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Opinião

Ecoteologia, mudanças climáticas e o cultivo de virtudes ecológicas

Por Tiago A. Pereira
 
Não é de hoje que falar sobre o tempo é considerado o assunto universal dos elevadores. A onipresença de notícias sobre o clima nos noticiários e mídias sociais nos mostra que o tema alcançou o devido lugar de destaque na sociedade, mas a verdade é que a ciência climática não é recente como parece. O conhecimento científico sobre a temperatura da Terra e o papel de gases como o dióxido de carbono e outros para o bem conhecido efeito estufa pode ser rastreado até meados do século XIX, com o pioneirismo de Eunice Foote (1856), seguida por John Tyndall (1859) e Svante Arrhenius (1896)1. Desde então, cientistas climáticos têm mostrado como o aporte de carbono na atmosfera oriundo de atividades humanas está diretamente ligado à intensificação deste efeito para além de seus ciclos naturais. Após um longo século abalado por guerras devastadoras e um período de intensa instabilidade política global, a Organização das Nações Unidas dedicou uma atenção especial para o meio ambiente através da criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)2. O Painel foi estabelecido em 1988, não com o objetivo de produzir pesquisa original, mas de avaliar, sintetizar e divulgar o conhecimento produzido pelas pesquisas mais avançadas sobre as questões climáticas no planeta. Desde sua fundação o órgão se tornou a maior autoridade global a respeito das mudanças climáticas – levando o prêmio Nobel da Paz em 2007 – e seus relatórios têm sido a principal fonte para formuladores de políticas sobre o clima em todo o planeta.
 
O primeiro relatório do IPCC foi divulgado em 1990, e suas observações mostravam como o aumento de dióxido de carbono na atmosfera impactava as temperaturas globais e como esse processo estava ligado às atividades humanas. Além disso, o relatório já apontava modelos de possíveis cenários futuros a depender do impacto das escolhas humanas nos anos que se sucederiam. As três décadas que se seguiram trouxeram novos relatórios que evidenciaram a evolução de uma ciência que se tornou mais robusta e cada vez mais central para a elaboração de políticas públicas nacionais e mundiais.
 
O sexto relatório de avaliação, aguardado há 7 anos, teve seu primeiro volume finalmente divulgado no mês de agosto de 20213, uma compilação exaustiva que contou com a análise de mais de 14 mil estudos científicos, sendo aprovado em sua versão final por 234 autores representantes de 195 governos após revisão de centenas de especialistas4. Trazendo a análise mais compreensiva sobre as questões climáticas até a presente data, o relatório aponta como e por que o clima do planeta tem mudado, e traz diversos cenários possíveis para o futuro a curto, médio e longo prazo. Uma das principais conclusões do relatório é a afirmação da influência humana no clima do planeta como fato estabelecido e responsável por uma instabilidade sem precedentes nos últimos 2 mil anos, pelo menos. O aumento de temperatura média global de 1850 a 2020 se encontra agora na casa de 1,1°C, e deverá atingir ou exceder 1,5°C – o máximo seguro estabelecido pelo Acordo de Paris e ratificado pelo IPCC5 – nos próximos 20 anos6. O secretário-geral da ONU, António Guterres, assinalou que o documento é um “alerta vermelho para a humanidade. Os alarmes são ensurdecedores: as emissões de gases de efeito estufa provocadas por combustíveis fósseis e o desmatamento estão sufocando o nosso planeta. (…) como o relatório de hoje indica claramente, não há tempo e não há lugar para desculpas”7. As notícias são inevitavelmente alarmantes, mas o relatório reafirma que mudanças são possíveis, e dependem, em grande parte, de escolhas e ações ambiciosas que a humanidade deve fazer ainda hoje.8

