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Opinião

O Brasil da cintura pra baixo

Bráulia Ribeiro

O humor brasileiro está cada vez mais perdido. O que é engraçado hoje? A clara desfuncionalidade da família, talvez como retratam os sofríveis “sitcom” da Globo?

Talvez sejam engraçados para os humoristas os pressupostos arcaicos que levam os homens à incapacidade crônica de tomar decisões corretas em relação aos orifícios nos quais penetram o que parece ser a única parte de seu corpo que os faz se sentir machos. A celebração dessa macheza artificial reina soberana nos programas de humor. Apesar disso, a homossexualidade se torna cada vez mais ambígua -- “será que ele é?” --, dando a “engraçada” impressão de que é universal. Homem que é homem não dispensa nada redondo, cabeludo, operado, siloconado, ou natural, parece ser a linha que os humoristas seguem. A fraqueza do pai de família que não consegue dominar os filhos nem tem princípios pelos quais norteá-los deveria gerar boas risadas de acordo com os autores de certos programas. Os filhos perdidos prostituídos e corrompidos pela barganha constante e total falta de afeto deveriam nos provocar risadas.

Hilariante e não aterradora parece ser a passividade absoluta da mulher diante da redução de seu valor intrínseco de ser humano a meros seios e bumbuns ambulantes. Bumbuns bem-sucedidos, bumbuns que falam de cultura se bundalizando ainda mais, bumbuns ministras sexólogas, que, como por direito de formação acadêmica, diante de uma crise terrível nada fazem além de ridicularizar, sexualizando com expressões baixas, o fracasso do serviço que deveriam prestar ao povo.

Uma senhora bumbum ministra do Supremo mostrou sua competência, para nossa surpresa, não numa praia ou numa revista masculina, mas no indiciamento dos quarenta ladrões do Governo. Engraçado é que, quando ela foi sabatinada pelo Senado antes de assumir o cargo, nenhum dos digníssimos senhores senadores conseguiu deixar de se referir a sua beleza, qualificação óbvia para um cargo de tamanha responsabilidade. Um deles, mais ousado, baseado na nobre profissão de ginecologista, que exercia antes da não tão nobre política brasileira, disse que pelo seu “profundo” conhecimento da “intimidade” feminina tinha certeza que a ministra seria bem-sucedida. Acertou. Apesar de ser lógico, ou pelo menos esperado, que fluidos vaginais não tivessem nada a ver com as ações da ministra no Supremo.

E a política suja que se pratica no Congresso e no Senado? E o descaramento de tudo, a falta de princípios morais para nortear o risível? E a defesa do impensável repetida diversas vezes de formas diferentes pelo nosso presidente virtual, que parece governar numa espécie de Brasil da Second Life, manipulada pelo usuário, ou no País dos Espelhos, onde tudo é contrário à realidade externa? Tudo isso parece muito engraçado para os humoristas do país... Ah-ah! Somos todos corruptos. Ah-ah! Não estamos nem aí.

Um jovem projetava para um grupo de estudantes universitários o filme denúncia “Anjos do Sol”, que aborda o problema das crianças compradas em suas famílias no Nordeste e vendidas para a prostituição nos garimpos da região amazônica. Numa determinada cena uma menina de menos de 11 anos, triste e maltratada, é punida com um estupro coletivo pelo dono do garimpo por ter tentado fugir. A sucessão de homens se acotovelando na fila para usar de graça a menina pareceu engraçada aos estudantes, que caíram na risada. Pode haver uma explicação psicológica pra isso: risada nervosa? choque (a realidade amazônica chocando jovens de classe média pela primeira vez com sua crueza)? Pode ser, porém, que tudo já não valha mais nada. É tudo absurdo, engraçado, risível; já não existe a dor do outro que me dói; não existe outra proposta, e esta que vivemos talvez por ser a única é surrealmente hilariante.

Do ponto de vista cultural, esta é uma constatação terrível. Toda cultura tem mecanismos que aliviam tensões e dores sociais. Existe até a possibilidade de um apagamento intencional dessas dores do inconsciente coletivo. O humor, indiretamente, se presta a este serviço. Ele minimiza questões, vulgariza anormalidades para torná-las nem tão chocantes assim, nos familiarizar com elas. Infelizmente o Brasil faz mais que isso. A televisão e outros meios de comunicação de massa, principalmente os programas de humor, nos desumanizam nos redefinindo de maneira cruel. Brasileiro é isto. É o espelho de distorções do parque de diversões se tornando o único meio pelo qual nos olhamos. Nosso sempre presente problema de identidade toma proporções monstruosas. Nossa graça nos mata devagar, mata nossa vontade de ser diferente.

No entanto, se consideramos que a mídia não passa de um espelho -- convexo ou não --, ainda podemos enxergar a realidade social que existe por trás dela, a qual podemos influenciar. Existe vida por trás do espelho. Existe a sociedade evangélica emergente com valores que deveriam lavar noções culturais distorcidas sobre a vida, que iguala o homem e a mulher diante de Deus, constrói o conceito do indivíduo com valor intrínseco, que deve ser respeitado pelo próximo, pela sociedade, pelo governo. Existe a sociedade católica praticante, que combina valores cristãos sólidos com a vida do dia-a-dia. Até espíritas influenciados pelo evangelho kardecista lutam pelo valor da vida, como vi recentemente num outdoor contra o aborto. É hora de sair do casulo. Assim como os 500 mil corpos que flutuaram no rio em Ruanda enquanto o mundo assistia pela TV, o genocídio moral que assola a nação brasileira não é engraçado. Trará conseqüências sérias para as próximas gerações. Não podemos assistir a tudo isso sentados.


Bráulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, e presidente da JOCUM — Jovens com Uma Missão. É autora de Chamado Radical (Editora Ultimato).
bráulia_ribeiro@yahoo.com

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