Opinião
- 16 de fevereiro de 2018
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Filosofia da Tecnologia: um breve histórico
Por Jonathan Freitas
Na última década, alguns artigos internacionais apresentaram revisões sucintas do campo de filosofia da tecnologia, FdT (IHDE, 2004; BREY, 2010; FRANSSEN; LOKHORST; VAN DE POEL, 2013; KROES, 2017; REYDON, 2017; VAN DEN EEDE; GOEMINNE; VAN DEN BOSSCHE, 2017). Neste texto, resumo brevemente o quadro – consideravelmente consensual – que emerge desses trabalhos.
1 – O surgimento do campo
Desde o início da filosofia ocidental na Grécia antiga, reflexões filosóficas sobre a tecnologia têm sido feitas. Platão, por exemplo, defendeu que a tecnologia imita a natureza e descreveu o mundo criado como a obra de um Artesão. Aristóteles, por sua vez, observou que, em alguns casos, a tecnologia completa o que a natureza não consegue finalizar. Além disso, fez distinção entre coisas naturais (physis) e artefatos (poiesis), pelo fato de estes, diferentemente daquelas, serem gerados (e mantidos) apenas por causas externas humanas – e não por princípios internos. Semelhantemente, esse filósofo também diferenciou a techné, enquanto o corpo de conhecimentos associados a uma prática, da episteme – que hoje seria associada ao conhecimento científico.
Essas reflexões mantiveram-se influentes durante o império romano e a Idade Média, principalmente pelo desenvolvimento da visão aristotélica de que a tecnologia não apenas imita a natureza, mas pode, também, superá-la. Essa concepção elevou, por exemplo, a apreciação pelas artes mecânicas no período escolástico, contribuindo para a inclusão destas, junto às artes liberais, no corpo de conhecimentos que deveria ser ensinado nas faculdades medievais.
Contudo, uma reflexão aprofundada sobre a tecnologia só veio a ser consistentemente retomada no Renascimento – em virtude, pelo menos em parte, dos vários avanços técnicos que ocorreram nessa época. Francis Bacon é comumente apontado como o principal expoente dessas novas reflexões. Em seu Novum Organum, de 1620, ele enfatizou a conexão intrínseca entre a investigação da natureza pela filosofia natural e a construção de “obras” técnicas. Já no New Atlantis, escrito em 1623, ele apresentou uma visão utópica de um paraíso tecnológico, com vistas a guiar o desenvolvimento da sociedade nessa direção. René Descartes, no seu Discours de la Méthode, de 1637, também contribuiu para a formulação dessa ideologia moderna do progresso tecnológico, ao prognosticar um controle humano progressivo sobre a natureza por meio da aplicação dos crescentes conhecimentos provenientes do exercício da filosofia natural.
Essa atitude indiscriminadamente positiva em relação à tecnologia permaneceu praticamente inquestionada até à primeira metade do século XIX, permeando obras clássicas dessa época, como as de Karl Marx. No entanto, por volta dos anos 1870, os primeiros efeitos da Revolução Industrial danosos para a condição humana e a sociedade começaram a ser notados e criticados por diversos escritores. Por esse motivo, alguns autores identificam a metade do século XIX como o momento em que a tecnologia efetivamente se tornou um tema sui generis de reflexão filosófica. Realmente, o primeiro livro dedicado à “filosofia da tecnologia” – e a cunhar essa expressão – foi publicado nesse período (KAPP, 1877) . Além disso, de fato, apesar de reflexões sobre a tecnologia terem sido feitas desde muito antes do século XIX, elas levavam em consideração os fenômenos tecnológicos apenas como parte de investigações e projetos filosóficos gerais, e não como objetos interessantes, em si, para a inquirição filosófica. Portanto, verdadeiramente, o final do século XIX foi um marco no desenvolvimento da FdT.
Desse momento em diante, mas predominantemente a partir do início do século XX, diferentes escritores começaram a abordar filosoficamente – mesmo não sendo filósofos profissionais – o, então, proeminente fenômeno da tecnologia no contexto da sociedade industrial (e.g. Jaspers, Diesel, Dessauer). Contudo, foi somente depois das duas Guerras Mundiais – com seus investimentos em desenvolvimento tecnológico e efeitos devastadores sem precedentes – que publicações em FdT proliferaram de fato. Mais tarde, por volta do final da década de 1970 e início dos anos 1980, finalmente surgiram indicadores institucionais consistentes da efetiva emersão do campo de filosofia da tecnologia, tais como a fundação da Sociedade para Filosofia e Tecnologia, em 1976, e a publicação de livro-textos específicos de FdT (e.g. MITCHAM; MACKEY, 1972).
