Colunas — Missão Integral
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Da globalização da avareza à globalização da justiça
Por René Padilla
O desafio de resistir à cultura do consumismo e optar pela bem-aventurada busca da justiça
O primeiro livro genial que li anos atrás sobre o fenômeno da globalização foi Globalization – Capitalism and its alternatives [Globalização – O capitalismo e suas alternativas], do sociólogo inglês Leslie Sklair. Segundo ele, a globalização capitalista, que surgiu na segunda metade do século 20, é “uma maneira específica de organizar a vida social a despeito das barreiras de estados existentes”. Essa globalização inclui três práticas transnacionais: a corporação transnacional, a classe capitalista transnacional e a cultura/ideologia do consumismo. A força motriz do sistema econômico global atual é a classe capitalista transnacional, à qual pertencem os burocratas, políticos e profissionais. “Estes derivam sua base material das corporações transnacionais, adotam o sistema de valores da cultura/ideologia do consumismo e se envolvem em práticas que cruzam fronteiras (nacionais), porém não têm sua origem em atores, agências ou instituições locais”. Toda a evidência leva à conclusão de que “o capitalismo global, movido mais diretamente por corporações transnacionais, organizado politicamente pela classe política transnacional e estimulado pela cultura/ideologia do consumismo, é a força mais potente para a mudança no mundo atual”. Trata-se da globalização da avareza.
Em um livro profético intitulado Capitalismo e Progresso – Um diagnóstico da sociedade ocidental,1 o economista holandês cristão Bob Goudzwaard descreve o que ele chama de as três “vulnerabilidades” do sistema de progresso capitalista ocidental: a vulnerabilidade ecológica, visível na destruição do ecossistema e no desaparecimento da biodiversidade; a vulnerabilidade econômica, demonstrada pela inflação crescente, pelo desemprego estrutural e pela desigualdade social, que apresenta uma ética posta a serviço do crescimento econômico; e a vulnerabilidade humana, que se manifesta no fato de as pessoas aceitarem ajustes contínuos nas demandas que lhes são impostas pela sociedade de consumo em relação a esportes, à vida sexual e ao uso do tempo.
Desses três tipos de vulnerabilidade, a mais afetada pela globalização é a econômica, que abre caminho para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) se constitua no mais eficiente agente para que as grandes corporações dos países desenvolvidos ampliem sua influência global em benefício próprio. O FMI foi fundado durante a Grande Depressão como um tipo de associação internacional de crédito. Quase todos os países do mundo estão afiliados a essa associação. Cada um contribui conforme o próprio desenvolvimento econômico, e qualquer país pode solicitar empréstimos em casos de crises econômicas. Contudo, os empréstimos não vêm sozinhos, mas acompanhados de condições que, na prática, se transformam em imposições que favorecem os interesses políticos e econômicos dos países emprestadores, mais poderosos e influentes, ao mesmo tempo que afetam bastante a distribuição do gasto público dos países tomadores de empréstimos. Isso justifica o fato de a classe capitalista transnacional encarregada dos governos locais não olhar para as necessidades do povo em termos de trabalho, saúde, educação e moradia, mas impor as próprias prioridades de classe definidas principalmente pela cultura/ideologia do consumismo. Assim, se abre a possibilidade de um novo colonialismo e de uma luta desigual entre a avareza dos poderosos e o anelo por justiça dos vulneráveis.
O testemunho de Joseph E. Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, nos ajuda a entender o problema. Como vice-presidente do Banco Mundial e posterior assessor econômico do governo dos Estados Unidos durante a presidência de Bill Clinton, esse brilhante economista conheceu a fundo as negociações do FMI com vários países (entre eles, o Brasil) em situação de grave crise econômica. A partir dessa base, Stiglitz escreveu O Mal-estar da Globalização (do espanhol El malestar de la globalización), obra em que levanta assuntos de suma importância para se avaliar o trabalho do FMI. O maior mérito dessa obra é ter sido escrita com base na rica experiência de um dos economistas que, além de ter se destacado no campo profissional, se sentiu motivado por um compromisso ético focado na justiça social. Seu sonho como economista é o de um mundo sem pobreza, com uma globalização redesenhada para que seus benefícios não sejam monopolizados pela classe transnacional, devotados ao deus dinheiro, mas se estendam equitativamente a todos os habitantes do mundo. Com requinte de detalhes, ele demonstra no livro que, embora o FMI tenha sido criado para ajudar países que estivessem enfrentando problemas econômicos graves, longe de cumprir essa missão, seus fundos e programas “não apenas não estabilizavam a situação, mas também em muitos casos a pioravam, especialmente para os pobres”, de modo que “algumas vezes, o programa do FMI deixou o país tão pobre como antes, porém, mais endividado, e com uma elite dirigente ainda mais rica”.
A análise magistral feita por Joseph E. Stiglitz sobre a globalização da avareza no mundo contemporâneo nos convida a levar a sério o desafio trazido pela necessidade urgente de lutar pela globalização da justiça a partir do nosso contexto de vida. Afinal, “bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.10).
Nota
1. Editora Ultimato, no prelo.
Traduzido por Vera Jordan.
• C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de Missão Integral – O reino de Deus e a igreja e Repensando a Missão na Igreja Local. Acompanhe seu blog pessoal: kairos.org.ar/blog.
