SUMÁRIO
Edição 389
Maio-Junho 2021
AINDA QUE A FIGUEIRA NÃO FLORESÇA - DESALENTO E ESPERANÇA NA PANDEMIA
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Meu chamado ao mistério
Por Bráulia Ribeiro
Já contei muitas vezes aos leitores a história da minha conversão adolescente a Cristo e do meu início em missões poucos meses depois. Tendo sido criada em um lar dividido entre o ateísmo racionalista de meu pai e o catolicismo místico de minha mãe, eu sempre soube que um dia eu teria de decidir entre uma perspectiva de vida e outra. Um lado me apresentava a fé nem sempre muito lógica, que deixava a vida cheia de áreas mal explicadas, misteriosas, e que me conduziria, eu calculava, a um estado de dependência do Outro, ou Deus, como ela chamava. Parecia-me quando criança que, se eu abraçasse essa visão de mundo, eu teria de aceitar viver na liminaridade de um mundo que eu não conheceria completamente. Não teria controle sobre a vida, não teria respostas claras. Mas seria inevitavelmente cheia de esperança e otimismo, porque esse tipo de paradoxo – a entrega e a esperança – estava sempre presente na fé vivida por minha mãe.
A opção de vida de meu pai, no entanto, era sólida, racional, sustentada pelo mundo sensorial. Eu viveria no mundo físico e só nele. Não haveria para mim mistérios, apenas problemas ainda não resolvidos. Deus eu não via, não tocava, não ouvia, portanto por que deveria me ocupar com ele? Deus era um detalhe dispensável nesse universo. Só que, ao permitir a inexistência do Outro, eu sabia que teria de abandonar também toda a esperança. O mundo do ceticismo me permitiria o controle sobre algumas coisas, sobre o que eu aprendi a chamar de “racionalidade”. Mas meu pai era um intelectual da cepa mais honesta, daqueles que vivem intensamente a tristeza e o desespero que sua filosofia de vida propõe. Eu sabia, observando a sua vida, que, como ele, eu também seria lançada no desespero da consciência dos limites que a condição humana impõe.
Apesar disso, o mundo de meu pai me pareceu mais atraente, me colocava numa posição de superioridade intelectual que a fé, às vezes ingênua, de minha mãe não permitia. Assim que entendi o conflito entre as duas visões de mundo, abracei o ateísmo de meu pai. Tornei-me aos 11 anos de idade uma ateísta convicta. Meu pai me guiava em leituras que fortaleciam meu ponto de vista. Na escola ganhei prestígio entre os colegas. Eu era o ser superior, “descrente no sistema”. Quando nas férias eu visitava primos queridos muito católicos, fazia troça da sua fé de gente do interior, estripando com uma erudição precoce seus argumentos na defesa da tradição de seus pais. Tornei-me uma típica intelectual urbana. E, como não podia deixar de ser, a esperança na utopia política rapidamente substituiu qualquer resquício de fé no além que ainda restasse no meu coração.
Mas um dia, que não marquei no calendário, mas que não consigo esquecer, a realidade se encontrou comigo. Eu tinha uns 15 anos. Dormia num quarto em construção, ainda sem forro, e da minha cama eu podia ver uma abertura sem porta para o espaço escuro entre o telhado e a laje do resto da casa. Eu tinha acabado de terminar a leitura de um livro que falava sobre a vida numa colônia de leprosos. Era tarde, e não sei se por um ato soberano do Senhor ou se pelo inexorável encontro da arrogância de minha racionalidade jovem com a grandeza da vida, o mistério foi lentamente me envolvendo. Deitada no sofá-cama eu vi o mundo como minha mãe o via, nós humanos, pequenos e frágeis, impotentes diante do absurdo inexplicável de tudo. Certezas não estavam ao meu alcance. O mistério da vida era maior e mais forte do que qualquer capacidade minha de entendê-lo jamais seria. E foi assim, apavorada, esperando que almas e criaturas de outro mundo viessem falar comigo saídas do buraco da laje, que me encontrei novamente com o mistério e a dúvida. Essa conversão ao mistério fertilizou o meu coração permitindo-me o encontro com Cristo alguns meses depois. Por que escrevo sobre isso neste momento? Porque, leitor, é sempre bom ser lembrado de que a fé verdadeira não habita um coração cheio de certezas.
• Bráulia Ribeiro trabalhou como missionária na Amazônia durante trinta anos e no Pacífico Sul por seis anos. É MDiv pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e doutoranda em história e teologia política na Universidade de St. Andrews, Escócia. É autora dos livros Chamado Radical e Tem Alguém Aí Em Cima?, publicados pela Editora Ultimato. www.braulia.com.br.
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