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Opinião

Fé corporificada

Liturgia não é somente um rito que “oferecemos” a Deus, pois algo acontece conosco ao tomarmos parte dela

Por Adryana Diniz Gomes

O livro Fé ritualizada - ensaios em filosofia da liturgia traz onze ensaios sobre uma área da filosofia da religião que não é muito conhecida: a filosofia da liturgia. Ao longo dos capítulos, Terence Cuneo explora o papel da oração, dos salmos, dos cânticos, dos gestos, dos rituais e das imagens na liturgia da Igreja do Leste com riquíssimas explicações e forte embasamento teórico. Seu desejo é aproximar a filosofia acadêmica das questões cotidianas sobre a vivência do cristianismo e, para tomar a liturgia como objeto de estudo da filosofia da religião, Cuneo se volta para o Cristianismo do Leste, onde os rituais têm papel mais central na vida cotidiana.

Porém, a relação do autor com as liturgias do Leste não é apenas teórica. Cuneo vem de uma família católica, cresceu no protestantismo e, por fim, já adulto, tornou-se parte da Igreja Ortodoxa. Em seu último capítulo, Cuneo conta como foi capturado por essas práticas litúrgicas e como elas trouxeram significado a questões que sua experiência protestante não pode responder.

Talvez haja dúvidas sobre por que ler um livro sobre liturgias do cristianismo do Leste. Na tradição protestante, que tende a focar nas confissões de fé e nas doutrinas, os rituais são vistos como secundários. Entretanto, mais do que suprir a curiosidade de entender o sentido das imagens, do incenso e das repetições, este livro oferece importantes reflexões sobre o papel da liturgia na experiência cristã a partir da filosofia analítica. Muito se tem dito, entre filósofos analíticos cristãos, sobre a crença teísta e o conhecimento de Deus, porém, nossa relação com a crença não é cognitivista. Cuneo argumenta que as práticas litúrgicas também nos levam ao conhecimento de Deus; o que ele chama de conhecimento ritual.

Cuneo argumenta que as práticas litúrgicas também nos levam ao conhecimento de Deus; o que ele chama de conhecimento ritual.


Cuneo define liturgia como uma “sequência de tipos de ação intencionalmente seguida por uma assembleia que possui significado específico dentro do contexto que ocorre”.1 O autor defende que a liturgia não deve ser vista como uma saída do profano para o sagrado, mas uma resposta à manifestação de Deus no mundo em que vivemos e ao convite divino para sermos sacerdotes do mundo, oferecendo a Deus aquilo que Ele nos deu. Entretanto, liturgia não é somente um rito que “oferecemos” a Deus, pois algo acontece conosco ao tomarmos parte dela. Não porque a sequência de atos altere o participante, mas porque a repetição nos molda em nossos compromissos espirituais. Neste estudo, iremos explorar essa ideia em diálogo com James K. A. Smith e a ética das virtudes.

Formação litúrgica

Cuneo aponta, principalmente nos capítulos 4 e 5, que a liturgia contribui para construção da identidade narrativa, isto é, “uma sequência de eventos que tem o agente como sujeito, à qual ele ou ela pode se referir se quiser contar com precisão uma história de sua vida”.2

Essa narrativa dá forma às ideias abstratas e nos ajuda a compreender nosso lugar/papel em um todo maior, dando corpo aos compromissos éticos e nos levando ao autoexame. Especialmente, essa identidade narrativa construída pela liturgia está dentro do que Cuneo chama de “narrativa nuclear”, isto é, “a história tanto das maneiras como os seres humanos se envolvem com Deus quanto das maneiras como Deus se envolve com os seres humanos”.3

Há momentos de reencenação no roteiro litúrgico em que os congregantes se tornam atores, reencenando as ações de personagens bíblicos, como o filho pródigo ou Maria de Betânia. Cuneo explica que isso não se dá por fingimento, mas no desempenho de um papel-alvo. O desejo do participante é arrepender-se como o filho pródigo e dedicar-se a Deus como Maria.

O autor defende que a reencenação litúrgica é capaz de dar forma às ideias abstratas, como “virtude”, ao produzir uma familiaridade íntima com a narrativa bíblica. Alguns personagens bíblicos são apresentados como modelos, cujas características devemos incorporar, através de atos de fala em primeira pessoa. Ao repetir as palavras de Maria ou de Zacarias, o participante tem a oportunidade de adotar uma nova perspectiva e de autorreflexão. Isto contribui para a formação de sua identidade narrativa ao mesmo tempo que possibilita a expansão da concepção de si mesmo e, também, o habilita a examinar seus ideais éticos e religiosos em relação a esses personagens.