Historicamente, a questão das mudanças climáticas envolve debates e divergências que extrapolam as barreiras da ciência e englobam profundas questões de natureza político-econômica, cognitiva, epistemológica, ética e religiosa. Em essência, as divergências não envolvem tanto as questões de gases de efeito estufa ou as modelagens climáticas; em vez disso, elas são o produto de visões de mundo contrastantes e profundamente arraigadas. Cientistas cognitivos trazem grandes insights sobre como nossas percepções são moldadas por vieses e mecanismos psicológicos individuais e narrativas construídas coletivamente. Diversos especialistas têm observado estágios sucessivos presentes nos argumentos de negação das mudanças climáticas9: a negação da existência do problema, a negação de que a atividade humana seja a causa e a negação de que exista um consenso científico. Uma vez que se confirma que as mudanças e as causas são reais, passa-se então para os próximos estágios: a negação de que isso seja de fato um problema, a negação de seja possível que solucionemos o problema, e finalmente, o estágio em que se afirma que é tarde demais. Uma cadeia de eterna insatisfação que em última instância resulta em total desesperança e perda da capacidade de se buscar uma ação efetiva. O desafio, portanto, é buscar entender como agir enquanto é tempo, mesmo em meio a movimentos de negação e desinformação.
 
George Marshall, um dos maiores especialistas europeus em comunicações sobre mudanças climáticas, se debruçou sobre o tema a fim de buscar respostas sobre porque uma parte da população tende a ignorar as mudanças climáticas. Ele analisa nossa habilidade de lidar com o conhecimento e com a crença, propondo uma abordagem que não se atenha às batalhas midiáticas da verdade contra a ficção, ou da ciência contra os interesses corporativos, mas como um desafio para a nossa habilidade de fazer sentido do mundo ao nosso redor.10 Para ele, “no final, todos as modelagens de computação, previsões científicas e cenários econômicos são construídos em torno da variável mais importante e incerta de todas: se nossa escolha coletiva será aceitar ou negar o que a ciência está nos dizendo. E esta (…) é uma pergunta infinitamente perturbadora, envolvente e intrigante.”11

Tendo um cenário que exige ação imediata à nossa frente, uma série de perguntas podem ser colocadas: Como a sociedade deve encarar esse desafio? Onde devemos investir nossos esforços? Por que, afinal, deveríamos nos esforçar para criar um mundo melhor? Ou como disse a infame frase de um famoso quadrinho de jornal há alguns anos: “E se isso for uma grande farsa e nós criarmos um mundo melhor para nada?”.
 
Marshall alerta que um dos motivos centrais que levam as pessoas a ignorarem as mudanças climáticas é o fator da “incerteza”12. Essa incerteza, no entanto, teria mais a ver com uma falsa percepção de que os cientistas se encontrariam divididos sobre essas questões (nos EUA, uma pesquisa revelou que mais de um terço dos entrevistados acreditavam que os cientistas estavam inseguros sobre a ocorrência do aquecimento global13). Em última instância, essa percepção revela uma grande falha em compreender o princípio epistemológico da incerteza na ciência e seu papel como fundamento do próprio método científico. Falar em consenso científico nunca envolverá uma admissão de certeza absoluta, mas sim que o peso das evidências disponíveis suporta uma conclusão confiável.
 
Confiança, afinal, parece ser um ponto chave para lidar com o problema da incerteza científica. Foi sabendo que a confiança é um ponto nevrálgico para essas questões que a indústria de combustíveis fósseis investiu em propaganda de desinformação em massa para confundir as massas e convencer a todos de que a “questão climática” não era um problema, como relatou Naomi Oreskes e Erik Conway em um dos livros mais importantes da última década, Merchants of Doubt (Mercadores da Dúvida)14. A comunicação científica para o grande público precisa transmitir essa confiança sobre o consenso que há entre a comunidade científica, tanto para aquilo que é conhecido quanto para o que não é conhecido. Uma comunicação agressiva e apocalíptica dificilmente irá gerar o engajamento necessário que resulte em ação. O medo não é capaz de nos motivar para a mudança sustentável de longo prazo de que precisamos para mudar a situação.  É necessário que o discurso público seja honesto e cuidadoso, partindo de uma comunidade científica mais engajada socialmente.
 
