Opinião
- 04 de agosto de 2021
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O espectro da intolerância
Vivemos em uma sociedade pós-cristã, cujos valores estão em conflito com as convicções religiosas tradicionais. Podemos esperar que as mesmas ameaças que já acontecem nos Estados Unidos e na Europa se manifestem de forma crescente na sociedade brasileira
Por Alderi Souza de Matos
No primeiro semestre de 2021, durante a fase mais aguda da pandemia da Covid-19 no Brasil, diversos líderes e autores evangélicos, bem como órgãos federais e organizações civis, externaram sérias preocupações com o que consideraram um grave atentado contra a liberdade religiosa no país. O que estava em discussão eram os decretos estaduais e municipais que, no interesse da saúde pública, não só restringiam, mas até mesmo proibiam os cultos presenciais. Particularmente polêmica foi a decisão do Supremo Tribunal Federal em 8 de abril, por nove votos contra dois, confirmando o direito dos governadores e prefeitos de imporem tais medidas restritivas.
É possível arrolar uma longa série de argumentos a favor e contra essas ações do poder público, que atualmente não mais estão em vigor. Também se pode questionar a sabedoria de externar protestos tão veementes contra uma situação que, por sua própria natureza, era pontual e temporária. Porém, esse episódio suscita, em termos de comparação e contraste, uma questão de grande magnitude e persistência em termos mundiais – o espectro da intolerância religiosa. O termo “espectro” é utilizado aqui para destacar dois aspectos: de um lado, a intolerância como ameaça ou realidade sinistra; do outro, o fato de apresentar uma variada gama de manifestações.
Os cerceamentos no campo da consciência e da religiosidade, em maior ou menor grau, são sempre condenáveis e têm se multiplicado com assustadora frequência ao longo da história. Das grandes religiões mundiais, o cristianismo é aquele que hoje experimenta os maiores níveis de hostilidade em termos globais. Esse fenômeno acompanhou a fé cristã desde o início, tendo surgido ainda nos dias do Novo Testamento. Primeiro judeus e depois romanos se mostraram agressivos contra os seguidores de Cristo, a quem viam como uma ameaça para suas respectivas religiões. A “era dos mártires” se estendeu por 250 anos, terminando no início do quarto século.
Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano e, posteriormente, dos reinos europeus que o sucederam, a situação se inverteu. Menosprezando os ensinos de Cristo e dos apóstolos, a Igreja e o Estado mostraram-se agressivos contra os “heterodoxos”, como judeus, cátaros, valdenses e protestantes. A Inquisição, ou Santo Ofício, foi o exemplo mais emblemático dessa atitude. A partir do Iluminismo, com sua ênfase na liberdade de pensamento e expressão, gradualmente surgiu no Ocidente um ambiente mais ameno.
Ironicamente, ao mesmo tempo muitas sociedades não cristãs do Oriente Médio, Ásia e África, ressentindo-se da tríplice ameaça religiosa, política e cultural que associavam à fé cristã, mostraram-se crescentemente hostis ao cristianismo, até se chegar à pavorosa situação atual, na qual milhões de cristãos sofrem graves violações de seus direitos em dezenas de países, conforme amplamente documentado em publicações recentes como Perseguidos: O Ataque Global aos Cristãos.
Um fenômeno preocupante neste início do século 21 é o crescimento do sentimento anticristão no próprio Ocidente supostamente liberal e democrático. Multiplicam-se em diversos países esforços para aprovar legislações que irão trazer sérios entraves para o livre exercício da fé cristã. Um exemplo perturbador é o Ato de Igualdade (Equality Act), que está sendo debatido no Congresso dos Estados Unidos e foi aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro último. Essa lei visa conceder às categorias de “orientação sexual” e “identidade de gênero” as mesmas proteções da Lei dos Direitos Civis de 1964, mas o faz em termos que representam um grave risco para os grupos religiosos conservadores.
O Ato de Igualdade está sendo considerado a mais invasiva ameaça à liberdade religiosa na história do país, visto afetar áreas como educação, emprego, uso de instalações públicas e financiamentos federais. Se aprovado, seus vastos efeitos sobre a liberdade religiosa, de expressão e de consciência serão assustadores. Em última análise, trata-se do Estado buscando impor à sociedade, e em particular às comunidades de fé, os efeitos da chamada revolução sexual e de sua consequente ideologia de gênero, que conflitam com a visão bíblica e cristã da sexualidade, do casamento e da educação dos filhos. A ética da revolução sexual transformada em lei federal irá resultar em perseguição aos cristãos e aumentar o preconceito anticristão.
