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Opinião

A Bíblia e os tradutores: os desafios e os textos mais difíceis

Por Vilson Scholz

Termos de ocorrência única na Bíblia hebraica

Traduzir é muito mais do que substituir palavras de uma língua por outra, mas tradução certamente passa pela determinação do significado das palavras do texto a ser traduzido. No caso da Bíblia, há uma diferença entre os dois Testamentos também neste particular. A Bíblia Hebraica é uma ilha isolada, no sentido de que não existe outra literatura em hebraico, produzida no mesmo período da Bíblia. Existem coisas pequenas, como inscrições e outros textos breves, mas nada que possa nos ajudar a determinar o significado de termos que aparecem, por exemplo, em textos poéticos. Assim, o número de termos chamados de hápax (isto é, termos de ocorrência única) é expressivo, no caso do Antigo Testamento: mil e quinhentos hápax, no universo de um vocabulário de pouco mais de oito mil palavras. O significado de muitas dessas palavras pode ser deduzido a partir da etimologia, ou seja, pela relação com um radical cujo significado é conhecido. No entanto, acabam restando uns quatrocentos termos para os quais não se tem certeza quanto ao significado. Um exemplo é o termo lilit, que ocorre apenas em Isaías 34.14. O fato de ser um termo que aparece uma única vez e cujo significado é desconhecido se reflete na diferença entre as traduções: “animais noturnos” (ARC, NAA), “criaturas noturnas” (NVI), “fantasmas” (ARA), “bruxa do deserto” (NTLH). Há ainda outras traduções, como “monstro noturno” e “fantasma Lilit”. Que fazer, num caso assim? O uso do termo “noturno” se deve ao fato de lilit ser parecido com a palavra hebraica laylah, que significa “noite”. Mas, venhamos e convenhamos, é mais um palpite do que uma certeza.
 
Outro hápax aparece em Gênesis 6.14, na apresentação da madeira usada para a arca de Noé. O termo hebraico é gofer. A antiga Almeida (a Revista e Corrigida) translitera o termo raro: “madeira de gofer”. Depois, na Almeida Revista e Atualizada (e agora também na Nova Almeida Atualizada), passou-se a dizer “tábuas de cipreste”. A Nova Versão Internacional segue pelo mesmo caminho. A NTLH prefere uma tradução mais genérica: “madeira boa”.
 
Recurso a línguas cognatas e a ajuda da arqueologia

Em vários momentos, em textos poéticos do Antigo Testamento, o fato de a poesia ter como característica a repetição (ou, em termos mais técnicos, o paralelismo) ajuda a traduzir determinados termos raros, na medida em que existe repetição de ideias e, por isso, sinonímia. Em outros momentos, o recurso dos exegetas e tradutores é apelar para o significado de palavras de grafia semelhante em línguas cognatas ou aparentadas, como o árabe, assírio ou ugarítico, por exemplo. Isso tem seus riscos, porque uma palavra pode ser um “falso amigo”, ou seja, ter escrita semelhante, mas significado diverso. Há muitos exemplos disto em línguas modernas, como mostra a diferença entre “eventually” em inglês (= por fim ou finalmente) e “eventualmente” em português (= possivelmente). Também existe sensível diferença entre “embaraçada” em português (= constrangida) e “embarazada” em espanhol (= grávida).
 
Outras vezes, somos auxiliados pela arqueologia. Um caso clássico é o texto de 1Samuel 13.21. Num contexto em que se fala sobre o monopólio do ferro, que era detido pelos filisteus, traduções antigas, como Almeida Revista e Corrigida, dizem: “Tinham, porém, limas adentadas para os seus sachos, e para as suas enxadas, e para as forquinhas de três dentes, e para os machados, e para consertar as aguilhadas”. A expressão “limas adentadas” era uma tentativa de traduzir o termo hebraico “pim”, que ocorre apenas nesse texto de 1Sm 13.21. Hoje, graças à arqueologia, sabemos o que significa “pim”. Acontece que foram encontrados pesos (esses que são usados em balanças antigas) com a inscrição “pim”. Portanto, o “pim” era usado para determinar o valor a ser pago pelo serviço, e não um instrumento (a lima) para afiar as ferramentas. A Almeida Revista e Atualizada, de 1956, já havia incorporado este avanço exegético, dizendo: “Os filisteus cobravam dos israelitas dois terços de um siclo para amolar os fios das relhas e das enxadas...”. A Nova Almeida Atualizada tratou de tornar isto mais compreensível: “Os filisteus cobravam dos israelitas oito gramas de prata para amolar os fios das lâminas e das enxadas...”. Cabe acrescentar que este exemplo mostra por que é necessário atualizar as traduções, e por que é recomendável deixar de lado traduções datadas.
 
