Colunas — Da linha de frente
- Março-Abril 2014
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A cultura, esta nossa inimiga
Bráulia Ribeiro
Hospedados numa casa de duas missionárias, ao lado de um lago do rio Purus, eu me perguntava se não estávamos cometendo um pecado contra os índios que tentávamos servir. A casa era um barraco de madeira, sem banheiro nem água encanada, com dois quartos minúsculos, uma sala sem móveis e uma cozinha com fogão, uma mesinha simples e uma bacia com água à guisa de pia. Porém, estávamos cercados de barracos indígenas sem parede, com telhados de palha e chão de tronco de palmeira, apenas um pouco acima do solo lamacento das margens do lago. A etnia Paumari do Amazonas aprende a nadar antes de aprender a andar e vive em total simbiose com o lago e o majestoso rio Purus.
O meu entendimento missiológico dizia-me que a cultura era formada principalmente pelas técnicas, pelos instrumentos, rituais e programas que determinavam a adaptação de um agrupamento humano a seu meio ambiente. Cultura é não só o que vestimos, o que comemos, como comemos, como amamos e como andamos, mas também o que pensamos sobre o que vestimos e sobre como comemos, amamos e andamos.
Na antropologia de Boas e Strauss, que me influenciou, a cultura tem um forte significado material e implica a submissão humana aos preceitos funcionais que a governam. A cultura se traduz no que se vê e é tão frágil quanto o estilo de vida indígena. Se as circunstâncias materiais mudam, a cultura morre. Por isso, defende-se nessa tradição antropológica o isolamento das tribos. Melhor isolar para que não se “contaminem”. Se forem “contaminados” pela polinização cultural, deixam de ser quem são.
Os pesquisadores dessa linha estavam sempre interessados no passado, na vida tradicional, e até mesmo criaram um conceito chamado de “presente histórico”, que congelava as culturas num estado atemporal. À sombra da mesma ideia da “kultur”, depois de Lausanne desenvolvemos uma missiologia do respeito, mas algumas ideias chegando quase à idolatria da cultura, confundindo o valor das gentes com o valor das cores, comidas e danças das gentes. Eu não me atrevia nem mesmo a pensar que os Paumari poderiam querer um dia morar diferente. Casebre flutuante lutando contra a enchente do rio seria parte essencial do jeito Paumari de ser.
Trabalhei com indígenas “de verdade” -- do tipo pelado que caça de arco e flecha -- e com aqueles cercados pelo estilo de vida e desafios das cidades. Concluí que a cultura humana é mais que sua dimensão material. Sou tão brasileira morando no exterior, como o era morando no Brasil. Cultura são as gentes, suas histórias, suas memórias; cultura é um conjunto de acervos intangíveis. É a narrativa épica, é o conteúdo emocional que só existe se existir o povo. De “blue jeans” ou de tanga, carrego na alma a marca da minha cultura.
Sou defensora ferrenha da missão que se encarna, que se empobrece, que se desnuda. Porém, creio também que para além dela temos de ser a missão que empodera para que se vença a pobreza, a missão que educa para que as gentes se dispam de aspectos perniciosos de suas culturas, mas continuem sendo elas mesmas.
O sociólogo Robert Woodberry1 fez uma descoberta extraordinária e que enfraqueceu o mito do missionário ocidental “destruidor” de culturas. Com abundância de quadros de estatísticas e quatorze anos de pesquisa, ele percebeu que o fator que separou países da África que hoje se afundam na miséria e em governos tirânicos daqueles que experimentam a liberdade democrática foi um só: missionários protestantes que se empenharam em pregar um evangelho que transformasse as culturas onde trabalharam.
Que a nova geração de missionários recupere a iconoclastia do evangelho e o desrespeito que este amor tem por aquilo que não é amor. A cultura digna de ser preservada é a cultura que transmite e nutre o amor.
Nota
1. Woodberry, Robert D. 2012. “The Missionary Roots of Liberal Democracy.” “American Political Science Review”, n. 106 (2).
• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família, e está envolvida em projetos de tradução da Bíblia nas ilhas do Pacífico. É autora de Chamado Radical e Tem Alguém Aí em Cima?. Acompanhe mais conteúdo no blog pessoal de Bráulia.