2 – A tradição clássica
A família das abordagens predominantes nesses pioneiros trabalhos de filosofia da tecnologia, publicados do início do século XX até à sua penúltima década, ficou conhecida como a “clássica” FdT (e.g. BREY, 2010). Pelo fato de muitos dos seus representantes terem se formado em ciências humanas e focado a relação da tecnologia com a sociedade (e não a tecnologia em si), essa tradição também foi denominada por Carl Mitcham de FdT “das humanidades” (MITCHAM, 1994) – uma nomenclatura que passou a prevalecer nesse campo de filosofia da tecnologia. Nessa perspectiva, a tecnologia é vista como um produto da cultura (imbuído de valores) e o foco recai sobre a crítica dos seus efeitos humanos e sociais negativos. Portanto, em oposição à atitude prometeica renascentista, a FdT das humanidades, estabelecida em resposta a um contexto de consolidação da sociedade tecnológica (e dos seus prejuízos para a condição humana e para a cultura), é marcada por um pessimismo fundamental em relação à tecnologia.
Expoentes dessa tradição incluem: os alemães Martin Heidegger, Karl Jaspers e seus conterrâneos representantes da Escola de Frankfurt (Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer e, em menor medida, Jürgen Habermas); o francês Jacques Ellul; o espanhol José Ortega y Gasset; o estadunidense Lewis Mumford; e outros filósofos gerais também interessados em tecnologia, como Hans Jonas, Arnold Gehlen e Günter Anders. Uma questão comum a esses autores de formações diversas (em humanidades, filosofia e teologia) é se os seres humanos – enquanto indivíduos e coletividades – são capazes de controlar (democraticamente) a tecnologia ou se é ela que os controla, como um poder autônomo. Em particular, o existencialismo fenomenológico heideggeriano, especialmente influente no campo de FdT, destacou a alienação e o estranhamento impostos pela cultura tecnológica sobre a existência e a experiência no mundo da vida cotidiana.
3 – A virada empírico-analítica
Por volta do final da década de 1980, essa tradição clássica da FdT passou a ser questionada a partir de várias perspectivas. Em primeiro lugar, tendo decorrido quase meio século desde o fim da II Guerra Mundial e duas décadas desde o auge dos movimentos contraculturais dos anos 1960, a disposição coletiva para com o fenômeno tecnológico estava mudando do pessimismo crítico desbalanceado para uma atitude mais equilibrada, que via a tecnologia como ambivalente – i.e. promotora tanto de bens quanto de males.
Em paralelo, no âmbito acadêmico, emergia o campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia (science and technology studies, STS), com uma ênfase na necessidade de uma orientação empírica na investigação dos processos científicos e tecnológicos modernos. Destacando o caráter socialmente construído – e, portanto, historicamente contingencial – dessas práticas, os STS apontaram para a diversidade processual observada no desenvolvimento e uso de tecnologias, pelo fato de esses processos serem dependentes das particularidades do contexto sociocultural específico em que ocorrem. Nesse sentido, a realização desses estudos contribuiu para o questionamento da imagem clássica – reificada e determinista – da tecnologia como um meta-fenômeno monolítico e inescapável. Essas generalizações totalizantes que tinham marcado o campo de FdT passaram, então, a ser substituídas por tentativas de descrever localmente a relação entre processos tecnológicos concretos e sua situação histórica específica – dando início à chamada “virada empírica” na filosofia da tecnologia (PITT, 1995; KROES; MEIJERS, 2000; ACHTERHUIS, 2001).