Outro exemplo de grave ameaça à tolerância religiosa está ocorrendo na Assembleia Nacional da França neste exato momento. Aprovada pela Câmara dos Deputados em fevereiro e pelo Senado em abril, deverá ser votada definitivamente em julho a “Lei para Consolidar o Respeito aos Princípios da República e de Luta contra o Separatismo”. Mais conhecida como “lei antiterrorismo”, esse projeto do governo visa dar uma resposta vigorosa ao radicalismo islâmico que tem ensanguentado o país, mas ao fazê-lo pune todos os grupos religiosos, inclusive a pequena comunidade evangélica, que tanto sofreu no passado e não representa nenhuma ameaça à segurança pública da França.
A nova lei estipula complexas exigências para as igrejas se declararem ao governo, regras rigorosas no âmbito financeiro (principalmente quanto ao recebimento de recursos do exterior e ao financiamento de projetos de construção) e vigilância governamental sobre o ensino dos pastores, buscando detectar e punir qualquer linguagem que supostamente incentive o desrespeito às leis. O antigo princípio da “laicidade” (1905), que se baseava na neutralidade do poder público no âmbito religioso, passa a ser regido pela desconfiança, suspeita e controle.
Não importa qual seja o desfecho desses projetos legislativos, os líderes políticos estão transmitindo uma mensagem inconfundível: vivemos em uma sociedade pós-cristã, cujos valores estão em conflito com as convicções religiosas tradicionais. Não irá tardar para que as mesmas ameaças se manifestem de forma crescente na sociedade brasileira. Quando isso ocorrer, os cristãos terão motivos verdadeiramente prementes para se mobilizarem em prol da liberdade religiosa.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira, A Caminhada Cristã na História e Fundamentos da Teologia Histórica. Artigos de sua autoria estão disponíveis em cpaj.mackenzie.br/historia-da-igreja.
Imagem: Igreja atacada no Sri Lanka na Páscoa de 2019
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Por Alderi Souza de Matos
No primeiro semestre de 2021, durante a fase mais aguda da pandemia da Covid-19 no Brasil, diversos líderes e autores evangélicos, bem como órgãos federais e organizações civis, externaram sérias preocupações com o que consideraram um grave atentado contra a liberdade religiosa no país. O que estava em discussão eram os decretos estaduais e municipais que, no interesse da saúde pública, não só restringiam, mas até mesmo proibiam os cultos presenciais. Particularmente polêmica foi a decisão do Supremo Tribunal Federal em 8 de abril, por nove votos contra dois, confirmando o direito dos governadores e prefeitos de imporem tais medidas restritivas.
É possível arrolar uma longa série de argumentos a favor e contra essas ações do poder público, que atualmente não mais estão em vigor. Também se pode questionar a sabedoria de externar protestos tão veementes contra uma situação que, por sua própria natureza, era pontual e temporária. Porém, esse episódio suscita, em termos de comparação e contraste, uma questão de grande magnitude e persistência em termos mundiais – o espectro da intolerância religiosa. O termo “espectro” é utilizado aqui para destacar dois aspectos: de um lado, a intolerância como ameaça ou realidade sinistra; do outro, o fato de apresentar uma variada gama de manifestações.
Os cerceamentos no campo da consciência e da religiosidade, em maior ou menor grau, são sempre condenáveis e têm se multiplicado com assustadora frequência ao longo da história. Das grandes religiões mundiais, o cristianismo é aquele que hoje experimenta os maiores níveis de hostilidade em termos globais. Esse fenômeno acompanhou a fé cristã desde o início, tendo surgido ainda nos dias do Novo Testamento. Primeiro judeus e depois romanos se mostraram agressivos contra os seguidores de Cristo, a quem viam como uma ameaça para suas respectivas religiões. A “era dos mártires” se estendeu por 250 anos, terminando no início do quarto século.
Quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano e, posteriormente, dos reinos europeus que o sucederam, a situação se inverteu. Menosprezando os ensinos de Cristo e dos apóstolos, a Igreja e o Estado mostraram-se agressivos contra os “heterodoxos”, como judeus, cátaros, valdenses e protestantes. A Inquisição, ou Santo Ofício, foi o exemplo mais emblemático dessa atitude. A partir do Iluminismo, com sua ênfase na liberdade de pensamento e expressão, gradualmente surgiu no Ocidente um ambiente mais ameno.
Ironicamente, ao mesmo tempo muitas sociedades não cristãs do Oriente Médio, Ásia e África, ressentindo-se da tríplice ameaça religiosa, política e cultural que associavam à fé cristã, mostraram-se crescentemente hostis ao cristianismo, até se chegar à pavorosa situação atual, na qual milhões de cristãos sofrem graves violações de seus direitos em dezenas de países, conforme amplamente documentado em publicações recentes como Perseguidos: O Ataque Global aos Cristãos.
Um fenômeno preocupante neste início do século 21 é o crescimento do sentimento anticristão no próprio Ocidente supostamente liberal e democrático. Multiplicam-se em diversos países esforços para aprovar legislações que irão trazer sérios entraves para o livre exercício da fé cristã. Um exemplo perturbador é o Ato de Igualdade (Equality Act), que está sendo debatido no Congresso dos Estados Unidos e foi aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro último. Essa lei visa conceder às categorias de “orientação sexual” e “identidade de gênero” as mesmas proteções da Lei dos Direitos Civis de 1964, mas o faz em termos que representam um grave risco para os grupos religiosos conservadores.
O Ato de Igualdade está sendo considerado a mais invasiva ameaça à liberdade religiosa na história do país, visto afetar áreas como educação, emprego, uso de instalações públicas e financiamentos federais. Se aprovado, seus vastos efeitos sobre a liberdade religiosa, de expressão e de consciência serão assustadores. Em última análise, trata-se do Estado buscando impor à sociedade, e em particular às comunidades de fé, os efeitos da chamada revolução sexual e de sua consequente ideologia de gênero, que conflitam com a visão bíblica e cristã da sexualidade, do casamento e da educação dos filhos. A ética da revolução sexual transformada em lei federal irá resultar em perseguição aos cristãos e aumentar o preconceito anticristão.
Outro exemplo de grave ameaça à tolerância religiosa está ocorrendo na Assembleia Nacional da França neste exato momento. Aprovada pela Câmara dos Deputados em fevereiro e pelo Senado em abril, deverá ser votada definitivamente em julho a “Lei para Consolidar o Respeito aos Princípios da República e de Luta contra o Separatismo”. Mais conhecida como “lei antiterrorismo”, esse projeto do governo visa dar uma resposta vigorosa ao radicalismo islâmico que tem ensanguentado o país, mas ao fazê-lo pune todos os grupos religiosos, inclusive a pequena comunidade evangélica, que tanto sofreu no passado e não representa nenhuma ameaça à segurança pública da França.
A nova lei estipula complexas exigências para as igrejas se declararem ao governo, regras rigorosas no âmbito financeiro (principalmente quanto ao recebimento de recursos do exterior e ao financiamento de projetos de construção) e vigilância governamental sobre o ensino dos pastores, buscando detectar e punir qualquer linguagem que supostamente incentive o desrespeito às leis. O antigo princípio da “laicidade” (1905), que se baseava na neutralidade do poder público no âmbito religioso, passa a ser regido pela desconfiança, suspeita e controle.
Não importa qual seja o desfecho desses projetos legislativos, os líderes políticos estão transmitindo uma mensagem inconfundível: vivemos em uma sociedade pós-cristã, cujos valores estão em conflito com as convicções religiosas tradicionais. Não irá tardar para que as mesmas ameaças se manifestem de forma crescente na sociedade brasileira. Quando isso ocorrer, os cristãos terão motivos verdadeiramente prementes para se mobilizarem em prol da liberdade religiosa.
• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira, A Caminhada Cristã na História e Fundamentos da Teologia Histórica. Artigos de sua autoria estão disponíveis em cpaj.mackenzie.br/historia-da-igreja.
Imagem: Igreja atacada no Sri Lanka na Páscoa de 2019
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