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Opinião

Evangélico fundamentalista, conservador ou bíblico?

Por Marcos Amado

Dias atrás, lendo um artigo de uma revista, deparei-me com um trecho de uma poesia escrita na metade do século 19 pelo poeta norte-americano Walt Whitman intitulada “Canção de mim mesmo”. Em determinado ponto de sua poesia, Whitman diz:

Of every hue and caste am I, [De cada matiz e casta que sou,]
of every rank and religion, [de cada posição e religião,]
A farmer, mechanic, artist, gentleman, sailor, quaker, Prisoner, fancy-man, rowdy, lawyer, physician, priest. [Um fazendeiro, mecânico, artista, cavalheiro, marinheiro, religioso, prisioneiro, homem chique, desordeiro, advogado, médico, sacerdote.]
I resist anything better than my own diversity… [Resisto a qualquer coisa melhor do que minha própria diversidade...]


Essa ode à liberdade e à determinação de ser quem você quer ser acabou lembrando-me de um trecho de outro poema (“Invictus”), escrito mais para o final do século 19 pelo britânico Ernest Henley:

It matters not how strait the gate, [Não importa quão estreito seja o portão,]
how charged with punishments the scroll, [quão carregado de punições, o pergaminho,]
I am the master of my fate: I am the captain of my soul. [Sou o mestre do meu destino: sou o capitão da minha alma.]


Em ambos os casos, podemos perceber a influência das ideias humanistas reinantes naquela época como resultado da grande aceitação dos ideais iluministas na Europa e Estados Unidos. Whitman ressalta o suposto direito que cada ser humano tem de ter um espírito livre, de não se submeter a regras e de definir a si mesmo não segundo as normas e expectativas impostas pela sociedade. Ele resiste a qualquer tentativa de afastá-lo do seu direito de ser diferente; de ser tudo e nada ao mesmo tempo. De não ser categorizado de acordo com ideias, ideias essas impostas pela tradição.

Já Henley (que desde a sua infância e durante toda a vida adulta passou anos internado em hospitais e teve sua perna esquerda amputada como resultado de uma doença severa), desafia a ideia de que sua sina seria definida por um ser todo-poderoso. A porta estreita ou o pergaminho que enumera seus pecados não seriam suficientes para impedi-lo de ser o capitão do seu destino.

Diversidade, igualdade, rejeição da tradição religiosa reinante, secularismo, individualismo, pluralismo, relativismo e ausência de verdades absolutas em certas esferas da sociedade: as sementes dessas ideias podiam ser vistas ou inferidas na literatura e arte do século 19, como se percebe nos dois poemas citados, mas foi a influência da filosofia kantiana que acabou pavimentando o caminho para a cristalização e fortalecimento de uma nova epistemologia.

Immanuel Kant articulou uma visão revolucionária do conhecimento que tornaria a humanidade autônoma em seu conhecimento. Ele propôs um lema para o Iluminismo – “Ouse raciocinar”1 –, que ele acreditava que libertaria a humanidade da adesão escravizada às formas anteriores de pensamento. Ele desvinculou a razão da fé, apesar de sua formação nas tradições protestante e católica. Apenas aquilo que pudesse ser demonstrado pela razão ou aprendido pelo método científico se qualificaria como conhecimento.2

Tais ideias vieram à tona com toda a força no século 20, permeando boa parte da sociedade ocidental, causando grande impacto no status quo reinante e levando à rejeição tanto dos dogmas cristãos como da Bíblia como livro divino, revelado, infalível e mensageiro de verdades espirituais, éticas e morais que mostravam o caminho para a salvação.3

Newbigin afirma que com o surgimento desse novo paradigma social, as estruturas de plausibilidade foram desafiadas e as verdades do cristianismo, que davam sustentação à sociedade, deixaram de ser vistas como verdades e passaram a ser consideradas apenas como valores, crenças pessoais, não como fatos. Fatos podiam ser cientificamente verificados e considerados verdades absolutas. Crenças religiosas, não; dizer o contrário passou a ser visto como arrogância.4 O que alguns chamam de “o particularismo escandaloso” do cristianismo5 (ou seja, Jesus como o único caminho até Deus – se é que Deus realmente existia) passou, paulatinamente, a ser rejeitado pela maior parte das pessoas dos países do hemisfério norte que eram considerados parte da cristandade.


A crença ocidental na ausência de verdades absolutas reveladas (ou seja, uma verdade vinda do alto, sem a necessidade de se submeter à metodologia científica) passou a influenciar outras áreas da sociedade. O relativismo passou a ter um lugar importante na forma de pensar das pessoas. Com o passar das décadas, cada um podia ter a sua verdade e compartilhá-la com outros, mas deixando claro que essa era sua experiência pessoal. A verdade que nos faria livres era apenas algo relativo. Afinal de contas, de qual verdade estamos falando?