O recente relatório do IPCC ajuda a entender que as mudanças climáticas e o aquecimento global não são uma ameaça distante, mas uma realidade presente que impacta toda a humanidade de diferentes formas, e essas questões importam a cada um de nós aqui e agora. Os impactos das mudanças climáticas não atingem todos os países nem toda a sociedade da mesma forma, mas precisam de atenção que leve da inércia à ação coordenada e imediata. Ao reconhecer que a crise ambiental é ecológica, científica, econômica e política, mas também moral e espiritual, entendemos que a igreja tem um papel fundamental na busca por respostas para essas múltiplas questões.
 
A cientista climática cristã Katharine Hayhoe, um dos nomes mais importantes na atualidade em sua área, tem enfatizado em suas palestras que, antes de mais nada, “precisamos falar sobre isso”15. Para ela, precisamos reconhecer o que está em jogo, mas precisamos também de “uma esperança racional, uma visão de um futuro melhor – um futuro com energia abundante, com uma economia estável, com recursos disponíveis para todos, onde nossas vidas não sejam piores, mas melhores do que são hoje.” Para evitar que cada vez mais danos sejam irreversíveis, precisamos falar sobre as mudanças climáticas, sobre como elas nos afetam e sobre como podemos trabalhar juntos para buscar uma solução.
 
Um relacionamento sistêmico
Ao tratar do modo como nos relacionamos com a natureza, Steven Bouma-Prediger, professor de religião e diretor do programa de Estudos Ambientais do Hope College, assinala que “nós nos importamos apenas com o que amamos. Nós amamos apenas o que sabemos. E nós sabemos de fato apenas o que vivenciamos. Se não conhecemos nosso lugar – conhecendo-o mais do que de uma forma passageira e superficial, conhecendo-o intimamente e pessoalmente – então estamos destinados a usá-lo e abusar dele”.16 Essa análise nos ajuda a entender por que grande parte da sociedade permanece desconectada do mundo e ignorante da nossa profunda dependência do equilíbrio dos sistemas ecológicos. Em essência, não sabemos o suficiente e não passamos tempo suficiente na natureza para que nos motivemos a cuidar dela.
 
Se imaginamos o mundo presente apenas como algo temporário que será destruído no fim dos tempos, abraçaremos uma perspectiva fatalista que apenas aguarda o cumprimento das promessas bíblicas. Se não conhecemos o lugar em que vivemos e não reconhecemos a importância da manutenção de seu equilíbrio, não teremos motivos para cuidar. É por isso que Bouma-Prediger é enfático em defender a necessidade do que ele chama de um “letramento ecológico”17: o conhecimento da história natural de onde vivemos e uma compreensão adequada do nosso papel nos sistemas ecológicos. Um primeiro passo para essa “alfabetização” ecológica é a busca por compreender a interdependência nas relações ecológicas entre animais, plantas, microrganismos e a Terra. Associando esses conhecimentos com uma correta teologia da Criação, reconhecemos que fazemos parte da natureza criada e que dela dependemos para nosso florescimento, ao mesmo tempo que consideramos o seu valor intrínseco dado pelo Criador.
 
Entretanto, é preciso reconhecer também que a relação do homem com a criação após a Queda sofreu impactos devastadores, e hoje as atividades humanas representam sérias ameaças ao meio ambiente, gerando uma crise que vai muito além das mudanças climáticas. Extinções, desmatamentos, queimadas, poluição, produção de lixo e superexploração dos recursos naturais têm contribuído para uma crise ecológica sem precedentes que afeta o solo, o ar, a água e todo o equilíbrio de todo o sistema terrestre.18 Ao longo dos anos e com o desenvolvimento cada vez mais intenso de pesquisas nas ciências atmosféricas, nas ciências da terra e nas ciências biológicas, entendemos que o clima no nosso planeta merece um tratamento especial. Dentre todos os grandes problemas ambientais do planeta, muitos autores têm apontado as mudanças climáticas como o grande “multiplicador de ameaças”, como explica Katharine Hayhoe.19
 