Um hápax do Novo Testamento

No caso do Novo Testamento, o número de termos que não têm paralelo em outros textos gregos é extremamente reduzido. Isto se deve ao fato de o Novo Testamento ser uma coleção de textos em grego que navega num mar de outros textos gregos, principalmente textos da mesma época. (O Thesaurus Linguae Graecae, que reúne toda a literatura desde o tempo de Homero, no oitavo século a. C., até 1453 d. C., data da queda de Constantinopla, é um “oceano” de 110 milhões de palavras gregas!) Mas, apesar disto, o significado exato de algumas palavras gregas do Novo Testamento ainda não é conhecido, porque essas palavras ainda não foram encontradas em nenhum texto anterior ou da mesma época do Novo Testamento. O exemplo clássico é o termo epiúsios, que aparece apenas no Pai-Nosso, tanto em Mateus 6 como em Lucas 11. Normalmente é traduzido por “de cada dia” ou “cotidiano”. Mas seria este, de fato, o significado da palavra? O Dicionário Grego-Português, além de indicar que é uma palavra de sentido incerto, lista várias possibilidades de significado: 1) diário, cotidiano, de cada dia; 2) necessário; 3) de hoje, para hoje; 4) para amanhã. Por via das dúvidas, os tradutores ficam com o tradicional “de cada dia”.
 
A poesia como desafio maior

De modo geral, o maior tormento de qualquer tradutor é a poesia. Alguém já afirmou que poesia é o que se perde, quando se traduz. Alguns poemas são intraduzíveis (enquanto não aparecer quem consiga traduzi-los). Quem consegue traduzir para outra língua o poema Serenata Sintética, de Cassiano Ricardo: “Lua morta Rua torta Tua porta”? Felizmente, no caso da poesia hebraica (e a poesia bíblica está como que restrita ao Antigo Testamento), a rima, tão característica da poesia, é, em grande parte, rima de ideias ou a repetição do mesmo pensamento (ou quase o mesmo), com palavras diferentes. A mensagem do profeta Isaías, o maior dos poetas bíblicos, começa assim: “Escutem, ó céus, e ouça, ó terra”. Aqui, temos o paralelismo entre escutar e ouvir, entre céus e terra. Bela poesia, mas poesia hebraica. 
 
Há momentos em que, também no hebraico, a forma faz parte da poesia. O poeta pode como que “brincar” com a mesma letra, como nos acrósticos ou poemas alfabéticos. Um bom exemplo é o Salmo 119. O autor decidiu fazer oito linhas com cada letra do alfabeto hebraico, o que explica por que o Salmo 119 é tão longo: são oito linhas ou versículos para cada letra do alfabeto hebraico (8 linhas x 22 letras = 176 versículos). Quem quiser traduzir a forma terá de colocar no início dos primeiros oito versículos uma palavra iniciada com a letra “a”. Não há tradução que consiga reproduzir essa forma de maneira totalmente satisfatória. Um problema é que o tradutor terá de suprimir algumas letras de nosso alfabeto, porque o alfabeto hebraico tem apenas 22 letras. Se fosse escrito em português de hoje, o Salmo 119 teria 208 versículos! 
 
Em outros momentos, o poeta como que “brinca” com o som das palavras. O exemplo clássico é Isaías 5.7, o texto que conclui a parábola da vinha (que trata do povo de Israel daquele tempo). A vinha seria abandonada, porque Deus esperava mishpat (“retidão”) e o que veio foi mispach (“derramamento de sangue”?), esperava tsedaqah (“justiça”) e o que veio foi tseaqah (“grito”). (“Derramamento de sangue” vem seguido de ponto de interrogação, porque é outro hápax, de significado incerto.) Como reproduzir isto em tradução? Uma Bíblia publicada em Portugal diz: “O Senhor esperava que produzissem uma colheita de justiça, mas apenas encontrou derramamento de sangue; esperava retidão, mas só o choro da profunda opressão e injustiça lhe chegou aos ouvidos”. Percebe-se que a poesia foi destruída ou, se você preferir, diluída num longo discurso em prosa. A Nova Almeida Atualizada é mais poética: “Este (o Senhor) esperava retidão, mas eis aí opressão; esperava justiça, mas eis aí clamor por causa da injustiça”.
 