Um diálogo entre Cuneo e Smith

Para explorar melhor essas ideias, podemos fazer um diálogo com outro filósofo: James K. A. Smith, que, apesar de não fazer parte da mesma tradição que Cuneo, é mencionado em seu livro. Smith nos apresenta4 a sua “Filosofia da ação litúrgica”, afirmando que a imaginação molda nossos amores, os amores formam o que somos, e o que somos afeta o que fazemos. Assim, as histórias que contamos têm o poder de moldar nossa percepção do mundo e como vivemos nele.

As liturgias cristãs recontam, interpretam, exploram, reencenam e celebram a narrativa nuclear. Cuneo nos diz que as ações do roteiro litúrgico repetem tal narrativa em ritos como a eucaristia (onde tomamos o vinho, e partimos, distribuímos e comemos o pão) e também reencenam por meio de símbolos, como na missa ortodoxa da Sexta-Feira Santa (a Tenebrae nas tradições católica e anglicana) que apresenta um sepultamento simbólico de Cristo.

Segundo Smith, a ação se dá na situação como uma resposta corporificada à percepção do mundo.5 Podemos considerar então que a liturgia nos apresenta uma narrativa que molda nossa imaginação e condiciona a nossa percepção do mundo, inserindo-nos na história, e nos treina, por intermédio de micropráticas, como um certo tipo de pessoa que vive de certa maneira. Em outras palavras, a liturgia afeta o habitus.

Na sociologia, habitus é um conceito que fala de um sistema de disposições que são estruturadas e estruturantes.6 Isso quer dizer que ele é comunitário e coletivo (nos tornando parte das instituições enquanto as realiza plenamente), mas é também pessoal e político, condicionando a construção de sentido. O habitus é a “base da percepção”, e é a partir dele que vivemos no mundo. E, por isso, ele é naturalizado, sendo tão parte de nós que quase o chamamos de instinto.

As práticas, tanto as religiosas como quaisquer outras, possuem um “poder de formação” que é anterior à reflexão teórica da doutrina. Smith afirma que a pergunta mais importante que podemos fazer é “que tipo de pessoa determinado hábito ou prática está tentando produzir?”7



As práticas, tanto as religiosas como quaisquer outras, possuem um “poder de formação” que é anterior à reflexão teórica da doutrina.

Nas liturgias que Cuneo descreve, o indivíduo tem participação ativa e desempenha um papel-alvo, aquilo a que ele aspira ser. Não é apenas sobre o conteúdo, as palavras ditas, mas também sobre a forma: postura corporal, objetos e símbolos envolvidos. Há o objetivo de tornar-se semelhante ao que se representa, o que inclui o exame de sua própria identidade. Para parafrasear Smith, “que tipo de pessoa determinada liturgia está tentando produzir?” Ou, ainda, em que tipo de pessoas somos formados nas nossas liturgias evangélicas?  Passemos então às virtudes.

Sobre liturgias e virtudes

Aqui, entendemos virtudes como hábitos adquiridos que, quando praticados com frequência, nos levam ao florescimento.8 Por “hábito adquirido” entende-se que as virtudes não são naturais ou espontâneas, ou seja, elas não surgem “do nada” e nem são traços de personalidade. É algo que se busca, na prática frequente, até que se torne nossa resposta automática, naturalizada. O oposto da virtude é o vício, uma disposição natural que pode ser alimentada em nós sem que percebamos.

Podemos considerar que a virtude é habitus. E, se a liturgia forma habitus, então a liturgia é capaz de contribuir para a formação das virtudes em nós. Analisemos as liturgias descritas por Cuneo, como elas contribuem para a formação de virtudes e o que podemos aprender com elas.

Podemos considerar que a virtude é habitus. E, se a liturgia forma habitus, então a liturgia é capaz de contribuir para a formação das virtudes em nós.

Cuneo, ao nos apresentar ao canto litúrgico no capítulo 7, explica que, com exceção da homília, toda a liturgia é cantada. O canto é entendido como a forma mais adequada de expressar adoração. Cuneo aponta que há uma relação entre forma e conteúdo, e, por isso, o estilo não é neutro em relação ao conteúdo. O autor entende “conteúdo” como “qualquer coisa que seu público deve compreender para entender o que o locutor está dizendo”,9 ou seja, a “mensagem”, e não as palavras em si. Seguindo essa descrição de Cuneo, somos apresentados a uma distinção entre forma primária – o gênero, isto é, poesia, oração, narrativa, credo – e forma secundária – o canto.