Leia mais
> A missão da paz e da justiça
O desafio de resistir à cultura do consumismo e optar pela bem-aventurada busca da justiça
O primeiro livro genial que li anos atrás sobre o fenômeno da globalização foi Globalization – Capitalism and its alternatives [Globalização – O capitalismo e suas alternativas], do sociólogo inglês Leslie Sklair. Segundo ele, a globalização capitalista, que surgiu na segunda metade do século 20, é “uma maneira específica de organizar a vida social a despeito das barreiras de estados existentes”. Essa globalização inclui três práticas transnacionais: a corporação transnacional, a classe capitalista transnacional e a cultura/ideologia do consumismo. A força motriz do sistema econômico global atual é a classe capitalista transnacional, à qual pertencem os burocratas, políticos e profissionais. “Estes derivam sua base material das corporações transnacionais, adotam o sistema de valores da cultura/ideologia do consumismo e se envolvem em práticas que cruzam fronteiras (nacionais), porém não têm sua origem em atores, agências ou instituições locais”. Toda a evidência leva à conclusão de que “o capitalismo global, movido mais diretamente por corporações transnacionais, organizado politicamente pela classe política transnacional e estimulado pela cultura/ideologia do consumismo, é a força mais potente para a mudança no mundo atual”. Trata-se da globalização da avareza.
Em um livro profético intitulado Capitalismo e Progresso – Um diagnóstico da sociedade ocidental,1 o economista holandês cristão Bob Goudzwaard descreve o que ele chama de as três “vulnerabilidades” do sistema de progresso capitalista ocidental: a vulnerabilidade ecológica, visível na destruição do ecossistema e no desaparecimento da biodiversidade; a vulnerabilidade econômica, demonstrada pela inflação crescente, pelo desemprego estrutural e pela desigualdade social, que apresenta uma ética posta a serviço do crescimento econômico; e a vulnerabilidade humana, que se manifesta no fato de as pessoas aceitarem ajustes contínuos nas demandas que lhes são impostas pela sociedade de consumo em relação a esportes, à vida sexual e ao uso do tempo.
Desses três tipos de vulnerabilidade, a mais afetada pela globalização é a econômica, que abre caminho para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) se constitua no mais eficiente agente para que as grandes corporações dos países desenvolvidos ampliem sua influência global em benefício próprio. O FMI foi fundado durante a Grande Depressão como um tipo de associação internacional de crédito. Quase todos os países do mundo estão afiliados a essa associação. Cada um contribui conforme o próprio desenvolvimento econômico, e qualquer país pode solicitar empréstimos em casos de crises econômicas. Contudo, os empréstimos não vêm sozinhos, mas acompanhados de condições que, na prática, se transformam em imposições que favorecem os interesses políticos e econômicos dos países emprestadores, mais poderosos e influentes, ao mesmo tempo que afetam bastante a distribuição do gasto público dos países tomadores de empréstimos. Isso justifica o fato de a classe capitalista transnacional encarregada dos governos locais não olhar para as necessidades do povo em termos de trabalho, saúde, educação e moradia, mas impor as próprias prioridades de classe definidas principalmente pela cultura/ideologia do consumismo. Assim, se abre a possibilidade de um novo colonialismo e de uma luta desigual entre a avareza dos poderosos e o anelo por justiça dos vulneráveis.
O testemunho de Joseph E. Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, nos ajuda a entender o problema. Como vice-presidente do Banco Mundial e posterior assessor econômico do governo dos Estados Unidos durante a presidência de Bill Clinton, esse brilhante economista conheceu a fundo as negociações do FMI com vários países (entre eles, o Brasil) em situação de grave crise econômica. A partir dessa base, Stiglitz escreveu O Mal-estar da Globalização (do espanhol El malestar de la globalización), obra em que levanta assuntos de suma importância para se avaliar o trabalho do FMI. O maior mérito dessa obra é ter sido escrita com base na rica experiência de um dos economistas que, além de ter se destacado no campo profissional, se sentiu motivado por um compromisso ético focado na justiça social. Seu sonho como economista é o de um mundo sem pobreza, com uma globalização redesenhada para que seus benefícios não sejam monopolizados pela classe transnacional, devotados ao deus dinheiro, mas se estendam equitativamente a todos os habitantes do mundo. Com requinte de detalhes, ele demonstra no livro que, embora o FMI tenha sido criado para ajudar países que estivessem enfrentando problemas econômicos graves, longe de cumprir essa missão, seus fundos e programas “não apenas não estabilizavam a situação, mas também em muitos casos a pioravam, especialmente para os pobres”, de modo que “algumas vezes, o programa do FMI deixou o país tão pobre como antes, porém, mais endividado, e com uma elite dirigente ainda mais rica”.
A análise magistral feita por Joseph E. Stiglitz sobre a globalização da avareza no mundo contemporâneo nos convida a levar a sério o desafio trazido pela necessidade urgente de lutar pela globalização da justiça a partir do nosso contexto de vida. Afinal, “bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.10).
Nota
1. Editora Ultimato, no prelo.
Traduzido por Vera Jordan.
• C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de Missão Integral – O reino de Deus e a igreja e Repensando a Missão na Igreja Local. Acompanhe seu blog pessoal: kairos.org.ar/blog.
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