Hospedados numa casa de duas missionárias, ao lado de um lago do rio Purus, eu me perguntava se não estávamos cometendo um pecado contra os índios que tentávamos servir. A casa era um barraco de madeira, sem banheiro nem água encanada, com dois quartos minúsculos, uma sala sem móveis e uma cozinha com fogão, uma mesinha simples e uma bacia com água à guisa de pia. Porém, estávamos cercados de barracos indígenas sem parede, com telhados de palha e chão de tronco de palmeira, apenas um pouco acima do solo lamacento das margens do lago. A etnia Paumari do Amazonas aprende a nadar antes de aprender a andar e vive em total simbiose com o lago e o majestoso rio Purus.
O meu entendimento missiológico dizia-me que a cultura era formada principalmente pelas técnicas, pelos instrumentos, rituais e programas que determinavam a adaptação de um agrupamento humano a seu meio ambiente. Cultura é não só o que vestimos, o que comemos, como comemos, como amamos e como andamos, mas também o que pensamos sobre o que vestimos e sobre como comemos, amamos e andamos.
Na antropologia de Boas e Strauss, que me influenciou, a cultura tem um forte significado material e implica a submissão humana aos preceitos funcionais que a governam. A cultura se traduz no que se vê e é tão frágil quanto o estilo de vida indígena. Se as circunstâncias materiais mudam, a cultura morre. Por isso, defende-se nessa tradição antropológica o isolamento das tribos. Melhor isolar para que não se “contaminem”. Se forem “contaminados” pela polinização cultural, deixam de ser quem são.
Os pesquisadores dessa linha estavam sempre interessados no passado, na vida tradicional, e até mesmo criaram um conceito chamado de “presente histórico”, que congelava as culturas num estado atemporal. À sombra da mesma ideia da “kultur”, depois de Lausanne desenvolvemos uma missiologia do respeito, mas algumas ideias chegando quase à idolatria da cultura, confundindo o valor das gentes com o valor das cores, comidas e danças das gentes. Eu não me atrevia nem mesmo a pensar que os Paumari poderiam querer um dia morar diferente. Casebre flutuante lutando contra a enchente do rio seria parte essencial do jeito Paumari de ser.
Trabalhei com indígenas “de verdade” -- do tipo pelado que caça de arco e flecha -- e com aqueles cercados pelo estilo de vida e desafios das cidades. Concluí que a cultura humana é mais que sua dimensão material. Sou tão brasileira morando no exterior, como o era morando no Brasil. Cultura são as gentes, suas histórias, suas memórias; cultura é um conjunto de acervos intangíveis. É a narrativa épica, é o conteúdo emocional que só existe se existir o povo. De “blue jeans” ou de tanga, carrego na alma a marca da minha cultura.
Sou defensora ferrenha da missão que se encarna, que se empobrece, que se desnuda. Porém, creio também que para além dela temos de ser a missão que empodera para que se vença a pobreza, a missão que educa para que as gentes se dispam de aspectos perniciosos de suas culturas, mas continuem sendo elas mesmas.
O sociólogo Robert Woodberry1 fez uma descoberta extraordinária e que enfraqueceu o mito do missionário ocidental “destruidor” de culturas. Com abundância de quadros de estatísticas e quatorze anos de pesquisa, ele percebeu que o fator que separou países da África que hoje se afundam na miséria e em governos tirânicos daqueles que experimentam a liberdade democrática foi um só: missionários protestantes que se empenharam em pregar um evangelho que transformasse as culturas onde trabalharam.
Que a nova geração de missionários recupere a iconoclastia do evangelho e o desrespeito que este amor tem por aquilo que não é amor. A cultura digna de ser preservada é a cultura que transmite e nutre o amor.
Nota
1. Woodberry, Robert D. 2012. “The Missionary Roots of Liberal Democracy.” “American Political Science Review”, n. 106 (2).
• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona, no Havaí, com sua família, e está envolvida em projetos de tradução da Bíblia nas ilhas do Pacífico. É autora de Chamado Radical e Tem Alguém Aí em Cima?. Acompanhe mais conteúdo no blog pessoal de Bráulia.
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