O canto coletivo promove, segundo Cuneo, instanciação com o conteúdo, isto é, um tipo de envolvimento em que o “indivíduo vivencia elementos importantes do conteúdo com o qual se envolve”.10 Não porque há algum poder místico na música – note que o canto litúrgico do Leste é feito somente pela congregação. O canto permite que os participantes da liturgia corporifiquem a mensagem.

O conteúdo da liturgia considera relações corretas consigo mesmo, uns com os outros, com a natureza e com Deus. A isso chamamos shalom ou, no grego, eirene. As ações litúrgicas, incluindo o canto, são “formas nas quais os congregados promovem a visão de shalom/eirene”.11 O canto coletivo é apresentado como algo que nos tira de nós mesmos e nos leva a coordenar nossas ações com os outros. Isso porque requer atenção plena dividida – entre si e o outro, para que possam executar a harmonia juntos – e resposta em tempo real coordenada – uma reação sincrônica ao que o outro está fazendo.

Isso significa que o canto coletivo na liturgia nos ajuda a alcançar a “ética da exterioridade”, apresentada por Cuneo já no primeiro capítulo, como uma abertura intencional para o outro em suas necessidades além do meu entorno social. Ao cantar a Grande Litania de São João Crisóstomo, o participante da liturgia não se limita às suas necessidades individuais, mas se une a toda a congregação para abençoar todas as pessoas, incluindo seus inimigos. Cuneo diz que esse momento da liturgia não é somente pelo nosso desejo que a situação do outro mude, mas também para manter nossos corações abertos às suas necessidades e não os abandonar no sofrimento.

Na tradição protestante, é comum entender a fé como assentimento a um conjunto de proposições, logo, nossas liturgias são centradas no discurso e nossas igrejas, vazias de arte. Porém, segundo Smith, as liturgias treinam o habitus pelo corpo.

Cuneo diz, no capítulo 8, que o cristianismo não é um conjunto de proposições, mas sim “um modo de vida que é completamente prático”,12 é sobre envolver-se com Deus. E para isso, orar, salmodiar, participar dos sacramentos e ajudar os necessitados são atividades necessárias para que possamos conhecer a Deus. Cuneo trata “conhecer” como “estar em sintonia”. Participar da liturgia nos ajuda a desenvolver um conhecimento prático de Deus. Por meio das ações litúrgicas, como bendizer, dar graças ou fazer petições, o participante pode se envolver com Deus. Isso nos permite mergulhar na narrativa nuclear, expandindo a nossa percepção e alterando as nossas sensibilidades. Assim, a liturgia, com sua repetição, nos treina para agir de maneiras que harmonizam com Deus.

Se forma e conteúdo estão intrinsecamente ligados, como Cuneo afirma e como Hans Rookmaaker também acreditava,13 então não é somente o conteúdo da liturgia que contribui para a formação de virtudes, mas também sua forma. Isso significa que a estética da liturgia importa tanto quanto a mensagem. Sendo assim, o que faremos? Vamos passar a copiar os irmãos do Leste? Não, mas podemos aprender com eles. Será que a forma das nossas liturgias evangélicas contribui para a formação de virtude? A arte que produzimos no contexto eclesiástico nos inspira a shalom? Ou é somente para instigar respostas emotivas, decorar o ambiente ou, pior, um nicho de mercado?

Uma liturgia que promove virtudes é uma liturgia que nos tira de nós mesmos, nos treina para a shalom e que, através da arte, nos permite corporificar a mensagem do Evangelho.

Texto publicado originalmente no portal Unus Mundus, julho de 2025. Reproduzido com permissão.
Notas
1. Terence Cuneo, Fé ritualizada: ensaios em filosofia da liturgia, 2024, p. 29.
2. Cuneo, 2024, p. 126.
3. Cuneo, 2024, p. 99.
4. James K A. Smith, Imaginando o Reino: a dinâmico do culto, 2019.
5. Ibidem.
6. Pierre Bourdieu, O senso prático: sobre a teoria da ação, 2012.
7. James K A. Smith, Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural, 2018, p. 84.
8. Alaisdair Macintyre, Depois da virtude: um estudo sobre teoria moral, 2021.
9. Cuneo, 2024, p. 175.
10. Cuneo, 2024, p. 190.
11. Cuneo, 2024, p. 181.
12. Cuneo, 2024, p. 198.
13. Hans Rookmaaker, A arte não precisa de justificativa, 2010.


  • Adryana Diniz Gomes é mestre em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF), professora de Metodologia da Pesquisa no Seminário Betel Brasileiro em Niterói. Pesquisa virtualização da experiência artística.

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