Muitos no mundo desenvolvido se beneficiam de uma melhor qualidade de vida, mas o hábito de consumo, desperdício e dependência de combustíveis fósseis que se desenvolveu a partir desses benefícios resultou em um sistema de desequilíbrio econômico e social que afeta a humanidade em escala global. Estudos já mostraram que, desde a década de 1960, as mudanças climáticas aumentaram a lacuna econômica entre os países mais ricos e os mais pobres em até 25 por cento.20

Diversos exemplos podem ser dados para compreender melhor o papel das mudanças climáticas como esse fator “multiplicador de danos”. A poluição resultante tanto da queima quanto da extração de combustíveis fósseis é responsável por doenças respiratórias, câncer e mortes de variadas causas relacionadas. O impacto das mudanças climáticas nas lavouras e colheitas nas últimas décadas tem levado a grandes perdas econômicas e um desequilíbrio no uso do solo, principalmente em países mais pobres. O rápido desaparecimento de florestas tropicais, e junto com elas, de grande parte da biodiversidade, tem consequências pioradas pela perda de capacidade de absorção de carbono da atmosfera. Além disso, já se demonstrou que o desmatamento interfere no ciclo de massas de ar e de chuvas até mesmo em regiões distantes, como é visto no caso dos “Rios Voadores” da Amazônia, fluxos concentrados de vapores atmosféricos que transportam umidade e vapor de água para outras regiões do Brasil.21 As florestas bombeiam umidade e são fundamentais para que os Rios Voadores sigam seus cursos e distribuam as chuvas de forma equilibrada ao longo do caminho. Pesquisas recentes, porém, têm mostrado que esses rios são tão vulneráveis às ações humanas quanto os outros rios que conhecemos, e representam um sistema totalmente conectado e dependente da preservação florestal.22
 
Além disso, Katharine Hayhoe aponta algumas causas indiretas para as mudanças climáticas, que incluem nossas atitudes, suposições, crenças erradas e as muitas verdades incômodas que escolhemos ignorar.23 No cerne de nossa miopia, segundo ela, está o mito de uma terra infinita, que ainda espera ser ocupada e subjugada. Até alguns séculos atrás, a Terra e seus recursos pareciam ser, para todos os efeitos, infinitos. A terra e os oceanos supriam nossas necessidades e, havendo maior demanda, os homens geralmente conseguiam em algum lugar. Hayhoe é categórica em afirmar que “o que está em risco é, em última análise, a capacidade do nosso planeta de gerar vida. E aqueles que têm menos a perder já estão perdendo muito, à medida que essas mudanças aumentam as injustiças e desigualdades em nossos sistemas sociais e econômicos, empurrando os marginalizados e desfavorecidos ainda mais para a pobreza.”24

Hoje sabemos que nosso planeta é finito. Com o avançar da ciência, aprendemos a cada dia um pouco mais da complexidade dos sistemas ecológicos, e esses estudos já nos permitiram conhecer uma série de “limites planetários” que não devemos ultrapassar para que a Terra continue a ser “hospitaleira para a vida humana”.25 Um grupo de cientistas elencou uma lista de nove “limites planetários”, relacionados a fatores ecológicos e climáticos que incluem a camada de ozônio; poluição química; desmatamento; perda de biodiversidade; fluxo de nitrogênio e fósforo de fertilizantes para a biosfera e o oceano; e um limite que, segundo os estudos, já foi ultrapassado: a mudança climática.26 Como já tratado anteriormente, as mudanças climáticas não são necessariamente o pior dos eventos, mas o grande motivo de preocupação é que ela apresenta esse fator que multiplica todas as outras ameaças. Elas têm a capacidade de tornam tudo pior, dos limites planetários que afetam todos os sistemas ecológicos aos nossos desafios humanos das desigualdades, a pobreza, fome, doenças, saneamento básico e empregos. Hayhoe explica que “é por isso que trabalhar para resolver o problema das mudanças climáticas é tão importante: porque não podemos resolver nenhum desses outros problemas se não resolvermos este antes.”27

Os cientistas são capazes de diagnosticar e até prever resultados futuros de decisões que tomarmos hoje. Mas cientistas sozinhos não podem resolver o problema nem implementar as possíveis soluções. Falamos anteriormente sobre a importância de uma comunicação científica correta e um engajamento social honesto e cuidadoso. Mas como podemos, enquanto cristãos e cidadãos deste mundo, influenciar no processo de tomadas de decisões morais em relação ao meio ambiente e ao uso da terra?
 