Uma primeira manifestação dessa virada pode ser notada ainda no final dos anos 1980 e início da década de 1990, quando representantes da perspectiva clássica começaram a romper com alguns dos métodos e premissas dessa tradição, sem, entretanto, abandonar seu foco original na relação entre tecnologia e sociedade – i.e. não na tecnologia em si. Esse movimento foi liderado por neo-heideggerianos, novos teóricos críticos e pós-fenomenologistas, contando, também, com a contribuição de outros paradigmas que adentraram o campo de FdT nessa época – como o pragmatismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais, os estudos de mídia e comunicação, e os próprios STS. Alguns expoentes dessa primeira família de abordagens da virada empírica em filosofia da tecnologia são: Albert Borgmann, Andrew Feenberg, Andrew Light, Bruno Latour, Don Idhe, Donna Haraway, Hubert Dreyfus, Langdon Winner e Larry Hickman, Em especial, dada a diversidade de possibilidades observadas para o desenvolvimento e o uso de tecnologias, esses autores enfatizam maneiras alternativas de conduzir essas práticas, alinhando-as a diversos ideais morais e sociais por eles defendidos (ACHTERHUIS, 2001). Portanto, apesar de terem rompido com certos traços da tradição clássica, essas abordagens ainda podem ser caracterizadas como pertencentes a uma filosofia da tecnologia orientada para a sociedade.
Uma segunda manifestação da virada empírica no campo de FdT deu seus primeiros indícios na última década do século XX e no começo dos anos 2000. Na verdade, por ter enfatizado, não apenas a empiria, mas, também, a análise da tecnologia em si (i.e. dos produtos, processos e conhecimentos tecnológicos), essa tradição tem sido considerada a protagonista de uma virada, além de empírica, “analítica” (MITCHAM, 1994; FRANSSEN, 2009). Afinal, apesar de analisar as tecnologias em seu contexto social, essa tradição não se concentra em criticar (e tentar direcionar) a relação mais ampla existente entre tecnologia e sociedade – como ocorre nas filosofias críticas e nas abordagens éticas ao fenômeno tecnológico (FRANSSEN, 2009). Pelo contrário: seu interesse principal recai sobre a definição rigorosa de conceitos e o relacionamento lógico entre eles, para a descrição – minimamente avaliativa ou prescritiva – das práticas tecnológicas (i.e. análise metodológica), dos saberes nelas envolvidos (i.e. análise epistemológica) e dos artefatos delas resultantes (i.e. análise ontológica).
Nesse sentido, ela rompe radicalmente com a tradição clássica de filosofia da tecnologia (de linha mais continental) e se aproxima da tradição clássica de filosofia da ciência (mais analítica), tendo sido denominada por Carl Mitcham de FdT “da engenharia” – em contraste com “das humanidades” (MITCHAM, 1994). Afinal, seus representantes apontam a necessidade de se entender apropriadamente o aspecto técnico e os aspectos materiais de uma tecnologia para se refletir filosoficamente de maneira adequada sobre ela – i.e. suas funções, a natureza e a multiplicidade dessas funcionalidades, e a relação entre estas e a materialidade do artefato (KROES, 2012). Isto é: eles destacam a importância de se fazer, no campo de FdT, uma filosofia primariamente sobre tecnologia em si, e não sobre a sociedade tecnológica – a não ser indiretamente, como derivação de implicações de uma melhor compreensão do fenômeno tecnológico (PITT, 2000). De fato, diferentemente dos autores clássicos e neoclássicos da FdT, muitos dos proponentes da nova abordagem são filósofos com formação em ciências naturais ou engenharias (e áreas tecnológicas afins ), ou engenheiros com interesses filosóficos, desenvolvendo pesquisas em universidades técnicas (BREY, 2010).
Autores identificados como precursores dessa perspectiva são: ainda no século XIX, o próprio Ernst Kapp, visto por alguns como o pioneiro do campo de FdT; no início do século XX, Friedrich Dessauer e Eugen Diesel; um pouco depois do fim da II Guerra Mundial, Herbert Simon e Gilbert Simondon; e, já na década de 1990, Walter Vincenti. Atualmente, entre os seus principais expoentes, estão os filósofos Joseph Pitt, Peter Kroes e Anthonie Meijers.
4 – O cenário contemporâneo
A família de abordagens formada a partir da primeira manifestação da virada empírica e a FdT da engenharia definem a ortodoxia contemporânea no campo de filosofia da tecnologia. Em especial, a tradição analítica tem se tornado a perspectiva dominante ao longo dos últimos 25 anos, estabelecendo-se em diferentes países e motivando diversas colaborações de pesquisa (BREY, 2010). Duas publicações fundamentais marcaram esse desenvolvimento (PITT, 1995; KROES; MEIJERS, 2000). Atualmente, o colossal manual organizado por Meijers (2009) e o livro-texto liderado por Veermas et al. (2011) representam, provavelmente, as melhores introduções disponíveis sobre essa abordagem.