Crise de identidade: o que significa ser evangélico?
Todas essas transformações, crises epistemológicas, novos paradigmas sociais, mudanças nas estruturas de plausibilidade (e as incertezas eclesiológicas e teológicas geradas por elas) foram, pouco a pouco, levando os evangélicos brasileiros (e em outras partes do mundo) a uma crise de identidade e forte perda de confiança sobre qual seria seu lugar e papel na sociedade. O termo “evangélico” passou a ser cada vez mais difuso e indefinível. Diversas manifestações do evangelicalismo foram surgindo, e isso inclusive levou alguns líderes dessa vertente do cristianismo a afirmar, com todas as letras, “eu não sou evangélico”.

Na tentativa de definir melhor o termo evangélico e explicar suas diferentes vertentes, Tim Keller, depois de um longo panorama histórico, sugere que existem, nos Estados Unidos, dois tipos principais de evangélicos: os conservadores e os fundamentalistas.6 Pela descrição que Keller faz no seu artigo, provavelmente seria possível comparar o que ele chama de conservadores e fundamentalistas com o que, aqui no Brasil, popularmente chamamos de ‘progressistas’ e ‘reformados’, respectivamente. Segundo ele, existem semelhanças importantes entre esses dois grupos, e ele faz uso do “Quadrilátero de Bebbington” para tentar mostrar qual é o mínimo denominador bíblico-teológico comum para todos aqueles que se consideram evangélicos:

1. Completa autoridade da Bíblia como a única e suprema regra de fé e prática.
2. Necessidade do novo nascimento pelo Espírito Santo.
3. Reconciliação com Deus através da obra redentora de Cristo, e não por boas obras.
4. Responsabilidade de compartilhar o evangelho por meio de palavras e obras.


Porém, diz Keller, as diferenças existem e elas estão relacionadas, em maior ou menor medida, a questões sociais, tais como individualismo, anti-intelectualismo, anti-institucionalismo e moralismo separatista. Tudo depende de se você é conservador ou fundamentalista.

Implicações para a realidade brasileira
Em uma entrevista concedida por Zygmunt Bauman anos atrás, o famoso propagador do conceito da modernidade líquida afirmou que as incertezas do mundo contemporâneo estão aqui para ficar. Vivemos em uma permanente situação de ignorância e impotência diante de tantas mudanças, e vemos como a política e o poder estão cada vez mais distantes entre si. Os movimentos políticos não têm poder, e existe um poder paralelo (multinacionais e redes sociais, por exemplo) sem controle político. O Estado já não é (ou nunca foi?) suficientemente forte para cumprir suas promessas à população, mesmo as mais básicas como saúde, educação e segurança.7

Provavelmente podemos comparar essas incertezas mencionadas por Bauman com a teoria que Thomas Kuhn desenvolveu e chamou de “mudanças de paradigmas”. Segundo ele, e se referindo às questões inerentes às ciências naturais, quando uma visão de mundo conceitual deixa de oferecer as respostas necessárias, os esforços para continuar encontrando respostas baseadas no paradigma vigente:

podem gerar problemas teóricos insolúveis ou anomalias experimentais que expõem as inadequações de um paradigma ou o contradizem completamente. Esse acúmulo de dificuldades desencadeia uma crise que só pode ser resolvida por uma revolução intelectual que substitua um velho paradigma por um novo.8

Hans Kung fez uso desse conceito e o aplicou à história da Igreja, tentando mostrar como, ao longo dos séculos, os cristãos experimentaram várias mudanças de paradigmas.9 Nesse contexto, é possível que o maior desafio seja que enquanto não há um novo paradigma que se sobreponha ao anterior, a sensação é de caos, incertezas e inseguranças.

Tenho a convicção de que, no que tange ao modelo de igreja e cristianismo vigentes, estamos vivendo no centro de uma dessas mudanças de paradigmas, com a consequente sensação de caos, incertezas e inseguranças. E o que torna o esforço de entendermos o momento que estamos vivendo mais desafiador é que, invariavelmente, ao olharmos o evangelicalismo brasileiro do século 21, e usando a nomenclatura apresentada por Keller, seremos tentados a categorizar os fundamentalistas como defensores do espectro político que comumente chamamos de direita e os conservadores como os de esquerda. Mas essas linhas divisórias não são tão claras como parecem, e as semelhanças vão além do Quadrilátero de Bebbington mencionado por Keller. O evangélico conservador, assim como o fundamentalista, entende a importância da economia de mercado, da propriedade privada, da liberdade de expressão, do direito de ir e vir, dos direitos individuais etc. Ambos são contra o aborto, entendem que a união homoafetiva não encontra respaldo bíblico e defendem a importância da família como uma instituição criada por Deus.


Mas, como vimos acima, nesse processo de mudança de paradigma existem, sim, diferenças significativas, e sou inclinado a pensar que alguns cristãos evangélicos estão contribuindo para promover grandes incertezas (aos olhos da população brasileira e mundial) sobre o que realmente significa ser um cristão. Não me refiro aqui a ser de direita ou de esquerda, já que pessoas de ambas as tendências já causaram muito estrago por este mundo afora.