Uma Teologia Ecológica
Um grande movimento se estabeleceu na teologia nas últimas décadas entendendo que era imperativo desenvolver uma leitura das Escrituras que se engajasse com o meio ambiente a partir de uma compreensão mais profunda da teologia da criação. Essa nova perspectiva tem sido conhecida em sua amplitude como a Ecoteologia, uma abordagem amparada pela fidelidade às Escrituras no desenvolvimento de uma ética cristã com desdobramentos evidentemente práticos. A ecoteologia é que irá nos informar sobre o chamado de todos os cristãos a cuidarem dos mais pobres e vulneráveis, tendo em vista que uma grande parcela da humanidade é impactada de forma desproporcional pela crise ambiental, pela poluição e pelas mudanças climáticas. Como Jorgenson e Padgett colocam, “a ação por si só – sem pensamento integrado, compreensão, sabedoria ou pensamento crítico – pode nos levar ao erro. Podemos piorar as coisas se não formos cuidadosos e nos envolvermos em atos impensados. A compreensão teológica tem um papel vital a desempenhar nesta sabedoria prática.”28
 
Dos desdobramentos da ecoteologia poderão surgir processos de escolhas coletivas e mudanças comunitárias, informadas pelas ciências, mas que também passem pelo cultivo de um caráter virtuoso de cada indivíduo. Conquanto diversas abordagens sejam possíveis dentro do grande guarda-chuva da teologia ecológica, queremos apresentar aqui uma abordagem focada na teoria das virtudes, no caráter moral e na sabedoria prática (phronesis). A phronesis é o que Aristóteles chama de conhecimento prático, diferente do conhecimento teórico, a sophia. Essa sabedoria prática é “informada pela experiência coletiva da comunidade e guiada por um discernimento aguçado do que é bom, correto e verdadeiro. Em outras palavras, uma pessoa sábia é aquela que sabe qual é a verdadeira boa vida, e sabe como alcançá-la.”29 Nessa abordagem, há a compreensão de uma comunidade moral como um coletivo de indivíduos que são agentes morais. Como cristãos, somos chamados a ir além, abraçando uma ideia de comunidade da criação de Deus, o que nos permite desenvolver virtudes como compaixão, justiça, amor, autocontrole e outras virtudes que vão além dos pontos de vista meramente antropocêntricos. Os proponentes de uma teoria de virtudes ecológicas, assim, pretendem avançar do conceito de mordomia para o cultivo do caráter, como exploraremos a seguir.
 
Uma Ética Cristã de Virtudes Ambientais
Essa abordagem se ampara no estudo da ética das virtudes, que busca responder à pergunta: que tipo de pessoa devo ser e como posso agir de acordo com o espírito da lei? Seguindo Steven Bouma-Prediger, entendemos que para responder as questões que temos apresentado aqui evocam não “uma discussão a respeito de direitos, deveres e consequências, mas o foco está em traços de caráter – virtudes e vícios.”30 Para ele, certas questões possuem mais coisas em jogo do que apenas análises de custo-benefício. É preciso compreender quais traços de caráter permitem alguém tomar uma decisão ou outra. As virtudes, nesse contexto, podem ser entendidas como disposições habituais particulares de agir com excelência quando necessário.
 
Thomas Hill, um filósofo pioneiro na Ética Ambiental de Virtudes, argumenta que devemos mudar “do esforço para encontrar razões pelas quais certos atos destrutivos dos ambientes naturais são moralmente errados para a antiga tarefa de articular nossos ideais de excelência humana.”31 O que Hill propõe é mudar os termos da discussão do “fazer” para “ser”, das ações para as atitudes, da conduta para o caráter.
 