De forma relativamente independente do desenvolvimento dessa ortodoxia, a pesquisa ética aplicada também tem se estabelecido na FdT – espelhando a virada empírica mais ampla observada nesse campo. A emersão de códigos de conduta para engenheiros e de pesquisas éticas especializadas em áreas tecnológicas diversas (e.g. tecnologia da informação e da comunicação; nanotecnologia; biotecnologia; neurotecnologia etc.) ilustram essa consolidação (BREY, 2010). Essa vertente, apesar de avaliativa e normativa por natureza, tem se direcionado mais para o desenvolvimento de sistemas locais de princípios normativos que auxiliem os envolvidos a lidar com a tecnologia de maneira responsável do que para uma avaliação geral do fenômeno tecnológico como bom, mau ou ambivalente.
Assim, são essas as três tradições que definem o cenário da FdT em seu nível atual de maturidade acadêmica. De acordo com Brey (2010), essa configuração atual do campo reflete três grandes perguntas que têm direcionado os estudos nessa área:
(a) “como as consequências da tecnologia para a sociedade e para a condição humana podem ser entendidas e avaliadas?”, foco principal da tradição neoclássica continental, das humanidades;
(b) “o que é tecnologia?”, foco principal da tradição analítica, da engenharia; e
(c) “como devemos agir em relação à tecnologia?”, foco principal da pesquisa ética aplicada.
Se você se interessa por essas questões fundamentais, espero que este artigo e as referências nele citadas o auxiliem a começar a navegar por esses interessantes veios da filosofia da tecnologia.
• Jonathan Simões Freitas é graduado em Engenharia de Produção e doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período sanduíche na École des Hautes Études Commerciales (HEC), em Montreal, Canadá. É co-autor do livro "Roadmapping: uma abordagem estratégica para o gerenciamento da inovação em produtos, serviços e tecnologias” (Campus-Elsevier) e o gerente geral e coordenador de pesquisa da ABC2 (Associação Brasileira Cristãos na Ciência).
Leia Mais:
> Conheça a Série Ciência e Fé Cristã
• Texto publicado originalmente por www.cristaosnaciencia.org.br
Na última década, alguns artigos internacionais apresentaram revisões sucintas do campo de filosofia da tecnologia, FdT (IHDE, 2004; BREY, 2010; FRANSSEN; LOKHORST; VAN DE POEL, 2013; KROES, 2017; REYDON, 2017; VAN DEN EEDE; GOEMINNE; VAN DEN BOSSCHE, 2017). Neste texto, resumo brevemente o quadro – consideravelmente consensual – que emerge desses trabalhos.
1 – O surgimento do campo
Desde o início da filosofia ocidental na Grécia antiga, reflexões filosóficas sobre a tecnologia têm sido feitas. Platão, por exemplo, defendeu que a tecnologia imita a natureza e descreveu o mundo criado como a obra de um Artesão. Aristóteles, por sua vez, observou que, em alguns casos, a tecnologia completa o que a natureza não consegue finalizar. Além disso, fez distinção entre coisas naturais (physis) e artefatos (poiesis), pelo fato de estes, diferentemente daquelas, serem gerados (e mantidos) apenas por causas externas humanas – e não por princípios internos. Semelhantemente, esse filósofo também diferenciou a techné, enquanto o corpo de conhecimentos associados a uma prática, da episteme – que hoje seria associada ao conhecimento científico.
Essas reflexões mantiveram-se influentes durante o império romano e a Idade Média, principalmente pelo desenvolvimento da visão aristotélica de que a tecnologia não apenas imita a natureza, mas pode, também, superá-la. Essa concepção elevou, por exemplo, a apreciação pelas artes mecânicas no período escolástico, contribuindo para a inclusão destas, junto às artes liberais, no corpo de conhecimentos que deveria ser ensinado nas faculdades medievais.