O que mais me preocupa é a nossa incapacidade de discernir os tempos e abrir os olhos para os sinais e evidências (tanto os claramente perceptíveis como os quase imperceptíveis) que estão diante de nós. Com isso, contribuímos para que a mentira e o engano prevaleçam, trazendo, entre outras coisas, a tão temida escuridão que nos cega e nos leva a aceitarmos situações, afirmações, ações e posicionamentos que, até pouco tempo atrás, eram inadmissíveis para um cristão evangélico, fosse ele de direita ou esquerda, conservador ou fundamentalista.

Parece que em algum momento não muito bem definido dos últimos anos decidimos, como num inconsciente coletivo, que somos, como evangélicos, incapazes de fazer aquilo que o Senhor espera da sua Igreja e achamos que é possível delegar a um governo (seja ele qual for) a impossível missão de impor uma moralidade que nunca na história deste país (e de nenhum outro ao longo da história) foi possível impor.

Ao mesmo tempo, e por razões que eu desconheço, conceitos nitidamente bíblicos e cristãos passaram a ser vistos como “de esquerda”. Parece que nos esquecemos do forte conteúdo ético do Antigo e do Novo Testamento. Como eu disse há algum tempo em um vídeo10, se levarmos, por exemplo, apenas o livro de Amós em consideração, podemos ver Deus falando contra a deportação injusta, contra aqueles que odeiam os que defendem a justiça no tribunal, contra os que vendem o justo por prata, contra os que pisam na cabeça do necessitado, contra os ricos que roubam e saqueiam os pobres, contra os que impedem que se faça justiça aos pobres nos tribunais. Em Amós (e muitos outros lugares da Bíblia) vemos que Deus não coaduna com a tortura, não aceita a escravização. Afirma que Deus se opõe àqueles que, ao negociar, exigem suborno, aumentam o preço, usam balança enganosa e vendem ‘gato por lebre’.

Se fossemos contextualizar para os dias de hoje, em que vivemos uma globalização rampante que leva os pobres a ficarem mais pobres e os ricos a ficarem mais ricos, seria como se nós, cristãos, estivéssemos (no meio das incertezas causadas pelas mudanças de paradigmas) apoiando empresas que ganham bilhões através de atividades que extorquem, empobrecem, envenenam, abusam, oprimem e matam. É como se nós, a troco de uma suposta moralidade cristã, déssemos lugar às fake news e fizéssemos vista grossa para o fato de vivermos em uma nação que tem um sistema judicial corrupto, que privilegia ricos, deputados, senadores, governadores e juízes da suprema corte; que promove negócios que beneficiam os latifundiários, exploram os mais pobres dos pobres e promovem a destruição do meio-ambiente.

Seria como se nós, o Povo de Deus, a troco de uma escola em tese “sem ideologia”, não nos importássemos com que nossos políticos estejam envolvidos com milícias, nossos juízes liberem empresários e políticos comprovadamente corruptos e acordos sejam feitos na calada da noite para desimplicar altíssimos dignitários nas altas esferas da república.

Se cremos verdadeiramente que os valores sociais, espirituais, éticos e econômicos plasmados na Bíblia são universais e atemporais, e que isso precisa ser proclamado até os confins da terra, nosso papel como evangélicos (conservadores e fundamentalistas) é viver uma vida santa que reflita esses valores, deixando ao Espírito Santo (e não ao governo!) a tarefa de convencer do pecado, da justiça e do juízo.


Notas
1. Existem diferentes traduções para esse desafio proposto por Kant. Alguns usam “ouse pensar” e outros “ouse conhecer”.
2. Liberal Theology, na essay by Andrew Hoffecker. The Gospel Coalition. Disponível aqui.
3. Veja o excelente artigo escrito por Rafael Zulato, que lida mais detalhadamente com esse tema. Disponível aqui.
4. Newbigin, Lesslie. O evangelho em uma sociedade pluralista. Ultimato, Viçosa, 2016.
5. Tennent, Timothy C. 2010. Invitation to World Missions - a Trinitarian Missiology for the Twenty-First Century. Grand Rapids, Michigan: Kregel Publications.
6. The Decline and Renewal of the American Church: Part 1 – The Decline of the Mainline [parte 1]. The Decline and Renewal of the American Church: Part 2 – The Decline of Evangelicalism [parte 2].
7. Diálogos com Zygmunt Bauman [YouTube]
8. Britannica, The Editors of Encyclopaedia. "Thomas S. Kuhn". Encyclopedia Britannica, 14 Jul. 2021. Disponível aqui.
9. Bosch, David. Missão Transformadora, p. 227. Editora Sinodal, São Leopoldo, 1998.
10. Teologia da Libertação e Missões - Implicações para a Igreja hoje - Parte 3 [YouTube]

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