O recente interesse no antigo estudo das virtudes tem como um de seus principais atores o filósofo Alasdair MacIntyre, principalmente através de sua obra seminal “Depois da Virtude”32, publicado em 1981, trazendo uma importante discussão sobre filosofia moral e ética cristã. Uma ética que trate das questões de caráter não deve ser estranha a nós, já que os traços de caráter estão no mais íntimo do nosso ser – seja na forma de virtudes como honestidade, compaixão, generosidade ou diligência, seja na forma de vícios como apatia, injustiça, avareza ou insensibilidade. O caráter está sendo formado em nós constantemente, e cabe a nós decidirmos como alimentar esse processo. O que nós fazemos depende de quem nós somos. Como James K.A. Smith desenvolve, nossas ações surgem de nossos desejos e afetos, as inclinações e disposições do nosso coração:
 
“Muito de nossa ação não é fruto de deliberação consciente; em vez disso, muito do que fazemos decorre de nossa orientação passional para o mundo – afetado por todas as maneiras que fomos preparados para perceber o mundo. Em suma, nossa ação emerge de como imaginamos o mundo. O que fazemos é impulsionado por quem somos, pelo tipo de pessoa que nos tornamos.”33
 
Bouma-Prediger propõe uma mudança de questões e termos que leve ao “reenquadramento da ética ecológica, afastando-se das abordagens tradicionais que enfocam os direitos, deveres ou consequências em favor da antiga tradição da ética da virtude.”34 Repetindo as palavras de David Orr, como nós poderemos “fazer as coisas difíceis que serão necessárias para vivermos dentro dos limites da Terra?”35 Para isso, precisamos cultivar virtudes.
 

Há muito a se aprender com o estudo da ética ambiental de virtudes, e certamente, um dos recursos importantes para essa concepção é a fé cristã. Ambientalistas, filósofos e teólogos cristãos têm desenvolvido, nos últimos anos, uma compreensão da ética ambiental das virtudes em termos profundamente alinhados com o exercício e a prática da fé. Bouma-Prediger é um dos principais nomes da atualidade nesse tema, desenvolvendo uma abordagem que ele chama de uma Ética Cristã de Virtudes Ecológicas36. Bebendo de fontes que vão desde grandes referências no pensamento ecológico contemplativo, como Aldo Leopold, John Muir, Rachel Carson e Wendell Berry, até teóricos e filósofos mais recentes como Holmes Rolston, Alasdair MacIntyre, Michael Northcott e Norman Wirzba, para citar apenas alguns, ele explora essa proposta com profundidade e propriedade.
 
A partir de uma leitura bíblica atenciosa, Bouma-Prediger identificou princípios éticos e práticas morais a partir dos quais ele desenvolveu uma lista de quatorze virtudes ecológicas:37 respeito, receptividade, moderação, frugalidade, humildade, honestidade, sabedoria, esperança, paciência, serenidade, benevolência, amor, justiça e coragem. Todas essas virtudes podem ser entendidas como disposições de caráter cruciais para que possamos cuidar propriamente do mundo em que vivemos. Para isso, é preciso expandir a compreensão de uma ética de virtudes antropocêntricas para virtudes ecológicas que se apliquem a toda a criação. Indo mais fundo, a questão se coloca em como podemos cultivá-las na construção do nosso caráter: a humildade de nos reconhecermos como criaturas de Deus; o maravilhamento pelo mundo que nos cerca; o domínio próprio que controla nossos impulsos e afetos desordenados; a busca por sabedoria e discernimento para reconhecer o que é bom e verdadeiro; o respeito pelos direitos, a busca por justiça e o cuidado com o próximo; e finalmente, a esperança e a coragem oriundas da expectativa pela implementação integral da shalom, a nova Criação. Todas estas virtudes são apresentadas como disposições habituais que nos permitem disciplinar nossos desejos desordenados e discernir o que é bom, belo e verdadeiro.
 