Contudo, uma reflexão aprofundada sobre a tecnologia só veio a ser consistentemente retomada no Renascimento – em virtude, pelo menos em parte, dos vários avanços técnicos que ocorreram nessa época. Francis Bacon é comumente apontado como o principal expoente dessas novas reflexões. Em seu Novum Organum, de 1620, ele enfatizou a conexão intrínseca entre a investigação da natureza pela filosofia natural e a construção de “obras” técnicas. Já no New Atlantis, escrito em 1623, ele apresentou uma visão utópica de um paraíso tecnológico, com vistas a guiar o desenvolvimento da sociedade nessa direção. René Descartes, no seu Discours de la Méthode, de 1637, também contribuiu para a formulação dessa ideologia moderna do progresso tecnológico, ao prognosticar um controle humano progressivo sobre a natureza por meio da aplicação dos crescentes conhecimentos provenientes do exercício da filosofia natural.
Essa atitude indiscriminadamente positiva em relação à tecnologia permaneceu praticamente inquestionada até à primeira metade do século XIX, permeando obras clássicas dessa época, como as de Karl Marx. No entanto, por volta dos anos 1870, os primeiros efeitos da Revolução Industrial danosos para a condição humana e a sociedade começaram a ser notados e criticados por diversos escritores. Por esse motivo, alguns autores identificam a metade do século XIX como o momento em que a tecnologia efetivamente se tornou um tema sui generis de reflexão filosófica. Realmente, o primeiro livro dedicado à “filosofia da tecnologia” – e a cunhar essa expressão – foi publicado nesse período (KAPP, 1877) . Além disso, de fato, apesar de reflexões sobre a tecnologia terem sido feitas desde muito antes do século XIX, elas levavam em consideração os fenômenos tecnológicos apenas como parte de investigações e projetos filosóficos gerais, e não como objetos interessantes, em si, para a inquirição filosófica. Portanto, verdadeiramente, o final do século XIX foi um marco no desenvolvimento da FdT.
Desse momento em diante, mas predominantemente a partir do início do século XX, diferentes escritores começaram a abordar filosoficamente – mesmo não sendo filósofos profissionais – o, então, proeminente fenômeno da tecnologia no contexto da sociedade industrial (e.g. Jaspers, Diesel, Dessauer). Contudo, foi somente depois das duas Guerras Mundiais – com seus investimentos em desenvolvimento tecnológico e efeitos devastadores sem precedentes – que publicações em FdT proliferaram de fato. Mais tarde, por volta do final da década de 1970 e início dos anos 1980, finalmente surgiram indicadores institucionais consistentes da efetiva emersão do campo de filosofia da tecnologia, tais como a fundação da Sociedade para Filosofia e Tecnologia, em 1976, e a publicação de livro-textos específicos de FdT (e.g. MITCHAM; MACKEY, 1972).
2 – A tradição clássica
A família das abordagens predominantes nesses pioneiros trabalhos de filosofia da tecnologia, publicados do início do século XX até à sua penúltima década, ficou conhecida como a “clássica” FdT (e.g. BREY, 2010). Pelo fato de muitos dos seus representantes terem se formado em ciências humanas e focado a relação da tecnologia com a sociedade (e não a tecnologia em si), essa tradição também foi denominada por Carl Mitcham de FdT “das humanidades” (MITCHAM, 1994) – uma nomenclatura que passou a prevalecer nesse campo de filosofia da tecnologia. Nessa perspectiva, a tecnologia é vista como um produto da cultura (imbuído de valores) e o foco recai sobre a crítica dos seus efeitos humanos e sociais negativos. Portanto, em oposição à atitude prometeica renascentista, a FdT das humanidades, estabelecida em resposta a um contexto de consolidação da sociedade tecnológica (e dos seus prejuízos para a condição humana e para a cultura), é marcada por um pessimismo fundamental em relação à tecnologia.
Expoentes dessa tradição incluem: os alemães Martin Heidegger, Karl Jaspers e seus conterrâneos representantes da Escola de Frankfurt (Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer e, em menor medida, Jürgen Habermas); o francês Jacques Ellul; o espanhol José Ortega y Gasset; o estadunidense Lewis Mumford; e outros filósofos gerais também interessados em tecnologia, como Hans Jonas, Arnold Gehlen e Günter Anders. Uma questão comum a esses autores de formações diversas (em humanidades, filosofia e teologia) é se os seres humanos – enquanto indivíduos e coletividades – são capazes de controlar (democraticamente) a tecnologia ou se é ela que os controla, como um poder autônomo. Em particular, o existencialismo fenomenológico heideggeriano, especialmente influente no campo de FdT, destacou a alienação e o estranhamento impostos pela cultura tecnológica sobre a existência e a experiência no mundo da vida cotidiana.
