobre a Reforma Protestante e seu caráter profético nos dias de hoje, do livro: A Reforma Protestante: História, Teologia e Desafios. Ed Hagnos. Ricardo Bitun (org).
1 John Wycliffe (1328 - 1384); John Huss (1373-1415); Jerônimo Savonarola (1452-1498); Os Valdenses; Os Lolardos; Os Albigenses; William Tyndale (1484-1536);
2 Se alguns ramos foram cortados, e você, sendo oliveira brava, foi enxertado entre os outros e agora participa da seiva que vem da raiz da oliveira, não se glorie contra esses ramos. Se o fizer, saiba que não é você quem sustenta a raiz, mas a raiz a você. Então você dirá: "Os ramos foram cortados, para que eu fosse enxertado". Está certo. Eles, porém, foram cortados devido à incredulidade, e você permanece pela fé. Não se orgulhe, mas tema. Pois se Deus não poupou os ramos naturais, também não poupará você. Romanos 11:17-21 (NVI)
3 Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, Endireitai as suas veredas. Mc 1.3 (Almeida Corrigida e Revisada Fiel)
4 Augustus Nicodemus Lopes. Tempora mores. http://tempora-mores.blogspot.com.br/2006/04/sempre-reformando-ou-sempr_114616276237762560.html
5 Hobsbawn, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX,1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p.13
6 Entrevista concedida pelo Prof. Dr. Leonildo Campos ao site amai-vos em 12 de Abril de 2010. http://amaivos.uol.com.br/amaivos2015/?pg=noticias&cod_canal=41&cod_noticia=14589
7 Exame.abril.com
8 Jacquemont, Patrick. A Igreja do Futuro. Ed Vozes.
• Ricardo Bitun possui graduação em Teologia pelo Seminário Bíblico de São Paulo (1987), graduação em Ciências Sociais pela Universidade São Marcos (1993), mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (1996) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Atualmente é adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do curso de pós-graduação do Programa de Ciências da Religião da Universidade Presbiterana Mackenzie. Pastor da Igreja Evangélica Manaim.
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Imagem: O Muro dos Reformadores ou Muro da Reforma, em Genebra, Suíça. Da direita para esquerda: Guilherme Farel, João Calvino, Teodoro de Beza e João Knox.
- 05 de outubro de 2017
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