De forma bastante prática, o foco nas virtudes não deve, portanto, estar apenas no aprendizado sobre elas, mas em como se tornar uma pessoa cada vez mais virtuosa. Ser uma pessoa virtuosa, afinal, significará buscar fazer a coisa certa, na hora certa, da forma correta, na medida correta. Bouma-Prediger destaca o fato de que “uma virtude é um traço de caráter louvável formado a partir de narrativas. Mas nos encontramos vivendo em um mundo de narrativas concorrentes – entendimentos concorrentes do que é uma vida virtuosa.”38 No entanto, ele continua, as virtudes são moldadas pela prática, e ao viver dentro de uma história particular, vivenciamos um conjunto particular de práticas – de ritmos e rotinas comuns e incorporados – que dão forma e moldam nossas disposições. Essas práticas moldam o tipo de pessoa em que nos formamos – nossas virtudes e vícios – e assim, as ações em que nos engajamos. A virtude, como conclui Bouma-Prediger em seu livro, “é um traço de caráter digno de louvor e conformado por uma história, formada por práticas ao longo do tempo que nos dispõem a agir de determinadas maneiras. É uma disposição habitual para agir com excelência, moldada pelas narrativas com as quais nos identificamos e os exemplos que seguimos. Ao mergulharmos nas histórias de comunidades específicas, nos engajarmos em suas práticas e olharmos seus modelos, sabemos o que é realmente bom e como viver bem.”39

Conclusão
Wendell Berry, escritor e ativista ambiental, denuncia como “a maioria das organizações cristãs são indiferentes às implicações ecológicas, culturais e religiosas de uma economia industrial”40. Em outro ensaio, Berry questiona: “Se Deus ama o mundo, como qualquer pessoa de fé pode se desculpar por não o amar ou se justificar por destruí-lo?”41 Buscando responder a tantas demandas desconcertantes, Douglas e Jonathan Moo nos relembram de qual é o nosso papel nesse cenário:
 
“Nossa tarefa continua sendo a mais antiga: trabalho cuidadoso e manutenção da terra. O mundo vivo ao nosso redor, apesar de enfrentar desafios, declínios e perdas sem precedentes, também é resiliente. Em sua beleza e bondade, a criação de Deus ainda nos convida à alegria e louvor, mesmo através de nossas lágrimas e no meio de nossa tristeza. Não é apenas no nosso trabalho fiel e responsável de cuidar da criação, mas, sobretudo, talvez em nosso amor, alegria e esperança é que seremos faróis da nova criação em Cristo, vencendo as trevas do desespero por nossa confiança no Deus que nunca abandonará nem a nós nem a sua criação que geme.”42
 
Nossa preocupação, portanto, deverá se voltar para a realização de atos concretos e práticos a fim de trazer cura e shalom a um planeta ferido. Precisamos trabalhar intencionalmente de modo a incorporar essas virtudes ecológicas no nosso cotidiano, na estrutura de nossas famílias, comunidades e instituições, entendendo que a manutenção da terra é integral à fé cristã.
 
Em consonância com o ecoteólogo Joseph Sittler, reconhecemos que “quando voltamos a atenção da igreja para uma definição da relação cristã com o mundo natural, não estamos nos afastando de ideias teológicas sérias e respeitáveis; nós estamos nos colocando bem no meio delas. Existe uma motivação profundamente enraizada e genuinamente cristã para uma atenção à criação de Deus.”43 Nas palavras de Richard Mouw, “devemos compartilhar o anseio inquieto de Deus pela renovação do cosmos”44, seguindo a Cristo com esse anseio esperançoso pelo pleno estabelecimento de um reino de justiça, paz e sabedoria, o bom futuro da shalom de Deus.

Artigo originalmente publicado por ABC2. Reproduzido com permissão.
 
  • Tiago A. Pereira é Biológo pela Universidade Federal de Viçosa, mestre e doutor em Botânica pela UFV, com pós-doutorado em Biologia Molecular e Filogeografia. Atualmente, é o coordenador nacional dos Grupos de Estudo da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). É casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.