3 – A virada empírico-analítica
Por volta do final da década de 1980, essa tradição clássica da FdT passou a ser questionada a partir de várias perspectivas. Em primeiro lugar, tendo decorrido quase meio século desde o fim da II Guerra Mundial e duas décadas desde o auge dos movimentos contraculturais dos anos 1960, a disposição coletiva para com o fenômeno tecnológico estava mudando do pessimismo crítico desbalanceado para uma atitude mais equilibrada, que via a tecnologia como ambivalente – i.e. promotora tanto de bens quanto de males.
Em paralelo, no âmbito acadêmico, emergia o campo dos estudos sociais em ciência e tecnologia (science and technology studies, STS), com uma ênfase na necessidade de uma orientação empírica na investigação dos processos científicos e tecnológicos modernos. Destacando o caráter socialmente construído – e, portanto, historicamente contingencial – dessas práticas, os STS apontaram para a diversidade processual observada no desenvolvimento e uso de tecnologias, pelo fato de esses processos serem dependentes das particularidades do contexto sociocultural específico em que ocorrem. Nesse sentido, a realização desses estudos contribuiu para o questionamento da imagem clássica – reificada e determinista – da tecnologia como um meta-fenômeno monolítico e inescapável. Essas generalizações totalizantes que tinham marcado o campo de FdT passaram, então, a ser substituídas por tentativas de descrever localmente a relação entre processos tecnológicos concretos e sua situação histórica específica – dando início à chamada “virada empírica” na filosofia da tecnologia (PITT, 1995; KROES; MEIJERS, 2000; ACHTERHUIS, 2001).
Uma primeira manifestação dessa virada pode ser notada ainda no final dos anos 1980 e início da década de 1990, quando representantes da perspectiva clássica começaram a romper com alguns dos métodos e premissas dessa tradição, sem, entretanto, abandonar seu foco original na relação entre tecnologia e sociedade – i.e. não na tecnologia em si. Esse movimento foi liderado por neo-heideggerianos, novos teóricos críticos e pós-fenomenologistas, contando, também, com a contribuição de outros paradigmas que adentraram o campo de FdT nessa época – como o pragmatismo, o pós-estruturalismo, os estudos culturais, os estudos de mídia e comunicação, e os próprios STS. Alguns expoentes dessa primeira família de abordagens da virada empírica em filosofia da tecnologia são: Albert Borgmann, Andrew Feenberg, Andrew Light, Bruno Latour, Don Idhe, Donna Haraway, Hubert Dreyfus, Langdon Winner e Larry Hickman, Em especial, dada a diversidade de possibilidades observadas para o desenvolvimento e o uso de tecnologias, esses autores enfatizam maneiras alternativas de conduzir essas práticas, alinhando-as a diversos ideais morais e sociais por eles defendidos (ACHTERHUIS, 2001). Portanto, apesar de terem rompido com certos traços da tradição clássica, essas abordagens ainda podem ser caracterizadas como pertencentes a uma filosofia da tecnologia orientada para a sociedade.
Uma segunda manifestação da virada empírica no campo de FdT deu seus primeiros indícios na última década do século XX e no começo dos anos 2000. Na verdade, por ter enfatizado, não apenas a empiria, mas, também, a análise da tecnologia em si (i.e. dos produtos, processos e conhecimentos tecnológicos), essa tradição tem sido considerada a protagonista de uma virada, além de empírica, “analítica” (MITCHAM, 1994; FRANSSEN, 2009). Afinal, apesar de analisar as tecnologias em seu contexto social, essa tradição não se concentra em criticar (e tentar direcionar) a relação mais ampla existente entre tecnologia e sociedade – como ocorre nas filosofias críticas e nas abordagens éticas ao fenômeno tecnológico (FRANSSEN, 2009). Pelo contrário: seu interesse principal recai sobre a definição rigorosa de conceitos e o relacionamento lógico entre eles, para a descrição – minimamente avaliativa ou prescritiva – das práticas tecnológicas (i.e. análise metodológica), dos saberes nelas envolvidos (i.e. análise epistemológica) e dos artefatos delas resultantes (i.e. análise ontológica).