Um caso de extrema complexidade: Provérbios 26.10

Outra dificuldade relacionada com a poesia é que ela tende a ser sintética, ou seja, tudo é expresso com poucas palavras e a relação entre elas nem sempre é evidente. Isto ajuda a explicar, por exemplo, a dificuldade imposta pela tradução do livro de Jó, que é essencialmente poético. O livro de Provérbios entra na mesma lista, e um dos textos mais difíceis de traduzir é Provérbios 26.10. Neste caso, a dificuldade não está restrita a uma palavra, mas ao versículo como um todo. Tudo começa com a primeira palavra, o conhecido termo hebraico rav, que em geral significa “muito”, mas que também pode significar “flecheiro” ou “mestre”. Por se tratar de um provérbio, que não tem necessariamente uma conexão com o provérbio anterior ou o provérbio seguinte, não se sabe ao certo que assunto é tratado em Pv 26.10. Quem lê apenas uma tradução, sem consultar outras, nem suspeita da dificuldade. Mas, se alguém começar a comparar traduções, verá que a diversidade é enorme. Segue uma lista de dez traduções: “Toda a carne dos tolos é grandemente afligida, porque a fúria deles é reduzida a nada” (Septuaginta). “A carne do tolo sofre muito, e o bêbado passa por cima do mar” (Targum). “O juízo determina as causas, e aquele que impõe silêncio ao tolo alivia a ira” (Vulgata). “Um bom mestre faz a coisa bem feita, mas quem contrata um incompetente acaba no prejuízo” (Lutero). “O grande Deus que formou todas as coisas recompensa tanto o tolo quanto os transgressores” (King James Version). “Os grandes molestam a todos, e alugam a os loucos, e alugam a os transgressores” (Almeida, edição de 1819). “Como um besteiro que a todos espanta, assim é o que assalaria os tolos e os transgressores” (Almeida Revista e Corrigida). “Como um flecheiro que a todos fere, assim é o que assalaria os insensatos e os transgressores” (Almeida Revista e Atualizada). “O patrão que contrata qualquer tolo que lhe pede emprego acaba prejudicando todos” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje). “Como um flecheiro que fere a todos, assim é o que contrata os tolos e os primeiros que passam” (Nova Almeida Atualizada). Qual a melhor tradução? Chame os universitários! De fato, renderia uma tese de doutorado.
 
O desafio adicional da língua-alvo

Além das dificuldades relacionadas com a língua fonte (e, no caso da Bíblia, estamos lidando com línguas bem antigas), alguns tradutores ainda têm de lidar com as exigências (ou possibilidades) e as complexidades da língua-alvo, a língua para a qual se traduz. Um tradutor brasileiro, por exemplo, não tem ideia do que poderá ser a tradução de um texto como 2Coríntios para outras línguas. Em guarani, língua falada no Paraguai, faz-se distinção entre um “nós inclusivo” (nós todos) e um “nós exclusivo” (nós, mas vocês não). Quando Paulo afirma que Deus “nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18), esse “nos” é inclusivo ou exclusivo? Em outras palavras, esse ministério é de quem, de Paulo e de toda a igreja e até mesmo de mais pessoas ainda (“nós” inclusivo) ou apenas de Paulo e de seus colaboradores (“nós” exclusivo)? Ou, então, imagine o desafio que é traduzir a Bíblia para o xerente, língua brasileira que, assim como muitas outras, não dispõe de voz passiva. Neste caso, todas as construções em voz passiva (como “somos sempre entregues à morte por causa de Cristo”, em 2Co 4.11) terão de ser transformadas em frases na voz ativa (algo como “outras pessoas sempre querem nos matar por causa de Cristo”).
 
Conclusão

Apesar de tudo, a Bíblia pode ser e continua a ser traduzida. O texto completo já foi traduzido para umas 700 línguas, de um total de mais de sete mil línguas que ainda existem. O Novo Testamento já está disponível em mais de 1500 línguas. A Bíblia sempre foi e continua como o livro mais traduzido em todo o mundo. É líder absoluta. Quem vem em segundo lugar? Difícil dizer.
 
> Para ler a primeira parte deste artigo acesse Os textos bíblicos mais discutidos pelos tradutores.

• Vilson Scholz é pastor e professor de Teologia Exegética, tem mestrado e doutorado na área do Novo Testamento. Consultor de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, Scholz é professor da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas (RS), tradutor do Novo Testamento Interlinear Grego-Português (SBB) e autor de Princípios de Interpretação Bíblica (Editora da Ulbra).


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