Notas:
10. George Marshall. Don’t Even Think About It: Why Our Brains Are Wired to Ignore Climate Change. (New York: Bloomsbury, 2014). 238 p.
11. Marshall. Don’t Even Think About It. Kindle, posição 111.
12. Marshall, Don’t Even Think About It. Kindle, posição 1303.
14. Naomi Oreskes; Erik M. Conway. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. (New York: Bloomsbury, 2010).
15. The most important thing you can do to fight climate change: talk about it
16. Steven Bouma-Prediger, For the Beauty of the Earth: A Christian Vision for Creation Care. 2nd Edition (Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2010), 240 p.
17. No original, “ecological literacy”.
18. Uma profusão de referências, entre artigos científicos, livros acadêmicos e matérias jornalísticas trazem atualizações constantes sobre esse tema. Uma fonte bastante acessível e bem referenciada pode ser conferida nesta compilação de perguntas frequentes no jornal norte-americano The New York Times, atualizado em 12 de maio de 2021, disponível em The Science of Climate Change Explained: Facts, Evidence and Proof
19. Katharine Hayhoe, Foreword, in: Kiara Jorgenson e Alan Padgett, Eds. Ecotheology: A Christian Conversation (Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 2020); K. Hayhoe e Andrew Farley, A Climate for Change: Global Warming Facts for Faith-Based Decisions. (New York: FaithWords, 2009).
20. N. Diffenbaugh and M. Burke, “Global Warming Has Increased Global Economic Inequality,” Proceedings of the National Academy of Sciences 116, 9808–9813 (2019). 
23. Hayhoe, Foreword.
24. Ibid.
25. J. Rockström et al., “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity”, Ecology and Society 14: 32 (2009). doi:10.5751/ES-03180-140232
26. W. Steffen et al., “Planetary Boundaries: Guiding Human Development on a Changing Planet”, Science 347 (2015). doi: 10.1126/science.1259855
27. Hayhoe, Foreword.
28. Kiara Jorgenson and Alan Padgett, Eds. Ecotheology: A Christian Conversation (Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 2020), 248 p.
29. Steven Bouma-Prediger, Earthkeeping and Character: Exploring a Christian Ecological Virtue Ethic (Grand Rapids, Michigan, Baker Academic, 2020) p. 57.
30. Bouma-Prediger, Earthkeeping, p. 02.
31. Thomas Hill Jr., “Ideals of Human Excellence and Preserving Natural Environments” Environmental Ethics 5(3): 211-224 (1983).
32. Alasdair MacIntyre, Depois da Virtude: Um Estudo sobre Teoria Moral (Campinas, São Paulo: Vide Editorial, 2021). 408 p.
33. James K.A. Smith, Imaginando o Reino: A Dinâmica do Culto (São Paulo, SP: Vida Nova, 2019) 344 p.; ver também James K.A. Smith, Você é Aquilo que Ama: O Poder Espiritual do Hábito (São Paulo, SP: Vida Nova, 2017). 256 p.
34. Bouma-Prediger, Earthkeeping, p. 02.
35. David Orr, Earth in Mind (Washington, DC: Island Press, 1994). p. 62.
36. Bouma-Prediger, Earthkeeping.
37. Bouma-Prediger, For the Beauty of the Earth.
38. Bouma-Prediger, Earthkeeping, p. 16.
39. Bouma-Prediger, Earthkeeping, p. 17.
40. Wendell Berry, Sex, Economy, Freedom and Community (New York: Pantheon, 1993), p. 94-95.
41. Wendell Berry, What are people for? (San Francisco: North Point, 1990), p. 98.
42. Douglas Moo e Jonathan Moo, Creation Care: A Biblical Theology of the Natural World (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2018), p. 219-220.
43. Joseph Sittler, Gravity and Grace (Minneapolis: Augsburg, 1986), p. 15.
44. Richard Mouw, When the Kings Come Marching In (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983)

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