Nesse sentido, ela rompe radicalmente com a tradição clássica de filosofia da tecnologia (de linha mais continental) e se aproxima da tradição clássica de filosofia da ciência (mais analítica), tendo sido denominada por Carl Mitcham de FdT “da engenharia” – em contraste com “das humanidades” (MITCHAM, 1994). Afinal, seus representantes apontam a necessidade de se entender apropriadamente o aspecto técnico e os aspectos materiais de uma tecnologia para se refletir filosoficamente de maneira adequada sobre ela – i.e. suas funções, a natureza e a multiplicidade dessas funcionalidades, e a relação entre estas e a materialidade do artefato (KROES, 2012). Isto é: eles destacam a importância de se fazer, no campo de FdT, uma filosofia primariamente sobre tecnologia em si, e não sobre a sociedade tecnológica – a não ser indiretamente, como derivação de implicações de uma melhor compreensão do fenômeno tecnológico (PITT, 2000). De fato, diferentemente dos autores clássicos e neoclássicos da FdT, muitos dos proponentes da nova abordagem são filósofos com formação em ciências naturais ou engenharias (e áreas tecnológicas afins ), ou engenheiros com interesses filosóficos, desenvolvendo pesquisas em universidades técnicas (BREY, 2010).
Autores identificados como precursores dessa perspectiva são: ainda no século XIX, o próprio Ernst Kapp, visto por alguns como o pioneiro do campo de FdT; no início do século XX, Friedrich Dessauer e Eugen Diesel; um pouco depois do fim da II Guerra Mundial, Herbert Simon e Gilbert Simondon; e, já na década de 1990, Walter Vincenti. Atualmente, entre os seus principais expoentes, estão os filósofos Joseph Pitt, Peter Kroes e Anthonie Meijers.
4 – O cenário contemporâneo
A família de abordagens formada a partir da primeira manifestação da virada empírica e a FdT da engenharia definem a ortodoxia contemporânea no campo de filosofia da tecnologia. Em especial, a tradição analítica tem se tornado a perspectiva dominante ao longo dos últimos 25 anos, estabelecendo-se em diferentes países e motivando diversas colaborações de pesquisa (BREY, 2010). Duas publicações fundamentais marcaram esse desenvolvimento (PITT, 1995; KROES; MEIJERS, 2000). Atualmente, o colossal manual organizado por Meijers (2009) e o livro-texto liderado por Veermas et al. (2011) representam, provavelmente, as melhores introduções disponíveis sobre essa abordagem.
De forma relativamente independente do desenvolvimento dessa ortodoxia, a pesquisa ética aplicada também tem se estabelecido na FdT – espelhando a virada empírica mais ampla observada nesse campo. A emersão de códigos de conduta para engenheiros e de pesquisas éticas especializadas em áreas tecnológicas diversas (e.g. tecnologia da informação e da comunicação; nanotecnologia; biotecnologia; neurotecnologia etc.) ilustram essa consolidação (BREY, 2010). Essa vertente, apesar de avaliativa e normativa por natureza, tem se direcionado mais para o desenvolvimento de sistemas locais de princípios normativos que auxiliem os envolvidos a lidar com a tecnologia de maneira responsável do que para uma avaliação geral do fenômeno tecnológico como bom, mau ou ambivalente.
Assim, são essas as três tradições que definem o cenário da FdT em seu nível atual de maturidade acadêmica. De acordo com Brey (2010), essa configuração atual do campo reflete três grandes perguntas que têm direcionado os estudos nessa área:
(a) “como as consequências da tecnologia para a sociedade e para a condição humana podem ser entendidas e avaliadas?”, foco principal da tradição neoclássica continental, das humanidades;
(b) “o que é tecnologia?”, foco principal da tradição analítica, da engenharia; e
(c) “como devemos agir em relação à tecnologia?”, foco principal da pesquisa ética aplicada.
Se você se interessa por essas questões fundamentais, espero que este artigo e as referências nele citadas o auxiliem a começar a navegar por esses interessantes veios da filosofia da tecnologia.
• Jonathan Simões Freitas é graduado em Engenharia de Produção e doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período sanduíche na École des Hautes Études Commerciales (HEC), em Montreal, Canadá. É co-autor do livro "Roadmapping: uma abordagem estratégica para o gerenciamento da inovação em produtos, serviços e tecnologias” (Campus-Elsevier) e o gerente geral e coordenador de pesquisa da ABC2 (Associação Brasileira Cristãos na Ciência).
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